versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.12 Rio de Janeiro 2016 Epub 15-Dez-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311xed011216
O ano de 2016 será para sempre lembrado na história da Democracia brasileira. Seus efeitos marcarão por anos a atuação de intelectuais e militantes da Saúde Coletiva que dedicam suas vidas à ciência e à construção de alternativas para melhoria das condições de vida e saúde da população.
Crise econômica e ruptura política e institucional demarcam uma conjuntura extremamente adversa à manutenção dos direitos sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988 e o processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque, ainda que enormes contradições se evidenciem na trajetória da política social e de saúde desde a promulgação da Constituição1), (2, as condições que favoreceram avanços 3 encontram-se ameaçadas.
De 1988 a 2016, a consolidação de um sistema de saúde universal não ocupou papel de destaque na agenda governamental. Mesmo assim, características histórico-estruturais que limitam a universalização da saúde foram contrabalançadas por políticas nacionais específicas. Tais políticas impulsionaram a expansão da oferta e do acesso a serviços públicos e a reorientação do modelo de prestação do cuidado em saúde, particularmente na atenção básica, produzindo melhorias nos indicadores sanitários 4), (5.
Essas estratégias e intervenções, de forte conteúdo técnico, encontraram espaço variável nos diferentes ciclos de governos, em função dos arranjos políticos e da atuação de grupos setoriais comprometidos com o projeto de reforma sanitária no país. Sobre esse aspecto, destaca-se a atuação de entidades de Saúde Coletiva e outras afins (tais como Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES, e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - Cebes), de gestores, técnicos e profissionais de saúde nas diferentes esferas de governo, de conselheiros e movimentos sociais de saúde e, também, de membros do Ministério Público e da Defensoria Pública atuantes na área, que ampliaram a base de apoio ao SUS.
Entretanto, a melhoria das condições de saúde e do acesso aos serviços públicos ocorreu de forma concomitante ao fortalecimento do setor privado no investimento e prestação da assistência 6. Ao longo desses últimos anos, o gasto público em saúde, seja como proporção do gasto total ou como despesa per capita, permaneceu abaixo de outros países de renda média, mesmo considerando sua maior estabilidade e ampliação nos anos 2000 7. Problemas relacionados ao financiamento - entre outros, a baixa prioridade econômica e fiscal do gasto federal, que variou de acordo com movimentos de crescimento ou desaceleração da economia aferidos pelo Produto Interno Bruto (PIB) 8, e a canalização de recursos públicos para o setor privado por meio de incentivos diretos e da renúncia fiscal 9), (10 -, beneficiaram a expansão do setor privado.
A partir de 2016, as políticas em defesa da saúde como direito universal e dever do Estado não encontram acolhida no Executivo e Legislativo federal. Pelo contrário, verifica-se o avanço de decisões políticas que comprometem o efeito protetor conferido pela Constituição e Lei Orgânica da Saúde, desmontam a institucionalidade e fragilizam a base material e técnica do SUS, cada vez mais atingida por questões de ordem financeira.
Segundo recente entrevista concedida a BBC Brasil 11, o próprio Ministro da Saúde, Ricardo Barros, demonstra seu desprezo ao conhecimento científico se referindo a estudiosos da saúde como "ideólogos que tratam do assunto [da universalidade do SUS]", e qualificando como "teses malucas" a produção de uma área de conhecimento consolidada no Brasil e internacionalmente.
Por sua vez, o mercado de planos e seguros de saúde intensifica processos de internacionalização e financeirização 12, por meio de compras e aquisições, alterações no seu regime de acumulação, diversificação de produtos e busca por novas clientelas. Além disso, sua força política se confirma nas proposições do governo e de parlamentares que, favorecendo o segmento privado com medidas que envolvem a regulamentação de "planos populares", reproduzem a estratificação social e as desigualdades em saúde e submetem o direito à saúde às oscilações econômicas.
Agrega-se à conjuntura o surgimento de propostas que sugerem como solução para a crise econômica um regime de austeridade e ajuste fiscal para os próximos 20 anos (Proposta de Emenda Constitucional 241/2016 - PEC 241, aprovada pela Câmara dos Deputados em outubro de 2016, e submetida à apreciação do Senado Federal como PEC 55), com retração significativa do gasto público e sérias limitações para a garantia dos direitos sociais e do SUS. Em uma situação política em que o papel do Estado se restringe e a igualdade e a justiça social perdem valor, o setor privado tende a ampliar seu espaço no sistema de saúde.
Nesse contexto, encerramos o ano de 2016 propondo um Espaço Temático sobre "austeridade fiscal, direitos e saúde". Dando voz aos especialistas, estudiosos da política econômica, social e de saúde foram convidados a analisar, sob diferentes enfoques, os significados e possíveis repercussões dessas medidas. Com isso, esperamos fomentar o debate e renovar nossa perspectiva crítica sobre tais questões tão fundamentais ao futuro das políticas de saúde no Brasil.
Boa leitura!