versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.07182016
O tempo é um elemento primordial na regulação da vida em sociedade, já que o processo civilizador impõe aos indivíduos um número maior de atividades cujo encadeamento implica maior dependência e complexidade na rede de relações sociais1. A importância do tempo para a vida social permeia um conjunto de estudos sociológicos cuja concepção básica é a de que o tempo despendido nas várias atividades revela valores socioculturais de um determinado grupo. O primeiro estudo comparativo multinacional sobre o uso do tempo, coordenado por Alexander Szalai nos anos 1960, englobou dados de 12 países2. No Brasil, Neuma Aguiar, é considerada pioneira na aplicação sistemática desta metodologia, ao realizar a pesquisa “Múltiplas temporalidades de referência: análise dos Usos do Tempo entre grupos domésticos na população de Belo Horizonte”3-5. Os estudos nesta área baseiam-se em questionários sobre o tempo despendido em atividades específicas ou em diários de uso do tempo para o registro do tempo dedicado a todas as atividades ao longo das 24 horas6-7.
Diversos países contam com dados nacionais sobre o uso do tempo, gerando estatísticas sociais e econômicas que subsidiam a formulação de indicadores das condições de vida8. Os países europeus realizam sistematicamente o survey HETUS (Harmonised European Time Use Survey), enquanto os Estados Unidos adotam o ATUS (American Time Use Survey). Na América Latina, os levantamentos são menos elaborados, geralmente por meio de informações sobre o tempo dedicado a algumas atividades7. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem computado, desde os anos 1990, o tempo despendido nas tarefas domésticas e no deslocamento casa-trabalho como parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD9.
O levantamento sobre o uso do tempo é considerado uma ferramenta insubstituível nas discussões contemporâneas sobre o lazer, os horários de trabalho e os papéis de gênero em grandes populações8,10. No entanto, tanto os diários como os questionários se atém, exclusivamente, à mensuração em horas e minutos, desconsiderando a vivência qualitativa sobre o tempo11,12. Em que pese a relevância desta abordagem para identificar tendências quanto ao emprego do tempo, há limitações quanto à compreensão sobre as escolhas e/ou contingências subjacentes à distribuição do tempo, igualmente reveladoras de valores socialmente construídos.
A demanda por abordagens qualitativas do tempo fica evidente no contexto dos crescentes “desafios” temporais na interface entre as esferas profissional e doméstica, com grande contingente de famílias em que ambos os parceiros trabalham e a disseminação de trabalhos que extrapolam 40 horas semanais13. Soma-se o quadro de intensificação e aceleração do trabalho cujo entendimento demanda abordagens que possam lidar com as relações entre o tempo, o trabalho e a subjetividade14. As consequências da “escassez de tempo” se referem não só ao tempo quantificado em horas ou minutos, mas também à forma como este é sentido, já que as pessoas precisam de tempo para trabalhar, construir relações, se exercitar, se cuidar, consumir, enfim, um conjunto de ações fundamentais à saúde. Desta forma, a escassez de tempo e a chamada pressão do tempo têm sido associadas a sintomas de adoecimento físico e mental15,16.
A partir destas reflexões, o presente artigo tem como objeto o desenvolvimento de um dispositivo que busca promover um encontro sinérgico entre o material quantitativo sobre o uso do tempo e a vivência das pessoas sobre o próprio tempo. O grupo investigado, enfermeiros de um hospital público, frequentemente detém mais de um vínculo profissional, o que resulta em longas jornadas de trabalho17,18. Tendo como a premissa que o tempo é uma dimensão organizadora da vida em sociedade1 e o considerando como “um recurso para a saúde”16, trabalhamos com a perspectiva de que ao expressar sua vivência sobre o tempo os trabalhadores trariam implicações à saúde.
Realizado em um hospital público da cidade de Niterói, RJ, o estudo teve como objetivo desenvolver e testar um dispositivo que permitisse às enfermeiras e enfermeiros analisar o próprio tempo, buscando revelar possíveis relações entre o tempo e a saúde.
