versão impressa ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000200014
This article seeks to redeem the historical memory of a health institution in Portugal which reconfigured itself and adapted to the social and medical needs and concerns during the twentieth century. The trajectory of this institution contributes to the history of Portuguese medicine and to the history of the philanthropy of the Portuguese colony resident in Brazil and the so called “Brazilians” that returned to Portugal, whose remittances provided the means to set up a benchmark health institution in the twenty-first century. The methodology was based on archival research in Portugal (Coimbra, Bissaya Barreto Foundation) and in Brazil (Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura) and the cross-checking of these primary sources with due historical and social contextualization.
Key words: Portuguese Colony of Brazil; assistance; tuberculosis; Fernando Baeta; Bissaya Barreto Rosa (1886-1974)
A emigração para o Brasil teve um impulso na segunda metade do século XIX, decorrente da abolição da escravatura, da dinamização de uma política que privilegiava a ida de portugueses, da intensificação dos transportes marítimos e do incremento do movimento comercial entre Portugal e Brasil. A justificação para a partida prende-se fundamentalmente por razões de ordem política e económica, reflexo da contínua desordem da economia social portuguesa (Martins, 1956) devido à falta de trabalho, falta de liquidez, por fome e endividamento (Santos, Ferreira, 2007, p.319). As populações rurais foram as mais atingidas, em especial as do norte do país. A Europa beneficiou-se do impacto económico deste fenómeno, pelo intensificar da circulação de capital, devido às remessas periódicas de capital para o país de origem e pela expansão do mercado de produtos nacionais. Entre 1855 e 1914, saiu cerca de um milhão de portugueses rumo ao Brasil (Leite, 1987, p.480). Entre 1911 e 1913, assistiu-se a uma “sangria da emigração” com destino ao Brasil,1 facto que preocupa seriamente o governo republicano, levando a um intenso debate parlamentar (Marques, 1991).
Se a maior parte dos emigrantes portugueses no Brasil era pobre e operária, os poucos que alcançaram um nível social e económico mais elevado eram chamados em Portugal por “brasileiros”. Esses brasileiros portugueses davam corpo a uma elite que dominava a colónia portuguesa no Brasil, desempenhando um relevante papel na vida social e económica do Brasil. Esta elite caracterizou-se por desenvolver e estar ligada a uma forte rede de associativismo, que emerge ainda no decurso do século XIX. De salientar a Sociedade Portuguesa de Beneficência do Rio de Janeiro, criada em 1840 com intuito de ajudar os emigrantes portugueses a encontrar trabalho, apoiar os pobres e pagar os seus funerais, servindo de modelo à emergência de outras instituições noutras cidades brasileiras. A Sociedade de Beneficência encetou por uma orientação de assistência hospitalar, aquando da epidemia de febre-amarela de 1848, com necessidade de estabelecer uma enfermaria para aí acolher doentes portugueses, levando à criação, em 1858, do Hospital de São João de Deus no Rio de Janeiro (Loureiro, 1960). Outra referência a considerar foi a criação do Real Hospital Português de Beneficência em Pernambuco, em 1855, respondendo à epidemia de cólera-morbo que assolava então o Brasil e, em particular, este estado (Silva, 1960).
A Sociedade de Beneficência emergiu a partir da proposta do Real Gabinete Português de Leitura – fundado por um grupo de 43 emigrantes, a 10 de setembro de 1837 –, exemplo da filantropia cultural portuguesa no Rio, expressão da preocupação com a presença da cultura portuguesa no Brasil, que procurava preservar e valorizar a identidade cultural.
O associativismo como via para melhor alcançar os objetivos fundamentais na vida social, em detrimento das ações isoladas ou particulares. Eram inúmeras as preocupações sociais, da elite da colónia para com os emigrantes portugueses: com os menores abandonados e delinquentes, com a assistência à velhice, à mulher, aos alienados, aos leprosos, aos doentes com tuberculose ou com sífilis.
O Brasil ... é a terra produtiva e fertilizante da filantropia e da caridade. ... rebentou aqui, desde os primeiros momentos da Colónia, resguardado de toda a utopia, o forte sen-timento de solidariedade ... . Todas as desgraças encontram um apoio valioso e um amparo abnegado. Um simples apelo à generosidade da população faz brotar donativos opulentos ... por toda a parte espalham-se casas de beneficência, os asilos, os orfanatos, os estabelecimentos hospitalares, os dispensários, as casas pias, as associações religiosas, os socorros mútuos, as devoções, as ordens e as irmandades (Paiva, 1922, p.1).
Estas e muitas outras associações, de cariz filantrópico e cultural, fruto do associativismo português, assumiram um papel muito importante na vida social e cultural da sociedade brasileira. As iniciativas compensavam a falta de assistência e de ajuda aos emigrantes portugueses e promoviam a troca cultural entre ambos os países. O Real Gabinete viria a tornar-se símbolo da colónia portuguesa radicada no Rio. A valorização da elite, pela sua ação filantrópica, passa por assumir o dever de conduzir e representar o “todo” da colónia portuguesa, conferindo-lhe coesão e identidade. O conjunto da obra filantrópica e cultural da colónia portuguesa no Brasil traduz simbolicamente a “materialização de um Portugal reinventado do outro lado do Atlântico” (Ramos, 1993, p.588-589), pela mão dos seus emigrantes.
Este pendor filantrópico da colónia portuguesa extravasa as fronteiras do Brasil e toca Portugal. As associações filantrópicas portuguesas pretendem ao mesmo tempo ser o reflexo da união da colónia portuguesa em torno da nacionalidade e da identidade portuguesas, mantidas pelo existir dessas instituições. As elites que gerem, financiam, controlam e promovem essas associações são o garante da ligação entre a colónia portuguesa e sua terra natal, entre o país de acolhimento e o país de origem.
A partida para o Brasil não implicou a ruptura com os fortes vínculos familiares com aqueles que ficaram. A maioria dos que partiam era de homens que partiam sozinhos, deixando mulheres e filhos em Portugal. A preocupação com o país natal não se prendia só por questões patriótico-nacionalistas, mas também pelas relações familiares com os que ficavam (Demartini, 2007). A educação era um aspecto caro à colónia portuguesa preocupada com a precária educação dos seus familiares em idade escolar. Existia uma genuína preocupação em melhorar a educação em Portugal.
