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A 15a Conferência Nacional de Saúde ouvirá os clamores do povo?

A 15a Conferência Nacional de Saúde ouvirá os clamores do povo?

Autores:

Julio S Müller Neto

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.31 no.10 Rio de Janeiro out. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XCO021015

A ideia compartilhada por boa parte do movimento sanitário é de que o SUS vive uma situação de crise crônica 1,2. A crise é refletida pela mídia: filas, tempos de espera absurdos; falta de leitos e medicamentos; mortes evitáveis; má gestão e corrupção são veiculados cotidianamente. Essa também é a percepção da população 3,4. O Datafolha indicou que 45% dos brasileiros elegeram a saúde como o maior problema do país, superando a soma dos outros – segurança (18%), corrupção (10%), educação (9%), desemprego (4%) e miséria (2%). É mais doído que o 7x1 que levamos da Alemanha na Copa do Mundo de Futebol 4.

SUS paradoxal

O paradoxo, assinalado por Gadelha, é que o sistema público de saúde brasileiro tem conquistas extraordinárias, consideradas as condições em que opera: programas de Imunização; DST/AIDS e Saúde da Família, cuja cobertura ultrapassa 100 milhões de pessoas; políticas de medicamentos genéricos e transplantes; Serviço de Assistência Móvel de Urgência (SAMU); controle do tabagismo e qualidade do sangue; reforma psiquiátrica e outros 5. Compreender o paradoxo implica discutir qualidade, entendida aqui comomix de acesso e efetividade, conceito que nos parece ter maior poder explicativo para as queixas e demandas da população: o acesso é difícil e quando ocorre nem sempre é efetivo e acolhedor. A escolha do temário da 15a CNS não poderia ter sido mais feliz, ao relacionar qualidade, cuidado e direito à saúde.

Os problemas relativos à qualidade e ao cuidado têm determinações política e cultural, entre outras. Estão relacionados ao subfinanciamento do SUS, sobretudo por parte da União, cuja participação relativa, comparada a estados e municípios, diminui desde 1990, hoje em torno de 45%; aos privilégios concedidos ao setor privado; à influência decisiva de segmentos do complexo industrial da saúde sobre representantes legislativos; à adesão parcial ao projeto do SUS por parte dos governantes que lembram da prioridade da saúde a cada quatro anos. Também política é a preferência dada à organização dos serviços centrados na assistência hospitalar e na urgência e emergência, autônomos e autárquicos, desvinculados da atenção primária à saúde e das redes. É um recall da velha organização pré-SUS construída nos tempos do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). A organização do sistema é uma colcha de retalhos, fragmentos descosturados, com coordenação e comunicação precárias, supridas parcialmente pela comunicação informal dos trabalhadores e usuários.

Também determinantes são as questões ideológicas e dos valores, inerentes a um sistema público universal, e as do mundo da vida e da interação social, que moldam a forma como lidamos com o cuidar que, diferentemente de tratar, é a interação entre sujeitos que buscam o entendimento e a coordenação de ações.

Não sem razão os manifestantes em 2013 reivindicavam saúde, educação e outros serviços públicos de qualidade. A voz das ruas não parece ter sido escutada no legislativo e no executivo, pois em 2015 o Congresso Nacional votou pela total abertura da saúde ao capital estrangeiro e ainda desconsiderou o movimentoSaúde+10, que havia mobilizado apoio de 2,2 milhões de assinaturas reivindicando 10% da Receita Corrente Bruta, e aprovou a Emenda Constitucional no86/2015 (EC 86), por iniciativa do executivo. Avaliação do impacto da EC 86 evidencia que apenas em 2018 haverá recurso adicional para a Saúde 6.