Segundo Ramos19, a primeira iniciativa acadêmica na área do uso do tempo é um estudo sobre o tempo livre de trabalhadores, publicado por George Bevans no início do século XX. O uso do tempo como ferramenta analítica ganhou relevância a partir de amplo estudo multinacional nos anos 19602, que demandou um esforço de classificação das atividades, gerando um sistema básico que guia as análises contemporâneas do uso do tempo. Outra base de dados multinacional, a Multinational Time Budget Data Archive, foi descrita em 199020,21. Neste contexto, destaca-se a iniciativa da Divisão de Estatística das Nações Unidas, que propôs em 1977 um sistema conhecido como ICATUS (International Classification of Activities for Time-Use Statistics), de forma a priorizar a comparabilidade entre os diferentes estudos19.
No Brasil, uma importante referência nesta área é Neuma Aguiar, cujos estudos abordam temáticas diversas, como a divisão e articulação do trabalho remunerado e doméstico22, a percepção do tempo na vida cotidiana3, as desigualdades sociais em relação ao tempo de deslocamento23, e o tempo de lazer e de trabalho remunerado24, incluindo comparações com cidades americanas5. Esta metodologia foi incorporada nas estatísticas oficiais através de estudo-piloto com diários de uso do tempo realizado pelo IBGE em 2009 em uma sub-amostra da PNAD Contínua25.
Os diários de uso do tempo referem-se ao registro das atividades ao longo de um dia, dois dias ou ao longo de uma semana. Outra modalidade de diário baseia-se na entrevista do dia seguinte, na qual se verifica o tempo despendido nas atividades no dia anterior. Alguns estudos incluem informações contextuais e das demais pessoas7,8.
O dispositivo descrito no presente estudo foi desenvolvido em duas etapas, a partir de pesquisa de campo com enfermeiros de um hospital público em Niterói, RJ, em 201226.
A aplicação do dispositivo abrangeu 42 enfermeiros (24 mulheres e 18 homens) que participaram de ambas as etapas da pesquisa. Foram priorizados para a segunda etapa aqueles que haviam preenchido corretamente a caderneta (1ª etapa), que tinham mais de um vínculo empregatício, que ocupavam cargos na gerência, que tinham filhos pequenos ou idosos na família e que estavam cursando pós-graduação.
Com relação ao perfil sociodemográfico, as enfermeiras eram mais jovens (29% na faixa de 50 anos ou mais, contra mais da metade do grupo dos enfermeiros nessa faixa etária). A maioria do grupo foi categorizada como casada(o)/união estável. Quanto à composição da família, 54% das enfermeiras e 28% dos enfermeiros tinham dois filhos. Considerando os valores vigentes à época, a maioria dos participantes (61,9%) declarou ter salário entre 10 e 20 salários mínimos. No âmbito do trabalho, um percentual acima de 80% tinha o título de especialista; 62% do grupo referiu ter dois vínculos profissionais, sendo o percentual maior entre os homens, com 90% que referiam ter dois ou três vínculos de trabalho.
O instrumento utilizado baseou-se em uma caderneta de atividades elaborada pelos autores26, adaptada a partir de diários de uso do tempo19. O instrumento continha a seguinte descrição das atividades, cujo agrupamento baseia-se em uma classificação elaborada por Aguiar7, a partir da base ICATUS: Trabalho remunerado, Atividades de lazer e vida social, Estudos, Cuidados de si, Cuidados de outros, Atividades domésticas, Deslocamentos, Sono e descanso26.
A primeira versão do instrumento foi testada em 2011 com alguns profissionais do hospital, para promover ajustes que viabilizassem o seu uso para os objetivos desse estudo. A versão final da caderneta de atividades englobava sete dias de registro, nas quais os(as) enfermeiros(as) assinalavam o horário de início e término de cada atividade através de linhas horizontais num quadro de horários referente às 24 horas do dia.
Os enfermeiros foram orientados sobre a possibilidade de assinalar mais de uma atividade ocorrida no mesmo momento, através do registro de mais de uma linha horizontal, porém sem a distinção entre atividade principal e secundária, geralmente observada em estudos da área19,27.
A caderneta de atividades incluía ainda um pequeno questionário com perguntas fechadas referentes a dados sociodemográficos (idade, renda e situação conjugal) e à atuação profissional (tempo de trabalho naquele hospital, formação profissional, número de empregos na enfermagem e horário de trabalho).