A remessa de recursos económicos ganhos no Brasil constituía-se, para o governo português, como uma mais-valia da emigração. A dispersão familiar garantia o envio dessas remessas de dinheiro, essenciais para a sobrevivência familiar, educação dos filhos, estímulo ao investimento na propriedade agrícola e construção civil. As remessas funcionam como instrumento de monetarização da vida rural, revelando serem, portanto, um importante aspecto da política financeira do Estado (Pereira, 2011).
Com o emergir da Primeira Guerra Mundial, a colónia portuguesa mobiliza-se e une-se em torno de valores superiores, num apelo à sua identidade (Paulo, 1995), pondo de lado as suas simpatias políticas do combate de ideias travado em Portugal.
A Alemanha declara guerra a Portugal em março de 1916. Por este tempo, a colónia portuguesa domiciliada no Rio de Janeiro vivia ainda imersa na discussão da mudança radical do regime político em Portugal. Monárquicos e republicanos hostilizavam-se reciprocamente. Notícias sobre a declaração de guerra da Alemanha e a consequente entrada de Portugal no conflito europeu contribuíram para que a colónia portuguesa do Rio colocasse de parte a contenda que os separava e se unisse de novo “num só bloco para acudir de pronto a mãe pátria, naquele transe difícil que já se divisava no horizonte” (Lista de membros…1916, p.1).
Cabe à Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro a iniciativa de promover a união da colónia, convocando para tal, uma reunião geral para a noite de 16 de março de 1916, com todas as agremiações portuguesas aí existentes e os vultos de maior relevo – facto que acontecia após seis anos de afastamento entre adeptos da monarquia e defensores da república (Relato…, 1916, p.2). Desta reunião resulta a Grande Comissão Pró-Pátria (Figura 1), encabeçada pelo visconde de Moraes.2 Instalada e organizada, lança uma primeira subscrição, entre os portugueses radicados no Brasil, visando obter donativos para a grande obra que se perspectivava:3 foram realizados festivais e espetáculos públicos e, por todo o Brasil, onde houvesse um núcleo importante de portugueses, foi aberta uma subscrição subsidiária cujo produto incorporava-se na Grande Comissão. Mantinham-se, deste modo, o espírito patriótico da colónia e os deveres cívicos para com a pátria de origem (Lista de membros..., 1916).
Figura 1 : A diretoria da Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos da Guerra. Ao centro: visconde de Moraes (à esquerda) e Albino Sousa Cruz (à direita) (A Escola, 19 abr. 1930, p.19)
Para lá do agravamento económico, Portugal viu duzentos mil homens serem mobilizados, dos quais morreram cerca de dez mil e milhares ficaram feridos. Com a partida do Exército português para a linha da frente, no norte de França, a Grande Comissão organiza-se numa associação destinada a amparar os órfãos dos soldados portugueses mortos na guerra (Lista de membros..., 1916, p.12) – instalava-se a Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos da Guerra. A Assistência da Colónia Portuguesa configura-se como iniciativa coletiva, tradutora das preocupações, mobilizações e contribuições da colónia portuguesa a partir do Brasil, em prol do bem público e da assistência aos órfãos nacionais desfavorecidos e que sofrem.
Para a administração e aplicação do fundo patrimonial, obtido por diferentes subscrições em favor da Pró-Pátria, constituía-se em Lisboa uma delegação especial, com a função de organizar o registo dos órfãos e de pagar a cada órfão uma pensão mensal de nove escudos, sem limite de idade e enquanto não eram instalados os asilos que a mesma delegação procurava mandar construir (Relato…, 1916). Não era propósito da Assistência substituir-se à ação tutelar do Estado no socorro às vítimas da guerra, mas apenas a de prestar apoio, além de uma “modesta e patriótica assistência”. Neste sentido, a obra a empreender deveria ser orientada para a proteção e educação dos órfãos:
aplicar-se ao agasalho, educação e instrução desses órfãos o critério que se coadune com a sua condição social e de modo que a influência salutar da educação que receberam possa exercer-se na camada social de que proveem. ... De um modo geral, a instrução a ministrar-lhes deverá contribuir a garantir-lhes os conhecimentos indispensáveis para poderem ser na sua família, no seu meio social e nas suas profissões, modelos e exemplos de competência, sem lhes criar ambições em desacordo com sua condição, com suas faculdades e com os interesses familiares. Facultando a todos aqueles que revelem capacidades, aptidões e vocações para outras carreiras superiores os meios de prosseguirem nos seus estudos e de se tornarem uteis á Pátria e á comunidade (Projeto definitivo…, 8 jul. 1919, p.2).
Este asilo-escola ministraria, em regime de internato, a educação e instrução dos filhos, de ambos os sexos, dos soldados mortos em combate (Projeto definitivo…, 8 jul. 1919, p.3). Esclarecia o jornal O Cruzeiro (A Escola..., 19 abr. 1930, p.42), que este asilo ministraria uma educação assente “na boa higiene física e moral, no trabalho manual pedagogicamente dirigido, na convivência de mestres e educandos com a natureza e a terra, segundo os princípios já estabelecidos pela pedagogia mais moderna, e na qual se evitará a tendência livresca, sedentária e teórica”.
Seria criado um único Instituto, localizado num ponto central do país, a uma distância equidistante de Lisboa e do Porto. Era Coimbra que “oferecia as vantagens de ligações ferroviárias... e da maior facilidade à fiscalização da Delegação de Lisboa” (Projeto definitivo …, 8 jul. 1919, p.4), e aí recaiu a opção de levantar os edifícios do Instituto. Após longa procura do espaço adequado e desejado para a obra, a delegação da colónia em Portugal, encontra a propriedade, denominada Quinta dos Valles comprando-a (Relatório…, 1921, p.1).
No projeto dos edifícios do Instituto foi adotado, “como tipo arquitetónico, a antiga casa portuguesa, que melhor se adapta à região onde se projeta construir o referido Instituto” (Memória…, 15 jul. 1922, p.2). Este projeto integra diversos edifícios num complexo que incluía uma capela, a diretoria, os edifícios escolares (com dois pavilhões, um para o sexo masculino e outro para o sexo feminino), os dormitórios, o “ginásio”, os refeitórios e cozinhas, a “lavandaria e desinfectologia”, hospital e outros edifícios destinados a oficinas para o “ensino profissional” (Memória…, 15 jul. 1922, p.2-7). Uma concepção “higienizada” da instituição e, através dela, do corpo da criança. A infância constituía-se como o momento ideal para a criação de hábitos que possibilitariam a “higienização” dos indivíduos. A educação ocupa um espaço central na implementação de práticas higienistas, num tempo de “expansão” da higiene como promotora de saúde e combate de grandes flagelos sociais da época, como a tuberculose. Uma instituição higiénica pretendia transformar a vida dos seus moradores, alterar costumes, controlar o espaço, inventar uma tecnologia ambiental e doméstica adequada. A casa dos órfãos, pela sua organização e regulamentação, emerge como via de implementação de um cultura de vida.
