versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 supl.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.2014S010
O diagnóstico da anemia em pacientes transplantados renais adultos deve obedecer aos critérios diagnósticos recomendados para a população geral (vide recomendação 1.1) (Evidência B).
• Homens: nível de hemoglobina menor que 13 g/dL;
• Mulheres e homens acima de 65 anos: nível de hemoglobina menor que 12 g/dL.
Este é um critério diagnóstico e não de intervenção.
O paciente transplantado renal deve ter a hemoglobina dosada pelo menos:
• Diariamente até 7 dias após o transplante, ou até a alta hospitalar (o que ocorrer antes);
• Duas vezes por semana por 1 mês;
• Semanalmente do mês 1 ao mês 2;
• Quinzenalmente do mês 3 ao mês 4;
• Mensalmente do mês 5 ao mês 12;
• Semestralmente após o mês 12. (Opinião)
O paciente transplantado renal que não apresentar recuperação da concentração de hemoglobina nas primeiras oito semanas após o transplante ou que apresentar queda dos valores de hemoglobina deve ser investigado (Evidência B).
No paciente transplantado, uma avaliação clínico-laboratorial da anemia deve ser realizada antes de iniciar o tratamento com AEE. Além do estoque de ferro e da função renal, fatores específicos do transplante devem ser considerados (Evidência C).
O tratamento da anemia com suplementação de ferro e uso de AEE deve seguir a diretriz de tratamento da anemia na DRC (Opinião).
O emprego de transfusões de hemácias em pacientes transplantados deve ser criterioso e maximamente restrito (Evidência B).
Os pacientes transplantados renais são considerados um subgrupo dos pacientes com DRC no qual a prevalência de anemia depende da definição empregada, da função renal e do tempo pós-transplante. Esta prevalência varia entre 20% a 45% em diversos estudos.1,2 Em estudo multicêntrico europeu de coorte com 4.263 pacientes transplantados, a prevalência geral de anemia pós-transplante (APT) foi de 38,6%. Não só a função renal foi significativamente melhor nos pacientes com menor tempo de transplante, mas também uma proporção significativa de pacientes com creatinina > 2 mg/dL apresentava algum grau de anemia, quando comparada aos pacientes com creatinina < 2 mg/dL (62,8 vs. 32%; p < 0,01).3 A prevalência de APT na população de receptores pediátricos de transplante parece ser maior quando comparada à população adulta.4
A APT mostra um padrão bifásico. Logo após o transplante, a anemia é explicada geralmente pelas perdas durante a cirurgia, pelas coletas frequentes de sangue para exames laboratoriais, expansão volêmica agressiva, e persistência de efeitos de toxinas urêmicas. Além disso, uma considerável proporção de pacientes já chega anêmico para o transplante, inclusive devido aos alvos de hemoglobina preconizados para os pacientes em diálise.2 Após o transplante, os níveis de hemoglobina normalizam-se em 8 a 12 semanas.5 Receptores que apresentam função tardia do enxerto são de maior risco para não recuperação dos níveis de hemoglobina neste período.6
Após esse período, APT pode ser secundária a diversos fatores. A função renal é provavelmente a variável que mais influencia o surgimento de APT, mas não deve ser considerada isoladamente, uma vez que a prevalência de anemia em pacientes transplantados renais é maior que a de pacientes com DRC não transplantados comparados pela depuração de creatinina.7 Deficiência de ferro é comum e deve ser investigada. Outros fatores de risco associados ao desenvolvimento de APT são o sexo feminino, idade avançada do doador ou do receptor, episódios de rejeição aguda, infecções, neoplasias, deficiência de folato ou vitamina B12, determinados fármacos imunossupressores (azatioprina, micofenolato e inibidores da mTOR), além de outros fármacos comumente utilizados no transplante, como timoglobulina, alentuzumabe, ganciclovir, sulfametoxazol, inibidores da ECA e/ou bloqueadores do receptor de angiotensina.1-3
Avaliação clínico-laboratorial cuidadosa deve ser realizada na suspeita de fatores específicos ao transplante associado à anemia (Tabela 1). Destacam-se as medicações imunossupressoras, algumas consistentemente implicadas na APT em estudos clínicos, tais como os inibidores da síntese de purinas8 e os inibidores da mTOR.9 Entretanto, a redução das medicações imunossupressoras deve ser individualizada e considerada medida de exceção para o tratamento da anemia, devido ao risco de rejeição aguda.