No primeiro contato com os trabalhadores, o pesquisador apresentava os objetivos da pesquisa e a caderneta de atividades, ressaltando a importância de sua adesão e convidando-o(a) a participar, após a assinatura do TCLE. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do respectivo Hospital e pelo Comitê de Ética Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, tendo sido respeitadas as recomendações sobre os aspectos éticos relativos a pesquisas com seres humanos.
Esta etapa iniciava com a apresentação de uma imagem elaborada pelo pesquisador de campo, a partir dos registros da caderneta. Intitulada mapa de horários, a imagem descrevia, através de cores, toda a distribuição das atividades ao longo de uma semana (Figuras 1 e 2). Eram verificados possíveis erros no preenchimento e a ausência de informações, procedendo-se a correções necessárias. De posse da imagem no notebook, as entrevistas se iniciavam através de um roteiro com perguntas abertas sobre o respectivo mapa de horários. O diálogo se iniciava com uma pergunta sobre a impressão do(a) entrevistado(a) sobre aquela imagem, seguida de questões relativas aos acontecimentos do dia a dia ou eventos realizados com a família e atividades desenvolvidas no hospital. Foram ainda elencadas temáticas, como a organização do próprio tempo, aspectos sobre a interface público-privado e a divisão do trabalho doméstico, com destaque para as relações de gênero e a saúde.
Através dessa modalidade de entrevista, buscava-se promover uma autoconfrontação, termo oriundo da Ergonomia da Atividade, que se refere ao confronto da distância entre o trabalho prescrito e o real28. Trata-se de dar visibilidade à mobilização subjetiva que é necessária para a efetiva realização do trabalho. Trouxemos para o nosso estudo essa perspectiva de confrontar o indivíduo com ele mesmo, neste caso, a partir de um elemento externo (seu mapa de horários), que favorecesse sua confrontação em relação ao próprio uso do tempo.
Procedemos à transcrição integral e literal das entrevistas e, a seguir, às análises, que se iniciaram com a leitura das narrativas, buscando identificar as categorias temáticas e posteriormente articulá-las ao referencial teórico. Foram consideradas como fonte de análise o relato dos(as) enfermeiros(as) sobre os mapas de horários, de forma a compreender como os sujeitos percebiam e se relacionavam com o próprio tempo, com foco em possíveis correlações entre os usos do tempo e a saúde, buscando incorporar o contexto de produção dos discursos29. O tratamento do material empírico respeitou a integridade narrativa das entrevistas, buscando compreender a vivência dos trabalhadores sobre o uso do tempo no dia a dia.
Analisar a visão dos trabalhadores sobre o preenchimento da caderneta é fundamental para avaliar a viabilidade de uso do dispositivo. A maneira como as pessoas se relacionaram com o instrumento expressa uma familiaridade que parece favorecer seu preenchimento permitindo, através dele, a elaboração do mapa de horários. Na visão dos trabalhadores, preencher a caderneta demandou refletir sobre as atividades da vida cotidiana e suas delimitações como, por exemplo, em relação ao cuidado de si e do outro.
... no momento do registro você fica se perguntando o que seria cuidar de si... o que seria cuidar do outro... em que momento essas coisas se encontram... também é um momento que você fica... em um momento aqui [mapa de horários] estava cuidando do meu filho... estava cuidando de mim... mas dele também... mas acho que a impressão mais importante é que é uma pesquisa inovadora... Enfermeira 56
Estratégias diferenciadas de preenchimento foram observadas, chamando a atenção para características pessoais que se expressam através da maneira de usar o instrumento. Para a enfermeira 54 ... fazer o exercício foi tranquilo... até porque eu me lembro bem das coisas que eu faço durante a semana... eu tenho a memória boa pra fazer isso.... Já a enfermeira 25 refere ter preenchido a caderneta de outra forma.
... sempre que dava eu preenchia [a caderneta] e aí parava no horário que estava, pegava na bolsa, voltava e preenchia... assim eu fui indo... você viu que eu trabalho direto então eu normalmente preenchia nos plantões... Enfermeira 25
Como é inerente nas interações humanas, cabe considerar as expectativas dos entrevistados em relação à participação na pesquisa. Neste sentido, o preenchimento das atividades na caderneta é sujeito a vieses no sentido da maior ou menor valorização do tempo despendido em determinada atividade, em função do que é socialmente desejável, como ressaltam diversos autores29. Entre as expectativas observadas, está a de haver um limite ou um padrão de normalidade na divisão do tempo, que se mescla com contradições e ambiguidades do cotidiano.