Incidentes de diversa ordem atrasaram os trabalhos da construção e fizeram com que nesta se despendesse a quase totalidade do fundo patrimonial. Só em 1930 (a 19 de abril) era noticiado pelo jornal O Cruzeiro a conclusão dos edifícios (Figura 2) destinados à Escola, “Anuncia-se para breve a inauguração das escolas fundadas em Portugal pela Colónia Portuguesa do Brasil, e destinadas a recolher e educar como seus pupilos os órfãos dos soldados mortos na grande guerra da Europa na qual participaram os exércitos portugueses” (A Escola..., 19 abr. 1930, p.41).
A demora na concretização do plano de obras, prejudicou os propósitos iniciais. Tarde demais para que muitos dos órfãos pudessem beneficiar dessa estrutura de acolhimento, assistência e educação.
A tuberculose foi um flagelo que assolou Portugal entre finais do século XIX e a primeira metade do XX. Quase todos os portugueses mobilizados eram-no sem grande critério de seleção, alguns decerto já estavam afetados com tuberculose. Na linha da frente, a fome e as condições adversas de higiene e salubridade motivaram o alastrar da doença entre os militares. Cerca de quatro mil combatentes regressaram a casa com tuberculose; “que foi feito dos nossos 4.000 ‘serranos’ tuberculisados em França e África e que regressaram a Portugal? A sementeira de bacilos que deverão ter efetuado por essas cidades, vilas e aldeias, terá dado frutos opimos” (Patrício, 1940, p.7; destaque no original). A miséria é grande, a tuberculose alastra.
Os tratamentos são pouco eficazes, “apesar do tratamento de Brehemer, do pneumotórax, da sanocrisina etc., o mal lá continua arruinando organismos, aniquilando-lhes todo o esforço produtivo ou matando-os de vez e zombando de tanto que não sejam medidas de ordem social” (Porto, 1927, p.5), e os recursos de saúde são escassos. O número de camas em sanatórios e em enfermarias de hospitais não ultrapassa o número de quinhentas e essas, em condi- ções deploráveis; “calcula-se em 25 mil o número de casos que em Portugal a tuberculose fere de morte, cabe uma cama a cinquenta casos! Imagine-se a nossa penúria” (Porto, 1927, p.24). Em 1932, estimava-se que em Portugal existiam cerca de 150 mil tuberculosos, dos quais trinta mil morriam anualmente (Goemaere, 1942). Existiam apenas seis dispensários e quatro sanatórios. Impunha-se que a sociedade portuguesa acordasse do sono suicida no qual estava imersa, enquando outros países europeus desenvolviam um grande esforço no combate à doença e na promoção da saúde. Impunha-se melhorar as condições gerais e de higiene da vida, criar centros e estabelecimentos de profilaxia da criança, educar a população para o perigo do contágio (Porto, 1927).
O alastrar da tuberculose não era um problema encarado com seriedade e combatido eficazmente. Emergem novas preocupações assistenciais. Impõe-se intervir perante a leviandade da assistência que é prestada aos tuberculosos de Coimbra. O jornal A Voz de Coimbra (A assistência..., 28 mar. 1928, p.5) registra então:
Um ilustre entrevistado fala do número de micróbios por metro cúbico, apanhando-os às mãos cheias, pesando-os aos quilos, matando-os com pós de keating, como quem mata carochas, introduzindo-as num forno crematório ou despejando-as num quintal para adubar as abóboras, as nabiças ou as melancias?! Parece que não importa a qualidade de micróbios! Parece que são todos os mesmos! Parece que levedura de cerveja e bacilos da tuberculose são patogenicamente iguais! ... Porque não têm falado os Senhores Doutores Bissaia Barreto, Luis Raposo, José Rodrigues, Armando Gonçalves, e muitos outros a quem toda a cidade (ricos e pobres) deve incalculáveis serviços desinteressados e gratuitos, ao lado da extrema prontidão e excepcional carinho? ... O problema deve resolver-se pelo lado de mais fácil, mais útil, mais rápida e mais económica solução que é também a única viável. Queremo-nos referir à adaptação do Hospital dos Lázaros a Hospital de Tuberculosos, onde já existem tuberculosos .... Depois ou ao mesmo tempo, criação e organização de um dispensário anexo, e construção de um Sanatório nos arrabaldes da cidade.
Não existem instituições adequadas a acolher e tratar o doente com tuberculose. A Assis-tência Nacional aos Tuberculosos parecia ignorar o centro do país (Veiga, 5 jan. 1937, p.1). Iniciara-se um debate sobre a criação e localização de um sanatório para combater o flagelo em Coimbra. Foi sugerida a adaptação do antigo Convento de Santa Teresa (no Penedo da Saudade) para sanatório, sendo de imediato refutada esta opção pelo médico Bissaya Barreto4 considerando ser este um programa desacertado da realidade, inaceitável, mortífero, “que faria a morte dos pobres tuberculosos e que conspurcaria a zona de maior turismo de Coimbra” (Barreto, 1964, p.47).
Como desperta Bissaya (Figura 3) para a questão da tuberculose? Como, sendo ele cirurgião e professor de cirurgia, aparece a tratar do problema da tuberculose? O mote foi um desafio lançado no jornal Gazeta de Coimbra por Vieira de Campos5 “O que pensa sobre isto o Senhor Presidente da Junta Distrital?” (Barreto, 1970, p.9). Bissaya responde ao desafio lançado rejeitando liminarmente a proposta, encarando-a como uma verdadeira “monstruosidade, ... um crime lesa cidade, [por] ir conspurcar e praticamente inutilizar a zona da futura expansão de Coimbra! E mais, pelas condições climáticas e de exposição do Convento de Santa Teresa, o Sanatório, ali instalado, seria a antecâmara da Câmara Mortuária dos Tuberculosos!” (Barreto, 1970, p.9).
