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A anemia falciforme se caracteriza como uma hemoglobinopatia, que são distúrbios que afetam a estrutura, função ou produção de hemoglobina. Em geral, essas doenças são hereditárias e sua gravidade varia desde anormalidades laboratoriais assintomáticas até a morte in utero.
A doença é causada por uma mutação no gene da β-globina, com modificação do sexto aminoácido, substituindo o ácido glutâmico pela valina, criando uma molécula de hemoglobina com comportamento totalmente anômalo: a hemoglobina S. Como consequência, a hemácia muda a sua conformação para drepanócito.

As células falcêmicas perdem a flexibilidade necessária para atravessar os pequenos capilares. Possuem membranas “viscosas” alteradas, que aderem anormalmente ao endotélio das pequenas vênulas.
Tais anormalidades provocam episódios imprevisíveis de vasoclusão microvascular e destruição prematura dos eritrócitos (anemia hemolítica). Ocorrendo hemólise devido à destruição dos eritrócitos anormais pelo baço.
As células aderentes rígidas causam obstrução dos pequenos capilares e das vênulas, provocando isquemia tecidual, dor aguda e lesão gradual dos órgãos-alvo. Esse componente venoclusivo em geral caracteriza a evolução clínica. As manifestações proeminentes consistem em episódios de dor isquêmica (crises álgicas) e disfunção isquêmica ou franco infarto do baço, sistema nervoso central (SNC), ossos, articulações, fígado, rins e pulmões.

No portador de anemia falciforme, o afoiçamento de hemácias acontece de forma espontânea em graus variáveis, mas sabemos que ele se torna extremamente exacerbado na vigênciade um ou mais dos seguintes fatores:
- hipóxia;
- acidose; (desloca a curva de saturação da hemoglobina => reduz a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio)
- desidratação celular.
Consequências para a Hemácia
Além da alteração morfológica patognomônica (isto é, o afoiçamento decorrente da polimerização da HbS), ocorre um curioso fenômeno secundário à instabilidade dessa hemoglobina mutante: o aumento no estresse oxidativo intracelular
Relação com a anemia hemolítica
Os dois mecanismos básicos de hemólise acontecem ao mesmo tempo na anemia falciforme.
1. Hemólise EXTRAVASCULAR (2/3 do total): Ocorre opsonização por autoanticorpos anti-banda 3, externalização de fosfatildilserina e afoiçamento celular estimulando a eritrofagocitose
2. Hemólise INTRAVASCULAR (1/3 do total): Ocorre por ruptura das innterações entre citoesqueleto e membrana, pelo estresse oxidativo, com fragilização celular progressiva e tendência a fragmentação (desprendimento de vesículas) e lise osmótica.
- Manifestações clínicas da Anemia Falciforme
- Dor aguda e hipersensibilidade, taquicardia e ansiedade causados pela isquemia por vasoclusão. Esses episódios recorrentes, denominados crises álgicas, constituem a manifestação clínica mais comum
- A maioria dos pacientes apresenta anemia hemolítica, com hematócrito de 15 a 30% e reticulocitose significativa;
- Granulocitose é comum, a contagem dos leucócitos pode ser imprevisível durante e entre episódios álgicos, infecções e outras doenças recorrentes.
- A vasoclusão resulta em múltiplas manifestações: os episódios intermitentes de vasoclusão em tecido muscoloesquelético e conectivo resulta em isquemia dolorosa, que se manifesta como dor aguda e hipersensibilidade, febre, taquicardia e ansiedade.
- Obstrução venosa aguda do baço (crise de sequestro esplênico);
- A oclusão dos vasos da retina pode provocar hemorragia, neovascularização e descolamentos subsequentes;
- A síndrome da mão e pé decorre de infartos dolorosos dos dedos e dactilite;
- Acidente vascular encefálico;
- Priapismo: devido ao infarto dos tratos de saída venosos do pênis. ereção peniana dolorosa, independente de desejo sexual, durante um período superior a duas horas, sem levar à ejaculação. A impotência permanente é uma consequência frequente.
- As úlceras crônicas das pernas provavelmente surgem por isquemia na circulação distal e infecção secundária;
- Síndrome torácica aguda: caracterizada por dor torácica, taquipneia, febre, tosse e dessaturação da oxigenação arterial. Nos casos agudos, a redução da saturação arterial de oxigênio é especialmente grave, visto que promove a falcização em escala maciça.
Manifestações do traço falcêmico
O Traço Falciforme não é uma doença, significa que a pessoa herdou de um dos pais o gene para hemoglobina A e do outro, o gene para hemoglobina S, ou seja, ela é AS.