Tabela 1 Fatores adicionais implicados na ocorrência da anemia pós-transplante
Drogas imunossupressoras |
1. Inibidores da síntese de purinas: azatioprina e micofenolatos |
2. Inibidores da mTOR: sirolimo e everolimo |
3. Timoglobulina, alentuzumabe |
Medicações concomitantes |
1. Inibidores da enzima de conversão e do receptor da angiotensina |
2. Outras: antivirais, antimicrobianos |
Anemias hemolíticas |
1. Síndrome hemolítico-urêmica |
2. Anemia hemolítica alo-imune |
Infecções bacterianas e virais: Citomegalovírus, Parvovírus B19 |
Neoplasias: doença linfoproliferativa pós-transplante e outras |
O uso dos inibidores de calcineurina (tacrolimo e ciclosporina) e algumas infecções (citomegalovírus, Streptococcus pneumoniae e Escherichia coli) podem estar relacionados com a ocorrência de síndrome hemolítico-urêmica após o transplante. O aumento na creatinina plasmática associada a eritrócitos fragmentados, a elevação nos níveis de desidrogenase láctica e reticulocitose devem aumentar a suspeita de anemia hemolítica. Seu tratamento é complexo e envolve a retirada dos inibidores de calcineurina, infusão de plasma fresco, plasmaferese, rituximabe, e o tratamento de infecções específicas diagnosticadas. É uma complicação grave e pode levar à perda do enxerto.10
A ocorrência de infecções após o transplante, principalmente as virais (citomegalovírus e parvovírus B19), também pode ocasionar APT. Entre estes, destaca-se o parvovírus B19, com prevalência pós-transplante provavelmente subestimada e também responsável por aplasia pura de células vermelhas.11
O uso de inibidores da enzima de conversão e bloqueadores de receptor da angiotensina tem aumentado nos últimos anos, em parte devido ao possível potencial de prolongar as sobrevidas do enxerto e do paciente.12,13 Desta forma, deve-se ponderar risco e benefício ao optar pela suspensão desses fármacos em virtude de APT.
A anemia hemolítica aloimune pode ocorrer por incompatibilidade minor no sistema ABO em pacientes do grupo A que receberam um rim do grupo O ou pacientes do grupo AB que receberam um rim A ou B. A hemólise pode ser desencadeada por anticorpos anti- -A ou anti-B do doador ou autoanticorpos produzidos pelos linfócitos de passagem. Este processo geralmente é autolimitado com duração de quatro semanas, recomendando-se transfundir estes pacientes com sangue de doadores tipo O.14
Apesar de não haver consenso quanto ao impacto da APT nos desfechos de longo prazo do transplante, diversos estudos demonstram associação entre APT e mortalidade,15-20 provavelmente explicada por eventos cardiovasculares secundários à hipertrofia ventricular esquerda e insuficiência cardíaca.21,22 Da mesma forma, diversos estudos mostram associação entre APT e perda do enxerto,16-20 provavelmente secundária à hipóxia crônica do compartimento túbulo-intersticial.23
A prevalênciada APT é elevada, e apenas a minoria dos pacientes são tratados.3,19 Estudo recente demonstrou que a correção da APT está associada com melhora da qualidade de vida.24 No entanto, não há evidências robustas sobre o impacto do tratamento com AEE na mortalidade e qual o alvo de hemoglobina a ser atingido.2,25,26
Apesar de estudos em pacientes com DRC não transplantados sugerirem que a correção plena da anemia aumenta a incidência de eventos cardiovasculares e a mortalidade,27,28 a extrapolação desses dados para pacientes transplantados não é absoluta, pois a patogênese da anemia é diferente em diversos aspectos. Dois estudos recentes avaliaram a correção da anemia em pacientes transplantados e os resultados foram discrepantes,25,26 não permitindo recomendações específicas para esta população.