Figura 3 : Professor Bissaya Barreto, numa aula teórico-prática, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, década de 1930 (Centro de Documentação Bissaya Barreto, Coimbra)
Na presidência da Junta de Província da Beira Litoral6 (entre 1927 e 1974), Bissaya Barreto vai desenvolver uma ação preponderante no domínio da saúde em Portugal, assente numa concepção de medicina social que o vai levar a conceber, planear, criar e organizar um verdadeiro “arsenal” de equipamentos médico-sanitários, que vão funcionar na província da Beira Litoral. A luta antituberculose é um dos eixos fundamentais de atuação ditada pela importância da doença, do pânico que levantava e do perigo que representava para a “saúde dos povos”. Lança uma campanha que durará décadas, tendo como preciosos instrumentos de luta os artigos que escreve e divulga na imprensa escrita da cidade, os cartazes e panfletos, as sessões públicas. Mas o grande instrumento mobilizador foi o jornal A Saúde,7 cuja campanha era orientada pelo lema: “Pelos tuberculosos. Contra a tuberculose” (fev. 1934, p.4).
Bissaya leva o assunto à discussão na Comissão Administrativa e Executiva da Junta Geral do Distrito de Coimbra, na sessão de 15 de março de 1928, demonstrando que aquele espaço não devia ser o eleito porque ficava dentro da cidade e num dos bairros novos, o que prejudicava grandemente seu desenvolvimento. Fica incumbido de encontrar a solução para este problema (Atas…, 15 mar. 1928). Ao mesmo tempo, exerce influência junto do poder central, para que a pretensão de Vieira de Campos não possa vingar (Barreto, 1964, p.47).
Bissaya entendia que o internamento de tuberculosos deveria ser em local afastado dos grandes aglomerados de população. Deveria ser procurado um local com as melhores condições para aí internar os doentes visando à cura, mas sempre afastado do centro urbano. O ideal seria instituir um regime sanatorial e não internar num hospital. A proliferação dos sanatórios teve por objetivo dar resposta à crescente necessidade de tratamentos, através do acolhimento de um grande número de doentes em zonas balneares e montanhosas, com níveis de poluição inferiores aos registados nas grandes cidades, e onde a recuperação dos doentes, em especial com tuberculose, era favorecida pelo repouso, ar puro e uma alimentação equilibrada. A opção de Santa Teresa, defendida pela Faculdade de Medicina, traria para o meio da cidade um “centro de concentração de tuberculosos”, levando Bissaya (A assistência..., 28 mar. 1928, p.2) a traçar a caricatura do problema:
ponha a hipótese dum hospital com 400 leitos; por eles passam 1.500 tuberculosos por ano; de modo que são 1.500 bacilosos que desembarcam na Estação Nova, que frequentam as hospedarias e restaurantes da Baixa, que pernoitam em muitas casas sem ar, sem luz e sem sol, que recolhem de noite por baixo preço quem aparece, são 1.500 tuberculosos por ano que percorrem as ruas da cidade, que andam nos elétricos, nos carros e nos automóveis, que frequentam os passeios e jardins da cidade, são aproximadamente outros tantos 1.500 tuberculosos que, pedindo ou recebendo alta, se deixarão ficar ainda mais alguns dias em Coimbra; são muitos indivíduos de família desses tuberculosos, alguns tuberculosos já também, que lhes vêm de visita e que, frequentando a cidade, contribuem para a sua infecção. ... atrás daqueles tuberculosos vêm outros chamados pela existência dum grande hospital de tuberculosos em Coimbra. Esses doentes ficam nos melhores hotéis, porque tem chauffage, são retidos aqui porque o clima é mais temperado do que nas Beiras, demoram-se porque é preciso fazer estudos ou tratamentos prolongados e nós assistimos à infiltração da tuberculose por toda a cidade. ... Trazer a Coimbra todos os anos cerca de 2.000 tuberculosos que antes de se hospitalizar percorrem mais ou menos demoradamente a cidade, que a infectem que a contaminem, é mau, é péssimo mesmo, mas as suas consequências são dum perigo incalculável e que a cidade precisa de ver.
Assim, perante um alarmante problema de saúde pública que alastrava na região e perante a rejeição duma “solução”, impunha-se o dever de encontrar uma nova saída para o problema. De entregar à cidade um espaço apropriado ao tratamento e profilaxia da tuberculose, um sanatório, numa época em que não existia medicação ativa, específica para a doença nem espaço apropriado para acolher os doentes nos hospitais da Universidade de Coimbra. Em sessão da Comissão Administrativa e Executiva da Junta Geral do Distrito de Coimbra é comunicada a localização apropriada detentora das condições essenciais para a instalação do sanatório: “pelo mesmo Exmo. Presidente foi lido um extenso documento que vai ser assinado pelas chamadas forças vivas da cidade dirigido à Colónia Portuguesa do Brasil pedindo a cedência do Instituto destinado aos órfãos da Guerra, para ali ser instalado um Sanatório Antituberculoso de planície – em S. Martinho do Bispo” (Atas…, 15 mar. 1928, p.129).
Os edifícios já construídos do Instituto tinham a localização ideal e as características fundamentais que um sanatório deveria ter para uma eficaz assistência em prol da cura e profilaxia da tuberculose. A imprensa tomava o partido desta opção e divulgava o espaço (A assistência..., 28 mar. 1928), fazendo a propaganda que em Portugal não existia nada semelhante a esta edificação moderna, disposta em pavilhões de excelente construção, com todos os pavimentos em cimento armado, com dormitórios com capacidade para 350 a quatrocentos doentes, com amplos refeitórios, cerca de trinta casas de banho, lavandaria e cozinha a vapor, rouparia, casas de aulas, gabinete de professores, casas para oficinas e pessoal, casa isolada para o director etc. Os pavilhões expostos a nascente, a sul e poente, rodeados de vinte hectares de pinheiros e dois hectares de terreno arável. Água em abundância, distribuída por todos os pavimentos, pátios expostos ao sol, com muita luz. Este era o esquema que se pretendia para os tuberculosos.
A arquitetura era elemento contribuinte para a expectativa de cura, tratamento paliativo e controle da doença. A luta contra a tuberculose em Portugal assentou no projeto, implantação e construção de edifícios arquitetónicos com especificidades terapêuticas, de isolamento, de controlo e de usufruto de teorias salutogénicas que reinavam no mundo da medicina académica (Tavares, 2005). Também pensar, planear e organizar um sanatório para Coimbra passava por este entendimento. As instalações do Instituto e sua requalificação iam ao encontro da perspectiva do sanatório ideal e possível. Impunha-se aproveitar um precioso recurso, sem utilidade funcional.