Uma dificuldade apontada pelos participantes se refere à classificação das atividades. A descrição exemplificada na caderneta por vezes poderia não se mostrar suficiente para auxiliar o participante a discernir acontecimentos correspondentes à respectiva atividade. Além disso, o registro através de categorias amplas (por exemplo, atividades domésticas) e não por atividade específica (lavar, passar, cozinhar, etc.) gerou dificuldades mediante a impossibilidade de registrar cada atividade em si.
Os mapas de horários 1 e 2 (Figuras 1 e 2) são exemplos da distribuição do tempo das enfermeiras e enfermeiros. No Mapa 1 (enfermeira 5) podemos observar uma grande quantidade de atividades realizadas de maneira sobreposta, que ocorrem em curtos intervalos de tempo. Chama atenção a grande proporção de tempo ocupado com os cuidados de outros e com as atividades domésticas. O sono/descanso é interrompido diversas vezes pelas atividades de cuidados de outros. Há momentos de atividades domésticas realizadas de maneira fracionada, até mesmo durante a jornada de trabalho que, como relatado através das entrevistas, são situações de “gestão” de assuntos da esfera doméstica através do telefone. A possibilidade de assinalar na caderneta mais de uma atividade no mesmo momento permitiu identificar o que denominamos atividades simultâneas26 como, por exemplo, atividades domésticas e cuidado de outros ou o lazer e cuidado de outros.
No conjunto de mapas, pudemos observar uma diferença considerável no aspecto geral da distribuição de atividades. No Mapa 2 (enfermeiro 4), por exemplo, a imagem expressa um tempo que se mostra mais contínuo, mais organizado, menos fragmentado que se reflete em um mapa mais “limpo”, diferente do anterior que nos convoca à sensação de um constrangimento do tempo. Podemos verificar neste mapa também uma grande diferença na quantidade de tempo destinado ao lazer e ao cuidado de si. Uma descrição mais ampla dos mapas de horários e comparações dos dados quantitativos segundo o gênero é apresentada em pesquisa mais ampla na qual se insere o presente estudo26.
A confrontação contribuiu para dar visibilidade às experiências cotidianas, levando os trabalhadores a estranhar a distribuição do seu tempo através de reações diversificadas que traduziam uma oportunidade de olhar para a vida no sentido de autoanalisar-se.
eu não tinha parado pra observar o tempo que eu gasto nos dois serviços... o tempo que eu gasto com lazer... deu pra reparar que a parte de estudos praticamente é zero... que você fica pra lá e pra cá com dois empregos, com atividade doméstica, com os compromissos do dia a dia... Enfermeiro 64
O uso do mapa de horários nas entrevistas parece também ter promovido reflexões sobre a própria existência gerando questionamentos e angústia sobre a rotina realizada de maneira mecânica, a qualidade e equilíbrio do tempo despendido nas diversas áreas da vida. Por outro lado, essa confrontação cria possibilidades de mudança de hábitos, por meio do registro das atividades e da visualização da imagem do próprio registro do tempo.
... aí eu comecei a ficar preocupada... porque achei que estava dispensando muito tempo com descanso, que eu poderia estar aproveitando esse horário, pelo menos até as dez horas (vinte e duas horas) pra uma ida ao cinema ou com uma leitura, aí eu comecei a mudar isso a partir da caderneta. Enfermeira 13
Olhar para o mapa e se confrontar com o seu uso do tempo produziu novos sentidos. Essa produção se fez no próprio ato da entrevista, através do estranhamento de algo familiar, propiciando uma conscientização sobre a vida cotidiana facilitada pela imagem do mapa. Ao definir a técnica de entrevistas como “conversas com finalidade”, Minayo30 observa que estas podem se organizar de diferentes formas, entre as quais a entrevista projetiva que usa dispositivos visuais como “um convite ao entrevistado para discorrer sobre o que vê”30. No caso do presente estudo, não há uma imagem definida a priori, mas uma imagem construída ao longo do próprio processo de pesquisa a partir de informações fornecidas pelo entrevistado.
