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Fototerapia para tratamento de icterícia em recém-nascidos

Fototerapia para tratamento de icterícia em recém-nascidos

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A descoberta da fototerapia como tratamento para a icterícia neonatal resultou de uma combinação de insistência, acaso e curiosidade. Conheça os nomes daqueles que iniciaram as observações e trabalhos que propuseram a fototerapia para crianças ictéricas e que foram responsáveis por salvar milhões de vidas com essa descoberta.

Introdução

A icterícia é um achado extremamente comum nos recém-nascidos sadios. Aproximadamente 60% dos recém-nascidos sadios apresentam icterícia na primeira semana de vida, enquanto prematuros têm 80% de apresentá-la. Apesar de ser um achado comum, a sua persistência deve ser investigada, bem como quando a icterícia começa a se instalar por muitas áreas do corpo da criança. Quando a icterícia persiste e agrava, tem-se o risco de lesões irreversíveis no sistema nervoso central, já que a bilirrubina indireta em altos níveis é capaz de ultrapassar a barreira hematoencefálica.

A icterícia é referente à hiperbilirrubinemia indireta no sangue da criança, manifestando-se como uma coloração amarelo-alaranjada da pele, refletindo níveis séricos acima de 5 mg/dl.

Atualmente, a fototerapia está ricamente consolidada na literatura para o tratamento de icterícia em neonatos, mas ainda está em constante evolução no que tange às novas tecnologias e métodos.

A fototerapia na icterícia neonatal

Como já mencionado, a icterícia no período neonatal é muito comum e nem sempre demanda tratamento. Quando descartadas causas hemolíticas da icterícia, a fototerapia é o padrão-ouro para tratamento da condição, seja ela exclusiva ou em combinação com outras terapias.

Trata-se de um tratamento efetivo, de baixo custo e manejo simples. Estima-se que aproximadamente 8% dos RN recebem a fototerapia nos primeiros dias de vida.

A fototerapia é capaz de transformar as moléculas de bilirrubina indireta em seus isômeros excretáveis na urina e no trato gastrintestinal sem que seja necessária a ação do fígado (etapa prejudicada visto que o aumento da bilirrubina indireta geralmente está relacionado a uma sobrecarga dos hepatócitos). Em outras palavras, a emissão de fótons converte as moléculas de bilirrubina indireta em isômeros mais facilmente excretáveis pelo organismo.

Irmã Jean Ward

Relatos históricos mostram que nativos americanos já haviam notado que a exposição solar seria capaz de reduzir a coloração amarelada de crianças com icterícia, prática também relatada por parteiras na Índia.

Entretanto, foi apenas em 1956, que a Irmã Jean Ward, uma enfermeira responsável pelos cuidados de recém-nascidos de um hospital em Essex, Inglaterra, resolveu colocar em prática algo que havia observado, segundo ela “ar fresco e luz solar farão muito melhor aos bebês do que a atmosfera aquecida de uma incubadora”.

Conta-se que a enfermeira colocava os bebês expostos à luz solar e os trazia de volta para o interior do hospital momentos antes da ronda dos pediatras responsáveis pela unidade. Até que certo dia, um pediatra (Dr. Dobbs) notou que a pele de uma dessas crianças aparentava coloração “amarelo-pálida” exceto por uma pequena porção triangular, bastante ictérica e com margens muito bem definidas. Questionada sobre isso, a enfermeira confessou que estava colocando as crianças sob o sol e que havia notado que a coloração amarelada reduzia consideravelmente. Por fim, afirmou que essa porção de pele da criança em questão estava coberta pelo lençol enquanto ela estava exposta à luz solar, portanto, era a única parte do corpo que não teve exposição ao sol.

Porém, nada mais foi investigado a respeito.

Dr. Dobbs e Dr. Cremer

Semanas após o curioso achado da criança com o “triângulo ictérico”, um frasco contendo uma amostra de sangue retirada de uma criança ictérica foi deixada acidentalmente sob exposição solar por um bioquímico do hospital. Quando esse se dirigiu ao Dr. Dobbs para pedir desculpas pelo descuido, notaram que a coloração da amostra não estava amarelada como era de se esperar de amostras com altas taxas de bilirrubina. Nesse caso, a amostra estava esverdeada (posteriormente descobriu-se que se trava da biliverdina). Além disso, ao analisar a amostra, notou-se que os níveis de bilirrubina estavam muito abaixo. Com isso, o Dr. Dobbs e seu residente, Dr. Cramer, concluíram que “não há como negar que a exposição solar levou à redução dos níveis de bilirrubina da amostra; parece que esbarramos em algo que pode ter aplicação prática”.

Cremer, Dobbs e Perryman (bioquímico) prosseguiram nos estudos, até que conseguiram publicar, em 1958, trabalhos demonstrando que tanto a exposição solar quanto a exposição à luz azul eram capazes de reduzir consideravelmente os níveis de bilirrubina sérica.

Legado

Depois da publicação dos resultados encontrados na Inglaterra, médicos em diversos países se propuseram a iniciar testes em suas unidades de cuidados. Em 1960, foi publicado no Jornal Brasileiro de Pediatria um trabalho conjunto realizado no Brasil, Uruguai e Chile comprovando a eficácia do experimento, além de ter sido cunhado ali o termo “Fototerapia”.

Em poucos anos, mais de 20 trabalhos foram coordenados seguindo os resultados de Cremer.

Conclusão

Assim como aconteceu em outras descobertas científicas, a influência da exposição solar sobre os níveis séricos de bilirrubina em recém-nascidos foi observada por acaso. E graças a esse feliz fortúnio, a fototerapia foi capaz de salvar milhões de vidas ao longo de décadas através de avanços tecnológicos e científicos.

Autor: Víctor Miranda Lucas

Instagram: @victormirandalucas

Referências

BRADY, S. The Birth of Phototherapy. Via Patch, 2017. Disponível em: <http://www.viapath.co.uk/news-and-press/the-birth-of-phototherapy>. Acesso em 02/2022

COLVERO, A.P.; COLVERO, M.O.; FIORI, R.M. Fototerapia. Scientia Medica. V.15, n.2, p.90-96, 2005.

MAISELS, M.J. Sister Jean Ward, phototherapy, and jaundice: a unique human and photochemical interaction. Journal of Perinathology. V.25, p.671-675, 2015.

SANTOS, P.H.A.O.; OLIVEIRA, B.T.; FREGADOLLI, A.M.V. Atualizações sobre fototerapia em neonatos a termo e pré-termo com icterícia não-hemolítica. Revista Portal Saúde e Sociedade. V.único, n.6, p.1-7, 2021.



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