Bissaya, na qualidade de presidente da Junta, aborda a colónia portuguesa no Brasil, através do visconde de Moraes, e mobiliza outros portugueses (entre os quais Albino Sousa Cruz e a família Ceppas), sensibilizando-os para a cedência ao governo português dos terrenos e edifícios já construídos na Quinta dos Vales, transformando a Escola Pró-Pátria num hospital-sanatório.8 Com este pedido argumenta que, se por um lado, já passaram mais de 12 anos após a guerra (não existindo órfãos em condições de ser internados), por outro lado, as estatísticas de saúde demonstram que em Portugal há pelo menos “cem mil” tuberculosos, dos quais mais de “noventa mil” espalham a doença e a morte pelas aldeias, vilas e cidades, sendo este o grande perigo a debelar (Carta..., 9 jun. 1928, p.2).
Perante a inviabilidade material de se dar cumprimento ao programa inicial das obras e sensível à problemática do flagelo da tuberculose, a diretoria da Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos da Guerra aprova por unanimidade doar os terrenos, imóveis e bens móveis da Quinta dos Vales, em Coimbra, ao governo português, para aí instalar um sanatório para tratamento de tuberculosos:
1º Dar por findos os trabalhos da instituição denominada Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos da Guerra, dissolvendo-a.
2º Doar ao Governo Português a Quinta dos Vales, em Coimbra, de propriedades da instituição, com os edifícios nela construídos, obrigando-se o Governo sob pena de nulidade da doação, a converter esses mesmos edifícios num sanatório para tuberculosos ao qual serão recolhidos: (a) os sobreviventes da grande guerra, soldados e marinheiros, quando atacados de moléstias pulmonares; (b) órfãos, filhos dos que tombaram em defesa da pátria, nos campos da França ou da África; (c) os portugueses residentes no Brasil que regressem a Portugal atacados de tão nefasta moléstia; (d) os filhos destes quando residentes em Portugal, e em igualdade de condições.
3º Autorizar a entrega à repartição geral da Assistência Pública, em Portugal, o saldo dos fundos existentes no Brasil e igualmente entregue ao Governo Português para que este ... distribua o saldo em dinheiro pelos órfãos pupilos da Assistência proporcionalmente à idade de cada um até ao limite de 15 anos para os meninos e de 18 anos para as meninas, conforme o regulamento (Deliberação…, 26 dez. 1930, p.2).
O governo português aceita a doação para aí instalar o Hospital-Sanatório da Colónia Portuguesa no Brasil, destinado a indivíduos tuberculosos do sexo masculino,9 definindo também que têm preferência na admissão doentes antigos combatentes (do Exército ou Marinha) da Grande Guerra; filhos dos que combateram em defesa da pátria na França ou em África (órfãos de pai ou mãe), portugueses residentes no Brasil que regressem a Portugal e seus filhos, quando aqui residentes.
O artigo 2º desse decreto, ainda hoje em vigor, refere que a doação será nula, revertendo os bens em favor da Real Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência do Rio de Janeiro, caso o governo português dê aplicação diversa desse fim ou caso não respeite a preferência na admissão de doentes.
Bissaya viaja até à Alemanha e Suíça, para aí conhecer a atividade dos grandes centros de combate à tuberculose e sua organização, documentar-se e estudar sobre a luta antituberculosa e o tratamento de doentes. Esta missão ao estrangeiro revelou ser fundamental para a instalação e apetrechamento dos sanatórios que se criaram em Coimbra. Em Davos visita o Schaltzalp, considerado o melhor sanatório do mundo. Ali aprendeu as noções e os princípios básicos para instituir no sanatório da Quinta dos Vales. Iniciam-se então, os trabalhos de transformação e adaptação da Escola Pró-pátria a sanatório, constituindo-se uma Comissão Administrativa em fevereiro de 1931, integrando, entre outros, Bissaya Barreto e Alberto Ceppas,10 “brasileiro de torna viagem”, benemérito, que representava e assegurava os interesses da colónia portuguesa do Brasil, na orientação e seguimento do projeto.
A 6 de junho de 1935, é inaugurado o Hospital-Sanatório da Colónia Portuguesa no Brasil (Figuras 4 e 5). A Coimbra acorre gente vinda de todo o país para assistir aos grandiosos festejos que marcariam a inauguração do maior e melhor organizado sanatório que então entrava em funcionamento. No “Auto de abertura e inauguração do Hos-pital” (6 jul. 1935) fica expresso que preferencialmente serão admitidos os “antigos combatentes da grande guerra, do exército e da armada; os filhos dos que, em defesa da Pátria, combateram na França ou na África, órfãos de pai ou mãe; os filhos dos portugueses residentes no Brasil que voltem a Portugal e os filhos destes quando em Portugal residam”.
Figura 4 : Sanatório da Colónia Portuguesa no Brasil (1935), vista da entrada principal (Centro de Documentação Bissaya Barreto, Coimbra)
Figura 5 : Sanatório da Colónia Portuguesa no Brasil (1935), vista aérea. Repare-se nas galerias de cura, à direita da imagem (Centro de Documentação Bissaya Barreto, Coimbra)
Realizam-se grandiosas festas nos jardins do hospital: Grandioso Jantar e Baile de Romantismo, Cortejo Medieval, Torneio Medieval (Barreto, 1970, p.64-67). Inauguração e festas foram amplamente divulgadas pela imprensa, nacional e regional, enquanto empreendimento de assistência do Estado Novo.
O novo hospital-sanatório tinha capacidade para acolher quatrocentos doentes e representava o que de mais moderno se fizera até então, pela sua concepção e conforto, servindo de modelo a outras instituições que surgiram no país. Tinha a particularidade de ter galerias de cura, duplas, separadas, para verão e para inverno. O edifício central comportava oito enfermarias com as galerias de cura anexas, quartos de primeira classe (quartos de “luxo” providos de appartement), sala de operações, três salas de refeições para os doentes, salas de estar, de jogos, de leitura e bilhar, sala de cinema (equipada com máquina de 35mm com capacidade média para trezentos lugares), cozinha (a vapor, que garantia cerca de seiscentas refeições de cada vez), esterilização e capela. Chão e paredes são forrados a mármore e azulejos e estão distribuídas pelo espaço porcelanas decorativas, “em tudo se pensou, com minúcia e largueza de vistas, ciência e sensibilidade, higiene e gosto artístico, espalhando ao redor de Coimbra os padrões do que deve ser e tem de ser feito ao redor de todas as cidades de Portugal” (Colaço, 1936, p.7). Este edifício funcionaria como peça fundamental do arsenal de combate contra a peste branca, pois a “luta pressupõe elementos de combate, armas e munições, e este material não se consegue sem meios materiais” (Barreto, 1970, p.88). Em edifícios separados estavam instalados o laboratório de análises, a padaria, a lavandaria e costura, as oficinas de mecânica, serralharia, eletricidade, as caldeiras e garagens.
Ocupava uma importante área de 6.400 metros quadrados, cercados de cuidados jardins, densos pinhais e de eucaliptos (Obra..., 1938), compreendendo uma zona agrícola com produção de leite de vaca, carnes de porco e galinha, ovos, frutas e legumes para consumo do hospital.
A direção do Hospital-Sanatório coube ao médico Armando Gonsalves, também diretor do Dispensário Antituberculoso que a Junta Geral instalou no Pátio da Inquisição. O diretor residia no hospital, disponível de dia e de noite. Os cuidados de enfermagem estavam assegurados por enfermeiras religiosas, pertencentes às Irmãs de São Vicente Paulo, “que com o seu zelo, o seu carinho pelos doentes, lhes fazem uma assistência que ora contribui para o seu restabelecimento, ora os ajuda a sofrer resignadamente a sua doença. Houve neste Sanatório a preocupação de olhar com especial interesse para o espírito e para a alma do tuberculoso” (Obra..., 1938, p.4). Aqui, eram internados doentes vindos de todo o país, encaminhados pelos diferentes dispensários, onde poderiam aí encontrar meios de cura:
a Obra Antituberculosa de Coimbra que legitimamente deveria pensar apenas nos seus desprezados tuberculosos, não limitou o carinhoso valor dos seus serviços à sua região, estendeu-se a Portugal inteiro, numa elevada e rara compreensão e raro critério, sentindo bem que somos portugueses e doentes. E assim … aqui estou eu que sou do Algarve e pobre como Job tendo por companheiros alentejanos, minhotos, estremenhos, beirões e transmontanos tão ricos de carência de saúde como pobres de meios para obter (Veiga, 5 jan. 1937, p.3).
Por ali passou o poeta popular António Aleixo que, vindo do Algarve, padeceu de tuberculose e foi internado em junho de 1943, repartindo sua vida entre estadas em Coimbra e Loulé, sua terra natal, até morrer (em novembro de 1949), dedicando a Bissaya e Armando Gonsalves alguns versos, onde plasmou sua admiração e gratidão.
Aquando da admissão do doente no sanatório, era-lhe entregue um regulamento interno (Regulamento..., 1932) ao qual ficava sujeito, visando harmonizar a vida sanatorial nas suas diversas vertentes: médica, profilática, social. Este regulamento deixa transparecer que era imperativo respeitar todo um conjunto de cuidados e um regímen, aos quais o doente tinha de se submeter, para que a cura da sua doença fosse um facto. Tudo se resume à “higiene do tuberculoso” e ao seu “tratamento higiénico-dietético”. Este sanatório é apresentado como tendo uma grande influência na cura da tuberculose, mais pela higiene a que é submetido do que pelo clima. Na introdução esclarece que:
A única preocupação do doente sanatorizado deve ser a cura. Ora, ela depende sobretudo do próprio doente e principalmente do escrúpulo e do rigor com que cumprir as disposições regulamentares e os conselhos médicos que lhe forem dados. O doente não se deve esquecer que o tuberculoso é sempre um portador de bacilos e que, por consequência, não deve escarrar no chão, não deve escarrar no lenço, não deve engulir os escarros. Não deve esquecer que os escarros secam, se reduzem a poeiras, que o ar mantém em suspensão, capazes de propagar a doença e de reinfectar o próprio dono da expectoração; as doenças do estômago e dos intestinos podem ter sua origem nos escarros deglutidos (Regulamento..., 1932, p.3).
A preocupação com a higiene pública e individual, evitando a disseminação da doença a partir das prováveis fontes bacilíferas levou a que fosse imperativo adotar medidas tendentes a educar os doentes, na esperança de corrigir maus hábitos e educar para a saúde pessoal e pública. Fixava-se uma listagem de comportamentos corretos a adotar e a respectiva explicação dos diversos aspectos de higiene a atender: a higiene da tosse, da pele, da toillette, da cara e das mãos, gastrointestinal, do vestuário, da casa, do quarto, do espírito, exercícios respiratórios e higiene geral. Eram estes os aspectos essenciais a atender e vigiar pelo doente, durante seu internamento, como via para evitar o contágio assim como forma de adquirir novos hábitos para seu futuro. A higiene assume a centralidade na vida sanatorial, padronizando os comportamentos nos diversos espaços e tempos.
O Regulamento (1932) propriamente dito, era dividido em “Regulamento da casa de jantar”, sobre a disciplina e higiene das mãos; “Regulamento interno dos doentes”,11 sobre visitas, modos e locais para escarrar, higiene pessoal e do ambiente, cumprimento escru-puloso das prescrições médicas, disciplina, consumo de cigarros e bebidas alcoólicas, moral, “disciplinar a tosse”; “Regulamento das galerias de cura”, modos de permanecer nas galerias de cura, duração, vestuário a usar, proibidos jogos, cigarros e visitas, conversa moderada, modo de uso das cadeiras de cura; “Regulamento dos passeios e de saídas”, condições em que são permitidos, onde é proibido e permitido ir, modo de estar nos passeios; “Regulamento das casas de banho”, modo de aceder e permanecer nas casas de banho, periodicidades dos banhos em “semanas alternadas”, temperatura das águas e do ambiente.
Durante o tempo de permanência no sanatório, era necessário obedecer às instruções rigorosas da disciplina vigente, que punia com faltas disciplinares os desobedientes, rebeldes e infratores. A questão prendia-se sobretudo com a segurança para evitar o contágio. Nem sempre foi pacífica a vida neste sanatório, nem foi fácil aí manter a disciplina e a ordem. Abundaram militares e marinheiros, delinquentes da Alfama e Mouraria, doentes transferidos de outros sanatórios por indisciplina.
A colónia portuguesa no Brasil era mais que um prolongamento de Portugal do outro lado do Atlântico. Muitos dos que partiram não o fizeram com carácter definitivo. O retorno puro ou temporário, segundo um movimento pendular entre idas e regressos, ritmado pelos negócios, pelos afazeres ou para tratar de questões pessoais (descansar, visitar familiares, marcar presença em festas), assumiu uma grande importância nas terras que os viram partirem (Maia, 2009). Os transportes mais rápidos e confortáveis permitiam o regresso dos emigrantes endinheirados. Os portugueses emigrantes, regressados do Brasil, os “brasileiros de torna viagem” que partiram pobres, venceram e regressaram depois exibindo sua riqueza. Entre os finais do século XIX até ao início da Segunda Guerra Mundial, estes brasileiros endinheirados, configuraram-se como verdadeiros agentes de investimento e de desenvolvimento. Também a vertente filantrópica e da beneficência lucrou com o êxito económico dos “brasileiros” regressados, o que se traduziu no apoio às festas locais, na construção de salas de espetáculo, escolas, mas também de hospitais e asilos (Maia, 2009). A colónia não desligou seu interesse pelo sanatório, mantendo sempre uma ligação e relação manifestadas pelas frequentes visitas dos emigrantes que viajavam do Brasil a Portugal.
Desse retorno de “brasileiros” filantrópicos, muitos passaram em visita pelo sanatório, quer apreciando o resultado das contribuições e remessas da colónia portuguesa, quer colhendo informações para testemunhar no Brasil o bom resultado da sua beneficência e solidariedade. Diversas foram as visitas de representantes da colónia portuguesa no Brasil, dando sempre nota do seu agrado pela obra desenvolvida (Figura 6). Sousa Cruz,12 após visita realizada ao sanatório, deu conta da sua satisfação pelo que encontrou e pelo destino duma obra que, quando construída, já não tinha fundamento de existir (Cruz, 23 set. 1948).
Figura 6 : Visita de membros da Colónia Portuguesa ao Brasil, setembro de 1937 (Centro de Documentação Bissaya Barreto, Coimbra)
A terapêutica era escassa, limitava-se ao tratamento sintomático, “acalmar a tosse, facilitar a expectoração, combater a febre, reduzir os suores, estimular o apetite, dar repouso e ar puro e era tudo” (Barreto, 1970, p.69). O programa de tratamento, idealmente feito num sanatório onde era proporcionado “aos doentes todos os elementos de que precisavam para poderem tirar o máximo de proveito da terapêutica antituberculosa” (Patrício, 1945, p.68), incluía o regime de repouso, alimentar e alguns medicamentos. É importante perceber como é que o fator repouso se articula com o clima, ao mesmo tempo que se explicam as características arquitetónicas do próprio sanatório, e a razão de ser das galerias de cura, dos solários e espreguiçadeiras,
o repouso dos doentes de peito diminuiu a atividade pulmonar, reduzindo o número de respirações por minuto e tornando-as ao mesmo tempo menos amplas e menos profundas. ... a redução da atividade respiratória melhora o processo inflamatório dos pulmões e evita até certo ponto a disseminação do material inflamatório através dos brônquios e dos vasos sanguíneos e linfáticos, ou a difusão das toxinas pelos tecidos orgânicos ... facilita o mecanismo das defesas naturais. O repouso no leito, em posição horizontal, determina também a estase sanguínea nos pulmões, uma congestão passiva que estimula a formação de tecido cicatricial (Patrício, 1945, p.72-73).
O tratamento cirúrgico incluía o pneumotórax artificial, “Forlanini13 a dar repouso ao pulmão, injetando gás na cavidade pleural, e assim, com o pneumotoráx artificial, a chamada colapsoterapia, completada ou não com a secção de bridas intrapleurais, procurámos estar à la page nos estabelecimentos que havíamos fundado. Fizemos as primeiras frenicectomias e as toracloplastias pelo método de Sauerbruch, que vimos operar em Berlim” (Barreto, 1970, p.70). Na década de 1950, o tratamento com recurso a pneumotórax artificial entra em desuso.
A descoberta do BCG pelo Instituto Pasteur de Paris permitiu à medicina munir-se de uma potente arma profilática, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, através das campanhas de vacinação em massa. O quadro epidemiológico da doença em Portugal alterou-se consideravelmente. Na década de 1940, surgem os antibióticos ativos, específicos contra o bacilo de Koch14 e começam a ser administrados aos doentes quando o arsenal antituberculoso já estava em pleno funcionamento. Toda a quimioterapia específica aumentou a esperança de vida, morrendo menos doentes de tuberculose. Portugal atingiu uma situação que outros países já haviam conquistado; os sanatórios detêm leitos não ocupados e tem início uma fase em que a administração da quimioterapia da tuberculose pulmonar é feita em regime ambulatório.
Na década de 1960, com a nova terapêutica e os novos critérios de tratamento em ambulatório da tuberculose (existência de uma rede de controlo e da descoberta de antibióticos eficazes), são encerrados alguns sanatórios. O Hospital-Sanatório da Colónia Portuguesa do Brasil vê progressivamente diminuída sua ação assistencial. As importantes instalações de que dispõe começam a ficar desaproveitadas, e, tendo a lotação de 420 camas, raramente internava mais de uma centena de doentes, os quais poderiam ser transferidos para os Sanatórios do Caramulo (Parabéns..., 18 fev. 1969).
Por este tempo, verifica-se uma enorme carência de leitos no âmbito das especialidades de cirurgia-geral e ortopedia-traumatologia. A lotação oficial das unidades hospitalares gerais existentes em Coimbra representava cerca de metade das necessidades previstas (Portugal, 21 out. 1969). No III Plano de Fomento (1968-1973) do Estado Novo, já estava contemplada uma verba para a construção de um novo hospital-escola, com capacidade de seiscentas a setecentas camas, quando a real necessidade de Coimbra rondava os 1.800 leitos, para poder servir de apoio a outras regiões.15 A entrada em funcionamento só estava prevista para dentro de dez anos, pelo que se impunha a construção de um novo hospital civil. Para além disso, as instalações do Hospital da Universidade estavam superlotadas e em más condições de hospitalização, com deficiências e insuficiências, com graves faltas de assistência e de higiene, com falta de comodidade e de conforto para acolher com qualidade os doentes (Barreto, 1959). Adaptando-se à mudança dos tempos e tendo consciência das novas necessidades e prioridades médicas da região, Bissaya Barreto (1959) inicia uma nova campanha, sob o lema: “Coimbra precisa de um Hospital-Faculdade; Coimbra precisa de um Hospital-Cidade”.
Um nova campanha de luta para dotar Coimbra de um hospital civil. A campanha gerou grandes batalhas políticas entre Bissaya e os interesses instalados da Faculdade de Medicina.