Do ponto de vista metodológico, essa oportunidade de enxergar a vida pode ser correlacionada às palavras de Duarte29 “Quando realizamos uma entrevista, atuamos como mediadores, para o sujeito apreender sua própria situação de outro ângulo, conduzimos o outro a se voltar sobre si próprio; incitamo-lo a procurar relações e a organizá-las”. Neste sentido, catalogar e analisar o tempo levou os(as) entrevistados(as) a imprimir um outro olhar sobre suas relações com outras pessoas no cotidiano e com a própria saúde.
Destaca-se nas narrativas a menção ao tempo excessivo dedicado ao trabalho e suas relações com a saúde, como, por exemplo, na fala da enfermeira 60, que se percebe ... assoberbada... cansada... às vezes se eu tiver com muita coisa pra fazer eu fico nervosa... A menção explícita ao corpo, em articulação com o pouco tempo para si foi identificada em diversas falas, contribuindo de modo significativo para expressar o quanto o menor tempo para si tende a resultar em menores possibilidades de negociação cotidiana pela saúde. Neste contexto, a enfermeira 8 obseva que ... passa tanto tempo sem ir a uma ginecologista e quando você vai tem surpresas... vou ter que fazer um exame porque apareceu um cisto... E a enfermeira 18 destaca que ...o corpo em uma etapa de vida ele grita... pode não reclamar enquanto você é nova... vai ficando sobrecarregada e tudo mais... mas uma hora seu corpo grita e grita feio...
As relações entre o tempo de trabalho e o pouco tempo para cuidar da saúde expressam o caráter finito do tempo, como propõem Stradzins et al.15. Estes autores observam sintomas físicos e mentais que se associam à sensação de falta de tempo através de mecanismos relacionados à recuperação insuficiente em relação ao trabalho, à redução da atividade física e dos cuidados em relação à alimentação, além de aspectos ligados ao estresse.
A este respeito, Dedecca et al.31 se referem, a partir da leitura de Elias1, à interdependência das formas de apropriação do tempo disponível. A tensão entre os tempos decorreria da impossibilidade de modificar sua extensão diária, já que a duração do dia – 24 horas – não se modifica. Assim, o aumento da extensão de uma das formas de apropriação do tempo diário exige que ao menos uma das demais seja constrangida31.
...com o decorrer dos dias foi algo estressante... Por quê? Porque eu fui observando que a minha vida tem muito mais de trabalho... acompanhado do cuidar dos outros... e talvez estaria deixando muito... coisas minhas... para fazer para os outros... Enfermeira 15
O trabalho doméstico, visto como sucessivo e interminável, demanda uma ocupação substancial de tempos, em que na maioria das vezes, a sobrecarga direcionada às mulheres, neste caso às enfermeiras, gera uma desproporção entre o tempo disponibilizado para os outros e para si. Everingham32 observa que o trabalho das mulheres no âmbito familiar é orientado primariamente para coordenar os múltiplos tempos, ressaltando o quanto as mulheres se antecipam às necessidades dos membros da família, preparando e organizando as ações com antecedência. A relação entre o tempo disponibilizado a outros e o pouco tempo para si integra diversas falas que remetem a um acúmulo de desgaste com implicações à saúde emocional e física.
Questões ligadas ao tempo para si e para os outros expressam desigualdades na distribuição dos tempos associadas às relações de gênero, em especial quanto à disponibilização constante para as demandas do espaço doméstico33. No Brasil, este tema é abordado no Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto – ELSA – Brasil cujas análises revelam que a percepção de tempo insuficiente para o próprio cuidado e lazer em função de demandas do trabalho e da família é mais frequente entre os que têm jornada superior a 40 horas semanais (homens e mulheres). Porém, apenas entre as mulheres, o tempo insuficiente foi associado à saúde, no caso, à obesidade34. A autora sugere que ao assumirem majoritária ou integralmente a responsabilidade sobre o cuidado de outros (filhos, cônjuge, idosos, deficientes, doentes), as mulheres dispõem de menos tempo para o cuidado de si34.
Mas olhando (o mapa) é diferente... então assim, agora eu entendo porque eu estou andando tão cansada... vou mandar isso pra o meu marido... pra ele entender... ele fica falando... amor você está muito cansada... agora vou mostrar pra ele porque... (silêncio) Interessante... - Enfermeira 5.