O traço falcêmico com frequência é assintomático. A anemia e as crises álgicas são raras. Um sintoma incomum, porém altamente distinto, é a hematúria indolor, que ocorre frequentemente em adolescentes do sexo masculino, talvez em consequência de necrose papilar. A isostenúria (excreção de urina cuja densidade não é nem maior nem menor do que a do plasma) é a manifestação mais comum do mesmo processo.
Diagnóstico
Suspeita-se da presença de síndrome falciforme com base na anemia hemolítica, na morfologia dos eritrócitos e nos episódios intermitentes de dor isquêmica.
O diagnóstico é confirmado por: eletroforese de hemoglobina e testes de falcização.
Por ser uma anemia hemolítica crônica, a anemia falciforme cursa com alterações laboratoriais estereotipadas condizentes com este grupo de doenças, a saber:
- queda leve a moderada da hemoglobina e do hematócrito;
- reticulocitose (entre 3-15%);
- hiperbilirrubinemia indireta;
- aumento de LDH;
- queda da haptoglobina.
A reticulocitose provoca um aumento “artificial” do VCM
As hemácias falcêmicas são normocrômicas, e a hipocromia sugere ferropenia associada… Devido à resposta inflamatória sistêmica que acompanha a doença esperam-se con-tagens de leucócitos e plaquetas aumentadas, além de elevação dos “marcadores de fase aguda” (ex.: proteína C reativa).
Em geral, o diagnóstico é estabelecido na infância, mas alguns pacientes, frequentemente em estado heterozigoto composto, só desenvolvem sintomas após o início da puberdade, durante a gravidez ou no início da vida adulta.
Os fatores associados ao aumento da morbidade e à redução da sobrevida consistem em mais de três crises por ano que exigem a internação do paciente, neutrofilia crônica, história de sequestro esplênico ou síndrome da mão e pé, bem como segundo episódio de síndrome torácica aguda. Os pacientes com história de AVE apresentam maior risco de sofrer episódios repetidos e necessitam de exsanguineotransfusão parcial e de monitoração particularmente rigorosa com estimativas do fluxo carotídeo pelo Doppler. Os pacientes com episódios graves ou repetidos de síndrome torácica aguda podem precisar de transfusão pelo resto da vida, com exsanguineotransfusões parciais, se possível.
Tratamento
Os pacientes com síndromes falciformes necessitam de assistência contínua.
- Exames regulares com lâmpada de fenda para monitorar o desenvolvimento de retinopatia;
- Profilaxia apropriada com antibióticos para os pacientes esplenectomizados durante procedimentos-dentários ou outros procedimentos invasivos;
- Hidratação oral vigorosa durante os períodos de exercício extremo ou sua antecipação, exposição ao calor ou frio, estresse emocional ou infecção;
- Os pacientes com anemia falciforme devem ser vacinados no início da vida;
- O controle das crises álgicas agudas inclui hidratação vigorosa, avaliação completa das causas subjacentes (como infecção) e analgesia agressiva administrada com prescrição permanente e/ou bomba de analgesia controlada pelo paciente (ACP);
- Os antiinflamatórios não esteroidais costumam ser eficazes para a artropatia da anemia falciforme;
- O avanço mais significativo no tratamento da anemia falciforme foi a introdução da
hidroxiureia como base da terapia para os pacientes com sintomas graves.
A hidroxiureia (10-30 mg/kg/dia) aumenta a hemoglobina fetal e também pode exercer efeitos benéficos sobre a hidratação dos eritrócitos, aderência à parede vascular e supressão das contagens dos granulócitos e reticulócitos; a dose deve ser titulada para manter uma contagem dos leucócitos entre 5.000 e 8.000 células/µL.
Os leucócitos e os reticulócitos podem desempenhar um papel importante na patogênese da crise falciforme, podendo sua supressão ser um importante efeito benéfico da terapia com hidroxiureia;
- O transplante de medula óssea pode proporcionar a cura definitiva, porém sabe-se que é eficaz e seguro apenas em crianças.
Referências:
KASPER, Dennis L.. Medicina interna de Harrison. 19 ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2017. 1 v, . ISBN: 978-85-8055-582-0.
Geer, JP, Foerster J, Lukens JN, Rodgers, GM, Paraskevas, F, Glader, B. Wintrobe’s – Clinical Hematology, 13th ed., Lippincott Williams and Wilkins, 2013.
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Observação: esse material foi produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido.