Compartilhar

A Atenção Primária à Saúde e seus atributos: a situação das crianças menores de dois anos segundo suas cuidadoras

A Atenção Primária à Saúde e seus atributos: a situação das crianças menores de dois anos segundo suas cuidadoras

Autores:

Marcos Mesquita Filho,
Bruna Suellen Raimundo Luz,
Cristina Sousa Araújo

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.7 Rio de Janeiro jul. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.17322013

ABSTRACT

The scope of this study was to evaluate the attributes of primary health care for children and establish associated factors. A cross-sectional, observational and analytical study was conducted. Data were collected from interviews with caregivers of children enrolled in primary health care services, using a sociodemographic and health protocol, an instrument of economic classification and the Brazilian version of the Project Complexity Assessment Tool questionnaire for children. Models were developed using Poisson regression to search for associations. Only the longitudinality attribute was well evaluated. All the other mean scores were considered low. More than 80% of respondents rated the special and general scores of primary health care with low values. Children who had no brothers, were of the female sex, with socioeconomic classification A or B, and who had male caregivers with no partner were significantly associated with the low scores. Primary health care was thus poorly rated.

Key words: Primary health care; Child health; Quality of health care evaluation; Health management; Health services

Introdução

A atenção primária em saúde (APS) abrange ações de promoção e proteção da saúde e de prevenção de agravos que são desenvolvidas por equipes multidisciplinares orientadas a resolver os problemas de saúde de maior ocorrência numa determinada região. A estratégia de organização da atenção primária no Brasil é a Saúde da Família¹ que inicia a sua estruturação a partir da década de 1990². Esta prática assistencial considera que a família deve ser entendida a partir do ambiente onde vive³ e as ações de saúde ocorrer em áreas de abrangência definida, com adscrição da clientela.

Segundo Starfield4 são quatro os atributos que a APS deve apresentar: acesso de primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação. O primeiro está relacionado com a acessibilidade e o cuidado que o serviço presta a cada problema de saúde. A longitudinalidade reflete a continuidade temporal da oferta e da utilização dos serviços de saúde, incluindo uma relação interpessoal intensa que expresse a confiança mútua entre os usuários e os profissionais. A integralidade supõe o suprimento de ações de promoção, prevenção e recuperação, bem como atenção biopsicossocial pelo serviço e sistema. A coordenação implica na garantia da continuidade da atenção e no reconhecimento dos problemas que necessitam de seguimento constante2. As ações de APS são também qualificadas por dois atributos derivados que se apresentam intimamente inter-relacionados na prática assistencial, individual ou coletiva, dos serviços: orientação familiar ou atenção à saúde centrada na família, que considera o contexto familiar na avaliação da atenção individual; a orientação comunitária que é a prática de reconhecimento, através de dados epidemiológicos e do contato com a comunidade, das necessidades de saúde da população coberta pela APS4.

Coexistem com a ESF outros serviços de APS, Unidades Básicas de Saúde (UBS), na qual a demanda atendida se apresenta de maneira espontânea ou é encaminhada por outros serviços5.

Shi et al.6 desenvolveram um instrumento que permite mensurar a presença e a extensão dos atributos essenciais e derivados da atenção primária o Primary Care Assessment Tool (PCATool) - Instrumento de Avaliação da Atenção Primária. Em sua versão infantil, o PCATool, a partir de entrevistas com cuidadores de crianças de até dois anos de idade, identifica aspectos do funcionamento, da estrutura e do processo dos serviços de atenção primária voltados a este público.

Em 2002 comprovou-se que os itens referentes aos atributos da atenção primária possuíam validade e confiabilidade suficientes para sua aplicação em estudos sobre a saúde infantil no Brasil7. Seu uso é recomendado pelo Ministério da Saúde8.

É fundamental conhecer a avaliação dos cuidadores sobre o atendimento prestado às crianças, para identificar os fatores positivos e negativos da atenção primária na busca de seu aperfeiçoamento9-11.

O objetivo deste estudo foi avaliar, a partir da percepção de cuidadores, os atributos da atenção primária à saúde para crianças de zero a dois anos de idade e conhecer possíveis fatores intervenientes na avaliação.

Métodos

O estudo foi transversal, observacional, não controlado e analítico. Foi realizado na rede de saúde municipal de Pouso Alegre, MG, durante os meses de janeiro à dezembro de 2009.

Compreendeu o universo da Atenção Primária à Saúde do município, que contava na ocasião com nove Unidades Básicas de Saúde tradicionais (UBS) e treze unidades de Saúde da Família (ESF).

Foi selecionada uma amostra das cuidadoras das crianças de zero a 24 meses de idade, registradas nesses serviços. Definiu-se cuidadora segundo critério de Harzhein em sua pesquisa de validação do PCATool12. "Cuidadora principal é a pessoa que pode ser identificada pela pergunta: Quem é que melhor sabe informar sobre a saúde da criança?" Na grande maioria das vezes é a própria mãe. Este critério foi também empregado no estudo de Leão et al.13. A população de estudo, estimada para este período, era de 3.618 habitantes (51,1% homens), a saber: 1797 menores de um ano, 1821 crianças de um a dois anos14.

A amostragem foi probabilística, por conglomerados, em um estágio, sendo selecionada proporcionalmente à população coberta por cada serviço. Os critérios utilizados para o cálculo do tamanho da amostra foram α = 0,05; β = 0,20, prevalência estimada de 72,0%7 e precisão de 5,0% e um efeito desenho de 1,2. O tamanho obtido foi de 343 sujeitos. Foram selecionadas, por sorteio, 450 crianças de maneira aleatória. A partir delas foram encontradas as cuidadoras. Foram critérios de elegibilidade: cuidar de criança com dois anos ou menos de idade, cadastrada em um serviço público de atenção primária. Foram entrevistados 419 indivíduos, pois 31 não foram encontrados ou recusaram-se a participar. Das crianças estudadas, 52,0% eram meninos e 48,0% meninas, o que correspondia à estimativa populacional da faixa etária de zero a dois anos, em Pouso Alegre, no período estudado.

Inicialmente era respondido um protocolo de dados sociodemográficos e de saúde da criança que continha as seguintes variáveis: idade, sexo, renda familiar, cor, número de irmãos, serviço onde foi registrada, frequência a outros serviços de saúde, tipo de serviço preferencial, situação de saúde, presença de doenças e consumo de medicamentos no dia da entrevista, uso de vitaminas A e D e de sulfato ferroso. Em relação à cuidadora levantou-se sexo, idade, escolaridade, estado civil, cor, parentesco com a criança. O segundo questionário objetivava a classificação socioeconômica da família da criança, segundo critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa15, que é usado para estimar o poder de compra de famílias urbanas. Para esta classificação considera-se a posse de itens e o grau de instrução do chefe de família. Seus escores foram calculados pela soma de pontos obtidos em cada questão sendo então obtida a classificação de cada família. Neste estudo optou-se por simplificar a classificação deste instrumento. Ao invés de se utilizar as oito categorias originais (A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E), estas foram agregada em três itens (A e B; C; D e E).

Por fim foi utilizado o PCATOOL7, instrumento de domínio público, embasado no marco teórico da atenção primária à saúde, que mede a presença e a extensão de quatro atributos essenciais e de dois atributos derivados da atenção primária à saúde e o grau de afiliação ao serviço. O questionário consta de 46 questões do tipo Likert sobre os atributos essenciais (Acesso, Longitudinalidade, Integralidade, Coordenação) e dos derivados: Orientação Familiar e Orientação Comunitária7. Este instrumento permite a construção de escores para avaliação da atenção primária à saúde. Cada item pode assumir um valor entre um e quatro pontos. O escore final dos atributos é dado pela média das suas respostas, que também variam de 1 a 4. O valor dos escores obtidos para cada atributo foi transformado em uma escala de zero a dez a partir da seguinte fórmula8 [(Escore obtido - 1) x 10]/3. Em alguns atributos são encontradas subdimensões. A soma das médias dos valores dos quatro atributos essenciais e com a média do escore do grau de afiliação do usuário ao serviço de saúde produz o Escore Essencial da Atenção Primária à Saúde (EEAPS). A soma da média destes escores essenciais com as médias dos escores derivados produz o Escore Geral da Atenção Primária à Saúde (EGAPS)7. Valores de escores maiores ou iguais a 6,6 foram definidos como elevados e equivalentes ao valor três ou mais na escala Likert16. Valores menores foram considerados baixos.

O estudo foi realizado a partir de visitas domiciliares. Os pesquisadores compareceram às residências das crianças selecionadas, explicavam o objetivo do estudo e convidavam as cuidadoras a participarem. Se houvesse concordância era lido o termo de consentimento livre e esclarecido e solicitada a assinatura do mesmo. Uma vez obtida a anuência passava-se a uma leitura inicial dos instrumentos, na seguinte ordem: protocolo de dados sociodemográficos e de saúde, classificação socioeconômica ABEP15 e PCATOOL7 versão infantil. No caso de dúvidas, os itens eram relidos quantas vezes se fizessem necessárias. Não foram efetuadas explicações sobre o conteúdo específico das questões, no intuito de se prevenir a influência dos pesquisadores. Em seguida eram feitas as perguntas e preenchiam-se os instrumentos de acordo com o relato do sujeito, na mesma sequência da leitura.

Os dados foram compilados, agrupados e organizados em banco de dados elaborado com uso do programa Excel.

Para o tratamento dos dados foi realizada a analise descritiva simples que utilizou média, mediana, intervalo de confiança (95%), desvio padrão e valores máximos e mínimos para as variáveis quantitativas. O grupo estudado foi dicotomizado em EGAPS e EEAPS altos ou baixos, procedimento também efetuado para os escores de cada atributo da APS. A construção de modelos explicativos para estes escores e atributos foi feita utilizando-se da regressão de Poisson, sendo os comandos para seu cálculo escritos no submenu survey (svy) do software Stata 9, que permite a consideração do plano amostral na análise. O efeito dos conglomerados foi corrigido pelo método de linearização de Taylor. Foram incluídas nos modelos multivariados variáveis independentes que apresentaram ao teste do qui quadrado valores de p < 0,20. Foi considerado significante p < 0,05.

O estudo obedeceu aos preceitos contidos na resolução 196/9617 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Vale do Sapucaí.

Resultados

Das 419 crianças estudadas 218 (52,0%) eram do sexo masculino. Tinham uma idade média de 13,3 meses (DP = 0,4; mediana = 14,0), com 55,4% tendo de um a dois anos. Na amostra 77,8% foram declarados brancos. A quantidade média de irmãos foi de 1,3 por indivíduo (DP = 0,07, mediana = 1,0). Observou-se que 57,3% tinham de um a três irmãos, mas 36,0% (151) não tinha nenhum. A renda familiar da maioria se situava de zero a três salários mínimos (89,5%), com uma renda mediana de 1,5. Nenhum dos entrevistados disse que a saúde das crianças sob seus cuidados era ruim, sendo que 93,1% afirmaram que ela era boa ou ótima. Porém, foi relatada a presença de doenças no dia da entrevista em 19,8%. As cuidadoras informaram que 35,8% utilizavam vitaminas A e D de rotina, 37,5% sulfato ferroso e 10,5% estavam em uso de outros medicamentos na data da entrevista. A maior parte das famílias, de acordo com os critérios de classificação socioeconômicos utilizados, foi classificada na categoria C (46,1%) ou na D com a proporção de 31,0% (Tabela 1).

Tabela 1 Características das crianças atendidas pelas ESF e UBS e de suas cuidadoras. 

Variável Frequência absoluta Porcentagem (%)
CRIANÇAS
Total 419 100,0
Sexo
Feminino 201 48,0
Masculino 218 52,0
Faixa etária (em meses)
Um a onze meses 187 44,6
Doze a 24 meses 232 55,4
Cor
Branca 326 77,8
Negra/Parda 93 22,2
Número de irmãos
Nenhum 151 36,0
Um a três 240 57,3
Mais de três 28 6,7
Renda familiar
Menos de um Salário Mínimo 51 12,2
De um a três Salários Mínimos 324 77,3
Mais de três Salários Mínimos 44 10,5
Situação de saúde
Regular 29 6,9
Boa 73 17,4
Muito boa 317 75,7
Presença de doenças no dia da entrevista
Não 336 80,2
Sim 83 19,8
Uso de medicamentos no dia da entrevista
Não 375 89,5
Sim 44 10,5
Classificação socioeconômica
AB 35 8,4
C 193 46,1
DE 191 45,6
CUIDADORAS (ES)
Total 419 100,0
Sexo
Feminino 392 93,6
Masculino 27 6,4
Faixa etária
de 10 a 19 anos 57 13,6
de 20 a 29 anos 196 46,8
de 30 a 49 anos 141 33,7
50 anos e mais 25 6,0
Cor
Branca 313 74,7
Negra/Parda 108 25,3
Escolaridade
Nenhuma 3 0,7
Curso fundamental 237 56,6
Curso médio 179 42,7
Estado civil
Casada (o) ou com companheiro (a) 325 77,6
Vive sem companheiro (a) 94 22,4
Grau de parentesco com a criança
Não tem parentesco 2 0,4
Mãe 321 76,6
Pai 22 5,3
Avós 43 10,3
Irmãos 10 2,4
Outro 21 5,0

A maioria das cuidadoras eram mulheres (94,0%) que viviam com o companheiro(a). A idade média era 29,4 anos (DP = 10,7; mediana = 28,0). A maior parte tinha entre 20 e 29 anos (46,8%). A maioria dos entrevistados havia cursado no máximo o ensino fundamental completo (57,3%). Foram 313 os que se autodeclararam brancos. A Tabela 1 mostra ainda que a mãe era a principal cuidadora.

As unidades de saúde da família (ESF) correspondiam ao serviço de origem de 86,6% dos pesquisados. Entretanto, 92,4% informaram que também buscavam outros serviços diferentes daquele em que estavam cadastrados. A atenção exclusiva pelo setor público foi relatada por 89,7% e os demais optavam também pela área privada. Além do atendimento nas UBS e ESF, 41,3% eram também atendidos em outros serviços municipais como policlínicas e unidades de pronto atendimento (UPA). Optavam também pela atenção no pronto socorro (PS) do hospital universitário 50,6% da amostra. Foi observado que 6,4% das crianças registradas nas ESF ou UBS buscavam os serviços de saúde suplementar e 4,1% os exclusivamente privados. Se inquiridos sobre o tipo de serviço que preferiam, 77,1% das cuidadoras indicavam os da ESF (Tabela 2).

Tabela 2 Tipos de serviços de saúde utilizados pelas crianças. 

Variável Frequência Porcentagem (%)
Total de crianças 419 100,0
Serviço de saúde de origem
ESF 363 86,6
UBS tradicional 56 13,4
Frequenta outro(s) serviço(s)
Não 32 7,6
Sim 387 92,4
Setores Público e Privado
Exclusivamente serviços públicos 376 89,7
Frequenta também serviços privados/ suplementares 43 10,3
Outros serviços a que recorre além do ESF e ou UBS tradicional
Saúde Suplementar 27 6,4
Policlínica/UPAS 173 41,3
Pronto Socorro 212 50,6
Serviços privados 17 4,1
Serviço de saúde preferencial
ESF 323 77,1
UBS tradicional 72 17,2
Plano de saúde e/ou Serviço privado 8 1,9
UPA e/ou POLICLÍNICA 13 3,1
Pronto Socorro 3 0,7

Na Tabela 3 se encontram os escores médios dos atributos da Atenção Primária. O atributo Coordenação foi o de menor valor médio e o Longitudinalidade o de maior. Observa-se que apenas Longitudinalidade apresentou uma pontuação que pode ser considerada elevada. Além disso, a maioria das cuidadoras atribuiu escores de baixos valores aos atributos (com exceção da Longitudinalidade), bem como aos Escores Essencial e Geral de APS. Acesso de Primeiro Contato e Integralidade de Serviços Complementares apresentaram mais de 90,0% de avaliações negativas. Integralidade serviços básicos, Integralidade de Serviços Complementares, Integralidade - ações de promoção e prevenção recebidas, Coordenação, Orientação Familiar e Orientação Comunitária o apresentaram entre 51,0 a 71,0% de baixas avaliações. Aos Escores Essencial e Geral de APS foram atribuídos valores baixos em mais de 80,0% das entrevistas.

Tabela 3 Escores médios, Intervalo de Confiança (95%), medianas, desvios padrão e proporção de escores de baixos valores (< 6,6) dos atributos, escore especial e escore geral da Atenção Primária em Saúde. 

Avaliação de Atributos Escore IC 95% Mediana DP % de valores
e da APS Médio baixos (< 6,6)
Acesso de Primeiro Contato – Acessibilidade 4,7 4,5-5,5 5,0 1,2 91,5
Longitudinalidade 7,8 6,8-8,0 7,8 1,8 19,3
Integralidade serviços básicos disponíveis 5,6 4,5-6,1 5,0 2,5 58,7
Integralidade - serviços complementares disponíveis 2,9 2,7-4,0 3,3 1,8 94,6
Integralidade- Ações de promoção e prevenção 5,6 3,7-6,1 4,0 3,5 51,6
recebidas
Coordenação 5,0 3,7-6,3 4,7 4,2 55,6
Orientação familiar 4,7 3,0-4,7 3,9 2,6 70,9
Orientação comunitária 5,4 3,5-5,3 4,2 2,8 56,7
Escore Especial de APS 5,3 4,6-5,7 5,0 1,3 81,8
Escore Geral de APS 5,2 5,1-5,4 5,3 1,3 85,0

Os modelos para as análises multivariadas dos atributos e dos escores da atenção primária foram construídos selecionando-se, por análise bivariada, as variáveis independentes. O Quadro 1 mostra os componentes iniciais de cada um deles.

Quadro 1 Modelos para análise multivariada dos baixos escores para Atributos, Escore Especial e Escore Geral de Atenção Primária em Saúde 

Após Regressão de Poisson, permaneceram nos modelos as variáveis constantes da Tabela 4 (p < 0,05). Nas avaliações do Acesso de Primeiro Contato as cuidadoras de meninas concederam 2,79 vezes (Razão de Prevalência - RP) mais escores baixos do que os demais. Também os que tinham como serviço preferencial a ESF (RP = 1,55) e as Mulheres Cuidadoras (RP = 2,56) apresentaram piores avaliações da Acessibilidade. As cuidadoras que não buscavam outros serviços públicos de saúde na esfera municipal, além daquele no qual foi levantado seu cadastro, apresentaram uma proporção maior de escores baixos no atributo Longitudinalidade (RP = 1,12). Já os que consideravam o ESF como preferencial apresentaram uma proporção de escores baixos neste item 17,0% menor do que optavam por outros locais. Ao se estudar a Integralidade de Serviços Básicos observou-se que a única variável estatisticamente associada foi crianças que utilizavam medicamentos no dia da entrevista (RP = 1,30). Quanto à Integralidade dos Serviços Complementares, aqueles que não frequentavam outros serviços públicos municipais além das ESF e UBS de origem tinham uma avaliação 62,0% melhor do que os que compareciam também aos outros. Este modelo também mostrou que as crianças com uma classificação socioeconômica mais elevada tinham mais restrições ao se avaliar a variável dependente (RP = 2,05). A Integralidade em seus aspectos de Prevenção e Promoção à Saúde não se associou às variáveis explicativas. Os entrevistados cujas crianças foram localizadas nas ESF avaliaram a Coordenação da APS de uma maneira melhor que os que estavam registradas nas UBS tradicionais (RP = 0,34). Neste atributo, a baixa escolaridade da cuidadora (RP = 2,57) e crianças com classificação socioeconômica AB apresentaram maior prevalência de baixos escores (RP = 2,31).

Tabela 4 Variáveis independentes mantidas no modelo de regressão de Poisson com suas respectivas Razões de Prevalência, Intervalos de Confiança (95%) e valores de p associadas a baixos escores dos Atributos, Escore Especial e Escore Geral de APS. 

Atributos e Escores de APS Variáveis independentes RP IC (95%) p
Acesso de Primeiro Contato Sexo da Criança - feminino 2,79 1,19–6,57 0,021
Serviço Preferencial: ESF 1,55 1,00–2,40 0,049
Sexo da Cuidadora - feminino 2,56 1,03–6,32 0,043
Longitudinalidade Frequência a outro(s) serviço(s) 1,12 1,03–1,21 0,014
público(s) municipal(is)
Serviço Preferencial: ESF 0,83 0,71–0,98 0,025
Integralidade de serviços básicos Não usar medicamentos na data da 1,30 1,01–1,67 0,043
entrevista
Integralidade de Serviços
Complementares Frequência a outro(s) serviço(s) 0,38 0,17–0,89 0,028
público(s) municipal(is)
Classificação socioeconômica - AB 2,05 1,07–3,92 0,031
Integralidade – ações de promoção
e prevenção recebidas - - - -
Coordenação Serviço de Saúde de origem (ESF 0,34 0,12–0,96 0,043
ou UBS)
Escolaridade da cuidadora – 2,57 1,18–5,57 0,021
fundamental
Classificação socioeconômica - AB 2,31 1,35–3,95 0,005
Orientação Familiar Faixa Etária da cuidadora – 10 a 19 1,25 1,11–1,40 0,001
anos
Orientação Comunitária Número de irmãos - nenhum 0,79 0,64–0,98 0,034
Sexo da cuidadora - feminino 1,38 1,11–1,72 0,005
Escore Essencial de APS Sexo da criança - feminino 1,76 1,11–2,79 0,019
Número de irmãos - nenhum 1,27 1,00–1,61 0,048
Presença de companheiro/a da 1,28 1,02–1,62 0,038
cuidadora
Escore Geral de APS Sexo da criança - feminino 1,45 1,08–1,95 0,016
Número de irmãos - nenhum 1,46 1,11–1,93 0,009
Sexo da cuidadora – feminino 2,47 1,12–5,43 0,027
Classificação socioeconômica 1,85 1,04–3,29 0,038

Ainda na Tabela 4, os escores para Orientação Familiar estiveram associados às faixas etárias das cuidadoras, havendo uma maior proporção de valores baixos entre os de menor idade (RP = 1,25). Já para Orientação Comunitária, estes se associaram ao sexo da cuidadora sendo que as mulheres atribuíam mais valores baixos (RP = 1,38), e tendo relação inversa com o número de irmãos (RP = 0,78).

Uma maior proporção de baixos Escores Essenciais de APS esteve associada às crianças de sexo feminino (RP = 1,76); com nenhum irmão - RP = 1,27 e ao fato da cuidadora não apresentar companheiro(a) (RP = 1,28).

Baixo Escore Geral de APS também se associou às meninas (RP = 1,45) e à ausência de irmãos (RP = 1,46). Além disto, também foi mais comum quando a cuidadora fosse mulher (RP = 2,47) e quando a criança se enquadrasse na categoria AB da classificação socioeconômica (RP = 1,85).

Discussão

Os serviços da atenção primária voltados à saúde integral da criança são essenciais. Nos primeiros anos de vida, estes serviços são fundamentais à manutenção da sua saúde e a um crescimento e desenvolvimento adequados.

A predominância de crianças masculinas e das de um a dois anos corresponde tanto à realidade brasileira como à do município, sendo as proporções encontradas para meninas e meninos semelhantes àquelas das estimativas populacionais oficiais. Harzhein et al.7, no estudo de validação do PCATool em Porto Alegre, selecionou amostra semelhante à deste trabalho. Numa pesquisa em Montes Claros13 encontrou-se uma média de idade correspondente, mas houve um pequeno predomínio de meninas (50,6%). A proporção de crianças cujas cuidadoras consideraram de muito boa saúde foi superior ao resultado encontrado no estudo de Porto Alegre12.

A predominância da classificação socioeconômica em classes CDE encontrada em cerca de 90,0% das famílias entrevistadas assemelhou-se à observada no trabalho de Porto Alegre12, já em Montes Claros13 97,0% eram assim classificados, fatos coerentes com a situação socioeconômica da população de cada região. Como nos demais estudos12,13 a mãe era a principal cuidadora, apresentando baixa escolaridade e idade majoritariamente entre 20 e 39 anos. É importante destacar que a maioria das cuidadoras são mulheres de estratos sociais e econômicos de baixo poder aquisitivo. Culturalmente, no Brasil, o papel de cuidadora tem sido reservado às mulheres18. Apesar da inserção da mulher no mercado de trabalho, ela ainda exerce o papel, mesmo que em dupla jornada, o que traz à tona a questão da divisão sexual do trabalho, cabendo à mulher cuidar do marido e filhos, além de atividades do âmbito privado e aos homens as tarefas do espaço público18. Desta forma, na organização social, se situariam no campo do feminino, além de outras atividades, aquelas ligadas a hospitais, creches e escolas19. Tais características se tornam mais visíveis em situações onde o poder aquisitivo do extrato social envolvido é mais baixo, como neste trabalho.

Nos serviços de saúde frequentados houve a predominância de serviços públicos, notadamente os da ESF, o que está de acordo com a população usuária de serviços de atenção primária. A proporção dos que frequentavam serviços públicos exclusivamente foi maior que os da pesquisa CNI-IBOPE20, a qual mostrou que 60% da população utilizavam somente a rede pública.

A constatação de que a maior parte dos atributos da atenção primária apresentaram escores médios de baixo valor indica o mau desempenho destes serviços. O valor médio referente ao Acesso de Primeiro contato, que informa sobre o acesso aos serviços, ao leque biopsicossocial de ações de saúde disponíveis nos diversos momentos que compõem o processo saúde-agravo, bem como à inserção comunitária e sua relação com os usuários21, foi menor do que o obtido em outros estudos brasileiros12,13. Nestes estudos eles também se situavam na região dos baixos valores.

A dificuldade de acesso foi informada por 91,5% dos entrevistados que atribuíram baixos escores a este atributo, mostrando o alto grau de iniquidade a que as crianças estavam expostas. As precárias condições de saúde, os processos agudos de adoecimento, as dificuldades de acesso e o consumo dos serviços de saúde são expressão da desigualdade, heterogeneidade e fragmentação do tecido urbano brasileiro22. Num estudo com menores de cinco anos, em que se mensurou a acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro na cidade de Recife, 38,8% das crianças tiveram dificuldades ao buscar as APS. As dificuldades de acesso são motivações importantes para não se buscar a rede básica23. As cuidadoras de meninas apresentaram uma prevalência de baixos escores 2,79 (p = 0,021) vezes maiores que as que cuidavam de meninos. As mulheres cuidadoras apresentaram uma razão de prevalência igual a 2,56. As cuidadoras, em sua grande maioria, eram as próprias mães das crianças, fato que pode explicar a postura mais crítica destas em relação a dos homens na avaliação da acessibilidade. Cuidadoras que apresentavam a ESF como serviço preferencial também atribuíram 1,55 vezes mais baixos escores à acessibilidade do que as demais. Agravos em condições agudas, tempo de espera pelo atendimento, dificuldades geográficas ou de marcação de consultas, carência de transporte coletivo são fatores que se associam às dificuldades de acesso23-25.

A continuidade da atenção, a confiança mútua serviço-usuário, a conexão do usuário com o serviço e os profissionais de saúde, que é expressa pela Longitudinalidade, atingiu pontuação elevada (7,8), com apenas 19,3% da amostra atribuindo baixos escores. Este achado permite supor que apesar dos sérios problemas da APS manifestados nos baixos EGAPS e EEAPS, uma vez obtido o acesso, existe a longitudinalidade. A avaliação positiva deste atributo indica a fidelização aos serviços. Tal fato pode ser atribuído à adequação dos serviços à realização de diagnósticos e tratamentos, bem como uma baixa ocorrência de encaminhamentos desnecessários13. Mas também pode estar associada à ausência de opções que o usuário, que já apresenta dificuldades de acesso, tem na busca de outras opções de atenção. De qualquer maneira, a longitudinalidade adequada pode trazer impactos positivos tanto à saúde infantil como à rede de serviços12. O estudo de Harzhein12 apresentou escores semelhantes neste item, bem como o de Leão et al.13. As cuidadoras cujas crianças utilizavam outros serviços de saúde do município atribuíram proporcionalmente àqueles que eram usuários exclusivos da ESF ou da UBS uma proporção significativamente maior de escores negativos para o atributo. Os que preferiam a ESF para atendimento da criança apresentaram uma proporção de avaliações negativas 17,0% menor que a dos demais. Estes achados são coerentes com a suposição de responsabilidade longitudinal pelo paciente, implícita nesta característica da APS, pela existência de uma fonte regular de atenção e seu uso ao longo do tempo4.

No atributo Integralidade é mensurada a capacidade da APS de prover a seus usuários serviços de saúde em todos os níveis e nas áreas de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação4. No PCATool ela se apresenta em três subdimensões. Todas apresentaram, em média, baixos escores, mas a Integralidade de Serviços Complementares foi o atributo de pior escore médio (29,0% dos pontos possíveis). A este escore correspondeu a mais alta proporção de entrevistados que avaliou negativamente um atributo da APS: 94,6%, indicando descontinuidade e falta de acesso aos serviços complementares. As subdimensões da Integralidade relacionadas com os serviços básicos e com ações de promoção e proteção apresentaram avaliações iguais (ambas com o escore médio de 5,6, sendo a dos serviços básicos com uma proporção de baixos valores de 58,7% e a segunda de 51,6%). Em conjunto, os resultados apresentados pelas três dimensões da Integralidade mostram uma APS que oferece poucos serviços disponíveis e prestados nos diversos níveis de complexidade, baixa disponibilidade de ações de prevenção primária e uma ausência de serviços complementares8. Estes resultados divergiram dos encontrados por Leão et al.13 e por Harzhein12. A integralidade exige que a APS reconheça, adequadamente, a variedade completa de necessidades relacionadas à saúde, disponibilize os recursos para abordá-las e que identifique problemas de todo tipo, sejam orgânicos, funcionais ou sociais26. No sistema de saúde brasileiro, no qual coexistem os serviços públicos e os voltados ao mercado, a Integralidade é comprometida4. O confronto entre interesses e necessidades é explícito quando o usuário prioriza a busca de serviços com uma concentração tecnológica maior do que os da APS23. Após a regressão de Poisson, foi encontrada associação significativa entre a atribuição de baixos escores à integralidade dos serviços básicos e cuidadoras que não relatavam uso de medicamentos pela criança no dia da entrevista (1,3 vezes mais baixos escores do que os que utilizavam). Crianças em tratamento medicamentoso poderiam ser as que compareceram recentemente aos serviços, atribuindo assim escores mais elevados. A Integralidade de serviços complementares se apresentou associada a crianças que frequentavam outros serviços de saúde do município. Estas apresentaram 62,0% menos escores negativos do que as usuárias exclusivas dos serviços da atenção básica. A procura a vários serviços possivelmente se reflete numa estratégia de se buscar ativamente pelos procedimentos complementares em diversos locais. Os pesquisados de classificação socioeconômica mais elevada atribuíram mais do dobro de escores baixos para esta dimensão que os demais, fato que se justifica por terem maior possibilidade de acesso a exames complementares fora do sistema público de saúde. De qualquer forma, é importante ressaltar que 94,6% atribuíram baixos escores ao atributo, fato que mostra por si só sua inadequação às necessidades da população pesquisada. No modelo da integralidade da promoção e da prevenção não foi encontrada associação significante de baixos escores a nenhuma das variáveis que integraram o modelo.

As questões referentes ao atributo Coordenação foram respondidas por apenas 10,1% dos entrevistados. A maioria das crianças estudadas não teve necessidade de acessar serviços para um seguimento prolongado ou em outro nível de complexidade, além do da APS. O escore médio deste atributo foi baixo, sendo assim assinalado pela maioria dos respondentes. Na pesquisa em Porto Alegre o escore (6,3) apresentou valor muito próximo ao limite máximo dos baixos escores12, bem como em Leão et al.13. Este atributo revela a capacidade do provedor de atenção primária de integrar todo cuidado que o paciente recebe através da coordenação entre os serviços. A realidade é bastante diversa, pois a atenção à saúde às crianças em serviços básicos de saúde ocorre de maneira fragmentada24,25. São fatores limitantes de uma efetiva Coordenação a alta rotatividade dos médicos e a formação inadequada para a função21. É comum que profissionais recém-formados vão atuar temporariamente na ESF, aguardando aprovação em programas de residência médica. Estes fatores se somam à existência de serviços de maior concentração tecnológica, com valorização da especialização, associada a uma avaliação da Atenção Primária como lugar de clínica de baixa qualificação, que pode ser exercida por médicos com qualquer tipo de, e mesmo, sem qualquer formação21. Ser criança originalmente registrada em UBS permaneceu associado à baixa pontuação no escore da Coordenação, o que pode mostrar uma melhor atuação da ESF neste atributo. Quando o entrevistado tinha cursado no máximo até o ensino fundamental maior era a proporção valores baixos em relação aos de nível médio. Tais dados se contradizem com os da classificação socioeconômica, que em seus estratos de maior poder aquisitivo há também alta proporção baixos escores (RP = 2,31; p = 0,005). Os resultados da coordenação podem ter sido enviesados pelo pequeno número de entrevistados que foram incluídos para responder às suas questões.

Orientação Familiar (ou atenção à saúde centrada na família) é a consideração, por parte dos que atuam na APS, do contexto familiar e de seu potencial (tanto de cuidado, como de ameaça à saúde) na avaliação das necessidades individuais para a atenção integral8. A este atributo foram também ministrados escores baixos pela maioria dos entrevistados (70,9%), alcançando escore médio de 4,7; fato que aponta para um desinteresse do serviço para as questões relativas à situação familiar dos pacientes estudados. Apesar da estratégia de APS no Brasil ser a Saúde da Família, o que se observa, a partir destes resultados, é que o serviço ainda não assimilou este modelo, se estruturando a partir de propostas anteriores, que centravam sua atenção no indivíduo, privilegiando a doença e a demanda. O estudo realizado em Porto Alegre e o de Montes Claros12,13 apresentaram resultados semelhantes, com baixos valores para a Orientação Familiar. O modelo para o atributo se associou significantemente à faixa etária da cuidadora, com piores avaliações ocorrendo principalmente entre aqueles mais jovens. Esta avaliação indica as dificuldades de mudança da proposta de atenção à saúde, tanto por parte dos trabalhadores como pelos gestores da saúde. Ainda se encontra arraigado na população brasileira o modelo hospitalocêntrico, calcado na demanda espontânea, individualista, centralizado, iníquo, especializado, preponderante em períodos anteriores.

À Orientação Comunitária, atributo especial da APS, também foram concedidos baixos escores pela maioria. Isto revela o não reconhecimento, por parte do serviço, das especificidades de saúde da comunidade e da epidemiologia prevalente; da ausência contato direto com a população adscrita e de relacionamento com ela, assim como a ausência do planejamento e avaliação con junta8. Esses resultados denotam também uma inserção comunitária fraca, a não participação da APS nas questões de interesse populacional, o desconhecimento das necessidades dos habitantes do território. Revela, outra vez, uma postura voltada à demanda espontânea e não à organização e à integralidade da atenção. No estudo de Leão et al.13 foram encontrados valores semelhantes, enquanto que no de Harzhein12 a pontuação média atribuída foi ainda mais baixa. Como na maioria dos demais atributos, uma proporção superior a 50,0% dos entrevistados optou por baixos escores. Cuidadoras de crianças com irmãos atribuíram uma maior proporção de baixos escores à orientação comunitária, possivelmente por uma maior dificuldade de se obter interação com o serviço, relacionada ao maior número de usuários infantis, uma demanda composta majoritariamente por problemas de saúde agudos. As cuidadoras atribuíram proporcionalmente mais escores baixos que os cuidadores. Como se destacou anteriormente, estas são, em sua maioria, mães que pelo papel cultural da mulher como cuidadora das crianças usuárias, por assumir tarefas relacionadas à saúde19, assumiriam posições de maior criticidade em relação aos atributos da APS.

Os escores Essencial e Geral de APS atingiram médias parecidas (5,2 e 5,3). Baixos escores de APS foram assinalados por mais de 80,0% dos entrevistados. Essa expressão de insatisfação com os serviços indicou que a atenção primária à saúde ainda estaria distante de uma atuação integral, resolutiva, participativa, de qualidade. Tal constatação se tornou previsível a partir da análise de cada atributo, que como foi observado anteriormente, com exceção do da longitudinalidade, receberam majoritariamente baixos escores. Em alguns casos observou-se quase uma unanimidade de más avaliações, como em Acesso de primeiro contato e Integralidade de serviços complementares. Os estudos de Porto Alegre12 e de Montes Claros13 mostraram escores Essencial e Geral mais elevados. Não se encontrou diferença de escores médios entre os usuários do ESF e da UBS. Observou-se que os entrevistados que cuidam de crianças das classes D e E pontuam melhor a Atenção Primária pelo EGAPS, o que provavelmente se associa a uma maior dependência deste grupo populacional aos serviços de atenção primária4,12,13. Esse achado diferiu do estudo de Montes Claros13, no qual a pontuação do grupo C foi mais alto. Houve pior avaliação tanto do escore essencial como do geral pelas cuidadoras de meninas, fato também apontado por outros trabalhos12,13. Também os que cuidavam de crianças sem irmãos apresentaram proporcionalmente mais escores baixos que os demais tanto para EGAPS como para EEAPS. Tais cuidadoras, pela ausência de outras crianças, possivelmente poderiam concentrar-se mais no cuidado, apresentando, assim, maior criticidade do que os demais que necessitariam se dividir entre diversos indivíduos. Esse fato foi confirmado por outro estudo13.

Os homens cuidadores apresentaram o EGAPS baixo numa proporção menor que as do feminino. É fato conhecido que as mulheres frequentam mais os serviços de saúde que os homens, o que pode levar a uma avaliação mais criteriosa por parte destas, fato que, mais uma vez, reflete o papel social da mulher. Além disto, os resultados obtidos para o EGAPS, quando indivíduos de classificação socioeconômica DE avaliam melhor a atenção primária que os demais, ressalta a importância atribuída pelos que têm menos acesso e que são os mais atingidos pelas consequências das iniquidades sociais.

O presente estudo buscou a avaliação dos serviços de APS na perspectiva de quem cuida de crianças em fases precoces da vida. Possui, entretanto, limitações. Por ter sido realizado em município de médio porte, situado no Sudeste do Brasil, a generalização dos dados deve ser feita com cautela. Alguns fatores não estudados, como o tempo que as equipes de cada serviço se encontravam constituídas, as particularidades da ação de cada profissional de saúde, a maneira como ocorreu sua capacitação também poderiam ter sido considerados. A distância da residência do usuário, a necessidade de algum tipo de transporte para o acesso também acrescentariam informações importantes. Além disto, o fato da cuidadora, sujeito da pesquisa, poder apresentar uma visão de maior criticidade que a dos demais atores sociais, pode trazer à tona a exacerbação dos aspectos negativos da APS. Além disso, instrumentos que propiciem a consideração do papel das classes sociais, das relações de gênero em saúde, podem também enriquecer a discussão e a avaliação dos atributos da APS. Entretanto, este trabalho fornece informações importantes que trazem novas questões para futuros estudos e pode servir de subsídio para o aprimoramento das ações e políticas públicas do setor. A APS foi mal avaliada. Ela não vem cumprindo o papel esperado neste município, mesmo quando é conduzida pela Estratégia de Saúde da Família, que está atuando sem se inserir no modelo proposto pelo SUS.