De fato, a invisibilidade das atividades realizadas na esfera doméstica e de cuidado em senso mais amplo tem sido objeto de estudos sociológicos, através de discussões ligadas ao conceito de divisão sexual do trabalho35,36. As atividades de cuidado estão entre aquelas que mais requerem dedicação de tempo, com sérias implicações na organização da vida cotidiana, como apontam estudos no contexto brasileiro20 e em outros países37,38. As diferenças de gênero quanto à vinculação com a esfera doméstica e de cuidado levam as mulheres a vivenciar seu lazer como um tempo “invadido” por demandas de cuidado, em consonância com a fala anterior39. A falta de um momento de lazer sozinha se expressa no próprio Mapa 2, em que as atividades de lazer e de cuidado ocorridas simultaneamente contribuem para o aspecto fragmentado deste mapa. Entre os estudiosos do tempo livre, o grau de fragmentação do tempo é visto como um indicador da qualidade deste tempo, já que as atribuições domésticas afetam o caráter “livre” deste período39. Este é o princípio subjacente ao conceito de pobreza de tempo utilizado sob diferentes definições na literatura sociológica para expressar aspectos da privação do tempo, inclusive decorrentes das relações de gênero39.
Em suma, a escassez de tempo pode ser vista como um fenômeno produzido socialmente, em especial pela forma com que as atividades ligadas ao cuidado são (des)valorizadas e negociadas na sociedade15. O cuidado não só demanda tempo, mas por incluir atividades fortemente associadas a necessidades de outros, tem frequentemente um caráter inadiável, gerando um importante diferencial de gênero15. Neste contexto, cabe destacar que as atividades simultâneas, mais frequentes entre as mulheres, são geralmente acopladas às atividades domésticas, como apresentado em estudo anterior40. Tais observações confirmam as observadas em estudo americano com casais de dupla renda, remetendo à realização de multitarefas, como descrevem as autores41.
A sequência metodológica adotada, composta pela quantificação dos usos do tempo seguida da confecção do mapa de horários, e posterior entrevista de confrontação se mostrou adequada aos objetivos propostos.
O material empírico apresentado indica que a reflexão sobre o mapa foi potencializada pela entrevista, que por sua vez foi beneficiada pela imagem, que trouxe uma materialização para algo que, em uma entrevista convencional, teria somente um caráter verbal, ou seja, imaterial. A visualização de imagem parece ter dado concretude à vivência do uso do tempo, possivelmente tornando os conflitos mais facilmente identificados pelos próprios trabalhadores. Já a pura descrição do uso do tempo não permitiria compreender os significados atribuídos pelos trabalhadores à utilização do tempo e às suas relações com a saúde, considerando seu contexto de vida. Do ponto de vista da articulação entre as duas técnicas que compõem o dispositivo – registro do tempo e entrevista de confrontação – pode-se dizer que houve um movimento sinérgico, com um resultado final que supera o potencial de cada técnica separadamente. A nosso ver, a potência do dispositivo se deve ao fato de ter permitido uma maior aproximação sobre os usos e vivências em relação ao tempo além do visível e quantificável, privilegiando a fala das pessoas e propiciando que refletissem, construindo a partir da linguagem um discurso para a produção de sentidos. Assim, embora os diários de uso do tempo sejam disseminados em estudos sociológicos8, sendo, inclusive, adaptados para a área do trabalho em turnos42,43, em ambos os casos a atuação dos participantes se restringe a fornecer informações sobre a utilização do tempo. Desta forma, o dispositivo desenvolvido no presente estudo tem um caráter original, ao promover os trabalhadores a analistas de seu próprio tempo e sujeitos capazes de refletir sobre o tempo e saúde.
O dispositivo permitiu apreender o uso do tempo entre os trabalhadores, suas percepções sobre a distribuição do tempo e como a relacionam à saúde, considerada em sentido amplo. Entre as questões trazidas pelo grupo estão a sobrecarga de trabalho profissional e a constatação de um tempo em demasia voltado para os outros, que se vincula ao pouco tempo para si. Na perspectiva dos trabalhadores, o excesso de trabalho é incompatível com o tempo necessário para cuidar de si, o que os tornaria mais vulneráveis ao adoecimento. Por outro lado, fica evidente que não se trata somente de uma insuficiência de tempo, já que o excesso de tempo dedicado ao trabalho por si só é visto como fonte de angústia e sofrimento mental. Da mesma forma, a vivência da falta de tempo para si, mesclada ao pouco tempo de lazer ou o lazer fragmentado se vinculam ao cansaço físico e mental possivelmente em decorrência de uma não priorização de si mesmos. Desta forma, a análise empreendida traz elementos que nos permitem interpretar que o tempo atua como um recurso para a saúde, na linha proposta por Stradzins et al.15.