Bissaya propõe o encerramento do Hospital-Sanatório e respectiva adaptação a hospital geral. Depois de 35 anos de funcionamento, o sanatório encerra. Uma larga comissão representativa das autoridades distritais e conselhais entrega ao ministro da Saúde e Assistência uma exposição, solicitando a transformação do Hospital-Sanatório em Hospital Central. A imprensa de Lisboa, do Porto e da região promove uma campanha a favor do solicitado. Restava prestar contas e pedir o necessário acordo da colónia portuguesa do Brasil para se encerrar o sanatório e transformar este em um hospital geral.
A história repete-se...
Estabelecem-se os necessários contactos com os representantes da colónia portuguesa do Brasil (na altura já Real Gabinete Português de Leitura, sucessor da extinta Real e Benemérita Sociedade Portuguesa do Rio de Janeiro), para que se autorizasse a conversão, sendo assegurado que, apesar da mudança do carácter assistencial do hospital, este espaço jamais deixaria de manter um serviço de atendimento aos tuberculosos, com o nome de “Comendador Sousa Cruz”, mantendo a obrigação de sanatorizar os combatentes da Grande Guerra e filhos, quando doentes (Barreto, 15 jan. 1970).
O Real Gabinete de Leitura comunica que nada obsta a que se altere a finalidade do Hospital-Sanatório, desde que fiquem salvaguardados no essencial os objetivos assistenciais para que foi criado (RGPL, 29 jan. 1970), permitindo a comissão diretiva proceder ao encerramento e inicia, desde logo, os trabalhos de transformação, mantendo um “minissanatório” – hoje Serviço de Pneumologia – como parte constitutiva do novo Hospital Geral. Procurava-se o reaproveitamento de um edifício antigo, de tipologia adaptável, com uma função específica que, em consequência dos avanços terapêuticos, deixou de fazer sentido. Procurava-se continuar a dar uso a um edifício em vez de o remeter para o abandono e ficar sem utilidade. A emergência de novas necessidades e programas de assistência médica leva ao reformular da linguagem arquitetónica, por exemplo, as galerias de cura são fechadas, aumentando o espaço útil das enfermarias de internamento. O espaço adapta-se à função (Lopes, 2011).
Trinta e cinco anos após a inauguração do Sanatório, o governo português cria por lei (Portugal, 2 jul. 1970), na Quinta dos Vales, o Hospital Geral da Colónia Portuguesa no Brasil (Figura 7), que sucede, com todos os direitos e obrigações, ao Hospital-Sanatório da Colónia Portuguesa no Brasil, ficando expresso no ponto 3, do artigo 2º, uma fórmula que vincula o hospital aos seus originais propósitos e beneméritos da colónia portuguesa do Brasil de outrora: “O Hospital manterá obrigatoriamente no seu esquema de serviço, um sector de Pneumotisiologia” (Portugal, 2 jul. 1970, p.854).
Figura 7 : Hospital Geral da Colónia Portuguesa no Brasil, 1973 (Centro de Documentação Bissaya Barreto, Coimbra)
Pretendendo criar um hospital moderno, realiza-se uma visita de estudo16 a diversas unidades médicas em Espanha. Em 27 de abril de 1973, é inaugurado o Hospital Geral da Colónia Portuguesa do Brasil. A modernidade hospitalar chega a Coimbra e com ela uma nova concepção e entendimento. Na tentativa de mostrar, fazer propaganda e aproximar o novo hospital da população, o “Guia do doente” esclarece que este “Hospital deve antes ser considerado um Hotel em que os Hóspedes são doentes, provisoriamente inválidos, com as mesmas necessidades de conforto, de beleza, de asseio” (Hospital…, s.d., p.3). Uma nova estrutura que se apresenta e opõe ao antiquado Hospital da Universidade de Coimbra.
O novo hospital é apresentado como espaço de acolhimento, de respeito, de simpatia e delicadeza pelo doente, ao mesmo tempo que emerge como espaço tradutor de uma assistência hospitalar moderna, que reflete e traduz as mais atuais concepções tecnológicas de diagnóstico e de tratamento, da época, “o Hospital moderno, como o nosso, funciona como uma grande empresa industrial, na qual as máquinas vão ocupando progressivamente um lugar de domínio ... machine à soigner” (Hospital…, s.d., p.19).
Este artigo pretende dar a conhecer, contextualizar e analisar a história duma instituição de saúde portuguesa incontornavelmente ligada às redes de filantropia da emigração portuguesa no Brasil, na primeira metade do século XX. Uma instituição inicialmente pensada para acolher, assistir e educar os órfãos dos soldados portugueses mortos na linha da frente da Primeira Guerra Mundial, mas, devido à tardia construção, não serviu o propósito inicial. O flagelo da tuberculose devastava a sociedade portuguesa, e eram parcos os recursos para a enfrentar e debelar. Assim, surge a ideia de pedir a cedência das instalações do asilo-escola e sua conversão num hospital-sanatório, referência do Estado Novo, que se manteve em funcionamento durante 35 anos. Com o advento da antibioterapia, o sanatório abre as portas e deixa de ter função. Novos tempos, novas necessidades, impondo-se, então, a construção de um hospital geral. Após as devidas obras de adaptação, o sanatório é convertido num moderno hospital, de referência da região centro e mesmo do país, que perdura até aos nossos dias.
Esta instituição, reconfigurada ao longo do tempo em resposta às necessidades sociais e médicas em cada época, é produto da filantropia e solidariedade da colónia portuguesa no Brasil, que sempre se manteve atenta e sensível à realidade do país de origem. Impôs-se sempre dar conhecimento, sensibilizar e ouvir o Real Gabinete Português de Leitura, enquanto representante dos interesses da colónia portuguesa, para poder mudar o rumo da assistência do património. Nesta metamorfose do espaço dois elos foram essenciais: a vontade e determinação de Bissaya Barreto em garantir uma assistência de saúde adaptada às realidades e necessidades sociais e, por outro lado, toda esta dinâmica, todo este recriar e readaptar do espaço foi possível pelo interesse e generosidade dos elementos da colónia portuguesa no Brasil em contribuir pela melhoria da assistência na pátria de origem.
Esta investigação contribui para a visibilidade do papel filantrópico dos emigrantes portugueses no Brasil e do seu impacto na assistência em saúde em Portugal. Uma expressão marcante do passado que chega ao nosso presente.