Inclusão do cuidado na agenda poderá ser a marca da 15aCNS

Recessão, aumento de preços e ajuste fiscal, pelo menos até 2017; crise política decorrente da diminuição de credibilidade e confiança no governo, consequência da Operação Lava Jato e promessas eleitorais não cumpridas, configuram cenários difíceis e incertos. O contexto não é favorável a novas conquistas imediatas, como o aumento do financiamento ou a expansão de programas. As políticas sociais e os segmentos sociais com menor poder de vocalização são mais afetados nas crises e há risco de retrocessos, caso não haja resposta dos interessados. Não surpreende a proposta de cobrança de procedimentos no SUS, prontamente abandonada frente à reação da sociedade. A necessidade de aumentar a arrecadação levou o governo a tentar “usar” a força simbólica da saúde para criar novo tributo, Imposto Interfederativo da Saúde, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) ressuscitada. Nova reação, novo recuo.

Poderá a 15a CNS alterar a relação de forças entre os defensores do direito à saúde e seus adversários e influenciar o mundo da política e da economia a favor do público? Tarefa difícil, mantido o cenário. A influência das conferências é exercida por meio de seu poder comunicativo para alterar a formação da vontade política e pressionar as autoridades e instituições a incluir ou excluir demandas em sua agenda de prioridades. Trata-se de um “público político fraco”, pois suas deliberações não têm caráter vinculativo, de cumprimento obrigatório 7. Mas a 15a CNS poderá sim exercer alguma influência sobre os rumos da saúde, sobretudo se for dada a importância política devida, e posterior encaminhamento, aos temas da qualidade e do cuidado, escolha sintonizada com os anseios da população. A fragmentação das demandas nesses fóruns responde ao universo de interesses ali representados e não são “defeitos” do processo de participação social. A sistematização das demandas da conferência para incluí-las na agenda governamental é atribuição do corpo técnico do governo, que deve compatibilizá-las com as necessidades de saúde.

A influência da 15a CNS também depende de sua representatividade. Os movimentos para inclusão de novos participantes por meio de plenárias populares e conferências livres foram um primeiro passo, mas se não se levar a pauta da saúde para o conjunto da sociedade continuaremos falando para poucos. A relação entre participação, representação e deliberação no âmbito do setor saúde é conflitante e mal resolvida e fragiliza o potencial mobilizador da conferência. Há algum tempo a iniciativa pelo direito à saúde deslocou seu centro de gravidade. Os usuários têm optado por buscar seus direitos na esfera judicial, que atende à demanda individual e tem caráter vinculativo, obrigatório, diferente das deliberações dos conselhos e conferências.

A 15a CNS poderá começar a diminuir a brecha entre a opinião pública e o SUS ao estabelecer compromisso em defesa do direito à saúde com qualidade. Um bom começo seria a firme determinação da extensão universal e melhoria da qualidade da atenção primária à saúde e das redes de atenção e cuidado até 2018, acompanhada de investimentos significativos na formação e educação permanente dos trabalhadores do SUS e sua incorporação decente, não precária, ao sistema público. Um sistema público universal e de qualidade nunca terá consistência e permanência se apoiado em prestadores de serviços e/ou terceirizados, sem estabilidade e sem compromisso com os valores que orientam o SUS e a organização pública: solidariedade, equidade, efetividade e democracia.

REFERÊNCIAS

1. Conselho Nacional dos Secretários de Saúde. Caminhos da saúde no Brasil. Brasília: Conselho Nacional dos Secretários de Saúde; 2014. (Conass Debate).
2. Paim J. A Constituição Cidadã e os 25 anos do SUS. Cad Saúde Pública 2013; 29:1927-53.
3. Confederação Nacional da Indústria. Retratos da sociedade brasileira. Brasília: Confederação Nacional da Indústria; 2015.
4. Leite M. Datafolha aponta saúde como principal problema dos brasileiros. Folha de São Paulo 2014; 29 mar.
5. Temporão JG. Para onde vai o SUS. Brasília: Conselho Nacional dos Secretários de Saúde; 2014. (Conass Debate).
6. A bandeira do SUS: uma saúde pública de qualidade é a principal reivindicação dos cidadãos brasileiros e o enfrentamento dos desafios para consolidá-la é prioridade da diretoria do CONASS. Revista Consensus 2015; v:1-44.
7. Müller Neto JS, Artmann E. Política, gestão e participação em saúde: reflexão ancorada na teoria da ação comunicativa de Habermas. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17:3407-16.