Do ponto de vista das análises realizadas, cabe considerar que os resultados não podem ser generalizados para trabalhadores de outras ocupações, tendo em vista as peculiaridades da profissão de enfermeiro no que tange aos plantões extensos (frequentemente de 12 horas), a vinculação a dois ou mais empregos na Enfermagem, além do trabalho noturno e nos fins de semana. Outra especificidade da profissão que pode ter influenciado os resultados se refere ao manuseio de prontuários e organização de horários de medicação que podem ter favorecido a familiaridade dos trabalhadores em relação ao preenchimento da caderneta de atividades. Além disso, as observações aqui realizadas devem considerar os critérios adotados na seleção do grupo (inclusão daqueles com maior jornada semanal, que ocupavam cargos de chefia, que tinham filhos pequenos ou idosos na família e que estavam cursando pós-graduação) que possivelmente influenciaram o material empírico.
Ainda quanto a limitações, alguns aspectos merecem menção em relação ao uso deste dispositivo em novas pesquisas, em especial no que concerne à caderneta de atividades. Os instrumentos descritos na literatura são diversificados quanto ao número de dias, ao detalhamento das atividades em categorias e subcategorias, à forma de assinalar atividades simultâneas, à inclusão de informações sobre o contexto e as pessoas presentes em cada atividade7,27. No presente estudo, optamos por um instrumento com duração de uma semana, já que entre enfermeiros, os dias de plantão não obedecem ao padrão de cinco dias úteis e dois dias de fim de semana. Por se tratar de um período relativamente longo, a estratégia escolhida foi a de simplificar ao máximo o instrumento, de forma a facilitar o preenchimento. Porém, esta simplificação tende a aumentar uma dificuldade inevitável nos estudos do uso do tempo, que se refere à classificação das atividades (por exemplo, as refeições podem ser classificadas como cuidado de si na perspectiva fisiológica, mas também como lazer, se realizadas em um restaurante, a depender do motivo do encontro). O uso de categorias amplas de atividade como o trabalho doméstico (ao invés de “lavar”, “passar”, “cozinhar” etc.) também pode ser fonte de dificuldades durante o preenchimento. É essencial que a elaboração do instrumento considere as características do grupo e os objetivos do estudo no sentido de buscar um instrumento com maior detalhamento ou mais simplificado.
Um ponto positivo da caderneta de atividades foi a possibilidade de assinalar e analisar atividades simultâneas, já que há críticas à análise exclusiva das atividades primárias, por desconsiderarem a maximização do tempo e as atividades de cuidado, por vezes classificadas como secundárias em outros estudos19.
O material apresentado aponta para um caminho investigativo potente na análise das relações entre o tempo e a saúde. O emprego da imagem sobre o uso do tempo durante a entrevista favoreceu uma situação de estranhamento que permitiu nos aproximarmos da compreensão sobre as relações que os trabalhadores estabelecem entre a forma de utilizar e vivenciar o tempo e a sua saúde.
A análise empreendida revela a centralidade da categoria gênero nos valores subjacentes ao emprego do tempo, remetendo à observação de Michelson e Crouse44 de que “a pesquisa sobre o uso do tempo inevitavelmente envolve a pesquisa sobre o gênero” (nossa tradução). Bessin e Gaudart45 são mais enfáticos ao afirmarem que “a temporalidade está na base do sistema de gênero” (nossa tradução).
Em um contexto de crescentes desafios temporais – maior precarização dos vínculos de trabalho, maior ocupação das 24 horas com consequente aumento da jornada – a adaptação deste dispositivo para uso empírico com outras categorias de trabalhadores é bem-vinda. Também são benvindas iniciativas de adaptação deste percurso metodológico para uso em grupo no sentido de promover uma problematização pelos trabalhadores sobre as relações entre o tempo e a saúde.