A avaliação de serviços de atenção primária é um dos grandes desafios do SUS. Sua efetivação pode trazer importantes benefícios à saúde das crianças de zero a dois anos. Na medida em que se levantam os problemas existentes pode-se buscar um Sistema cujas ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde possam ser resolutivas, universais e distribuídas com equidade. A população estudada compreende uma faixa etária vulnerável, que poderá ter, a partir daí, impacto positivo em sua morbimortalidade e a elevação de seu nível de saúde. Entretanto, os desafios trazidos por este tipo de avaliação são grandes. O PCATool infantil é um precioso instrumento para que a situação da atenção primária a menores de dois anos seja conhecida. Mas ele revela situações que para serem enfrentadas e corrigidas demandam recursos e vontade política.

Os resultados, uma vez devolvidos aos serviços de APS, podem contribuir para o seu aprimoramento e ajustes. Além disto, sua discussão com todos os profissionais da rede de saúde, bem como com as instâncias de decisão, no qual se dá a participação da população, pode servir como ferramenta que oriente às políticas municipais e aos avanços no Sistema Local de Saúde. Por se tratar de estudo cuja metodologia é de fácil aplicação, utilizando instrumento de domínio público, pode ser utilizado rotineiramente nas redes municipais de saúde para avaliações periódicas e acompanhamento do desenvolvimento deste setor.

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional da Atenção Básica. Brasília: MS; 2006.
2. Mendes EV. As evidências internacionais sobre a atenção primária à saúde e a estratégia de implantação da Saúde em Casa em Minas Gerais: o plano diretor da atenção primária à saúde. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais; 2007.
3. Oliveira AKP, Borges DF. Programa de Saúde da Família: uma avaliação de efetividade com base na percepção de usuários. RAP - Rio de Janeiro 2008; 42(2):369-389.
4. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002. 726p.
5. Elias PE, Ferreira CW, Alves MCG, Cohn A, Kishima V, Escrivão Junior A, Gomes A, Bousquat A. Atenção básica em saúde: comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão social no município de São Paulo. Cien Saude Colet 2006; 11(3):633-641.
6. Shi L, Starfield B, Jiahong X. Validating the Adult Primary Care Assessment Tool. J Fam Pract 2001; 50(2):161-175.
7. Harzhein E, Starfield B, Rajmil L, Álvarez-Dardet C, Stein AT. Internal consistency and reliability of Primary Care Assessment Tool (PCATool-Brasil) for child health services. Cad Saude Publica 2006; 22(8): 1649-1659.
8. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual do instrumento de avaliação da atenção primária à saúde: primary care assessment tool pcatool - Brasil. Brasília: MS; 2010.
9. Ramos DD, Lima MADS. Acesso e acolhimento aos usuários em uma unidade de saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2003; 19(1):27-34.
10. Veloso RC, Araújo MRN. Avaliação da resolutividade do programa saúde da família em municípios de pequeno porte no estado de Minas Gerais. Rev APS 2009; 12(3):238-243.
11. Albuquerque FJB, Melo CF. Avaliação dos Serviços Públicos de Saúde em Duas Capitais Nordestinas do Brasil. Psic.: Teor. e Pesq. 2010; 26(2):323-330.
12. Harzhein E. Evaluación de la atención a la salud infantil del Programa Saúde da Família en la región sur de Porto Alegre, Brasil [tese]. Alicante: Universidad de Alicante; 2004.
13. Leão CDA, Caldeira AP, Oliveira MMC. Atributos da atenção primária na assistência à saúde da crian ça: avaliação dos cuidadores. Rev. Bras. Saude Mater. Infant 2011; 11(3):323-334.
14. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas elaboradas no âmbito do Projeto UNFPA/ IBGE (BRA/4/P31A) - População e Desenvolvimento. Coordenação de População e Indicadores Sociais. 2007-2009. [acessado 2013 abr 8]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area =0206
15. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério de classificação econômica Brasil. 2008. [acessado 2013 abr 12]. Disponível em: http://www.abep.org/new/criterioBrasil.aspx
16. Oliveira MMC. Presença e extensão dos atributos da Atenção Primária à Saúde entre os serviços de Atenção Primária à Saúde em Porto Alegre: uma análise agregada [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2007.
17. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº. 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. Diário Oficial da União 1996; 16 out.
18. Gomes VGO. A construção do feminino e do masculino no processo de cuidar crianças em pré-escolas. Texto contexto - enferm 2006; 15(1):35-42 .
19. Bourdieu P. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2002.
20. Confederação Nacional das Indústrias (CNI). Pesquisa CNI - IBOPE: retratos da sociedade brasileira: saúde pública. Brasília: CNI; 2012.
21. Mello GA, Mattos ATR, Souto BGA, Fontanella BJB, Demarzo MMP. Médico de família: ser ou não ser? Dilemas envolvidos na escolha desta carreira. Rev. bras. educ. med. 2009; 33(3):475-482.
22. Caetano R, Dain S. O programa de saúde da família e a reestruturação da atenção básica à saúde nos grandes centros urbanos: velhos problemas, novos desafios. Physis 2002; 12(1):11-21.
23. Kovacs MH, Feliciano KVO, Sarinho SW, Veras AACA. Acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro. J Pediatr (Rio J) 2005; 81(3):251-258.
24. Costa GD, Cotta RMM, Reis JR, Ferreira MLM, Reis RS, Franceschini SCC. Avaliação da atenção à saúde da criança no contexto da Saúde da Família no município de Teixeiras, Minas Gerais (MG, Brasil). Cien Saude Colet 2011; 16(7):3229-3240
25. Ribeiro JM, Siqueira SAV, Pinto LFS. Avaliação da atenção à saúde da criança (0-5 anos) no PSF de Teresópolis (RJ) segundo a percepção dos usuá rios. Cien Saude Colet 2010; 15(2):517-527.
26. Harzhein E, Stein AT, Álvarez-Dardet C. A efetividade dos atributos da atenção primária sobre a saúde infantil. Boletim da Saúde Porto Alegre 2004; 18(1):23-39.