versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.3 São Paulo set. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140134
Chamei o instrumento de cilindro e experimentei modos de construir [...] Paris tornou-se um centro de treinamento estetoacústico [...] a cilindromania se espalhou [...] pacientes de vários países preferiam ser examinados por quem estivesse capacitado ao cilindro1.
A progressiva queda do glamour de ser propedeuta restringiu a aplicação da cardioestetoausculta de excelência em valvopatia (CEAEV).
O Brasil preserva grupos de "Stethophyllus sp" (STH), espécimes raros de cardiologistas que formam colônias de prática de CEAEV, em ambientes cercados de tecnologia por todos os lados. Incluo-me.
Esclareça-se: o STH não é antiquário, a CEAEV não é jurássica e o estetoscópio não é peça que falta no museu. Súdito da clínica soberana, o STH crê na vitaliciedade do estetoscópio e no forte poder integrador do ponto de partida da CEAEV com os demais achados do multissensorial exame físico, conceitos da ciência e informações pela tecnologia2,3.
O STH aceita que a época áurea do cilindro de Laënnec morreu junto com William Bart Osler, há cerca de 100 anos4. Mas ele entende que a fidelidade deve persistir. Não há por que conjeturar que a CEAEV diante da ecodopplercardiografia terá o destino que a percussão cardíaca teve, superada pela radiografia.
A CEAEV é herança "tombada". Um início possível da formação do patrimônio é a profecia de Robert Hooke (1653-1703): "Ouvi claramente o batimento do coração humano [...] quem sabe, pelos sons dos movimentos dos órgãos internos possamos descobrir as tarefas efetuadas em vários escritórios e lojas do corpo humano, e daí reconhecermos que instrumento ou máquina está com defeito5."
Cerca de um século depois, a invenção do estetoscópio facilitou observar que variedades de ruídos cardíacos correlacionavam-se com peculiaridades anatômicas valvares encontradas post mortem6,7 e influenciou o modo pelo qual o clínico passou a interagir com o paciente7.
O cilindro de Laënnec tornou-se símbolo das chamadas técnicas cognitivas6. E do médico, por ser objeto pessoal disponível 24 horas de todos os dias, portátil, leve e maleável, que dispensa ambiente especial e dá presteza à exteriorização da ruidosa fonte sonora em que o coração se transforma pela ocorrência de valvopatia. E mais, não está atrelado a orientações de aplicação em diretrizes. Livros compactaram as informações, mas não desprezaram as sistematizações.
A ausência de comunicações originais recentes sobre novos ruídos cardíacos revela esgotamento da geração do conhecimento e um "nada a acrescentar" à utilidade semiológica8,9. O primeiro aconteceu após pesquisas sobre bases fisiológicas, e não há previsão do aparecimento de uma inédita modalidade de valvopatia acompanhada por um sopro ainda desconhecido. O segundo é atestado como: "O ponto de partida é a realização de anamnese e exame físico completos, com destaque para a ausculta cardíaca10."
Certos comportamentos de privação do raciocínio clínico, no decorrer .da anamnese e do exame físico, resultaram de conhecidas mudanças do ser médico e, por conseguinte, do ser cardiologista11. Não é difícil perceber, nas cinco gerações que convivem atualmente na cardiologia brasileira, amplas variações da construção de hipóteses diagnósticas pari passu com cada fato ou dado recolhido.
A documentação apressada, sem o uso da razão para aprofundamentos, pôs ladeira abaixo a concentração e a atenção seletiva sobre cada ruído cardíaco, paciente a paciente. Em consequência, a curva do aprendizado e a linha de manutenção das habilidades em propedêutica por audição ficaram altamente imobilizadas. Além disso, os "manuais de uso", livros detalhados sobre a CEAEV, deixaram de ser reeditados há décadas por carência de demanda, levando à contingência do conhecimento ao saber do professor e aos livros gerais de cardiologia.
Uma premissa pedagógica é cruel: o que não se aprendeu não há como ensinar. E o efeito dominó ficou notório entre nós: a derrubada, geração sobre geração de cardiologistas, da hipocrática transmissão por professores referências. É fenômeno universal. Nos Estados Unidos, por exemplo, a queda da proficiência na ausculta cardíaca alertou para o alto potencial de prejuízos na expertise para o diagnóstico à beira do leito12. É obscuro, contudo, se houve efeitos positivos da inquietação8,13.
Explicações para a decaída do zelo com a CEAEV giram em torno do fator tempo, da não compensação financeira e da visão de "terceirização" da destreza diagnóstica para exames de imagem, como a ecodopplercardiografia8,13-15.
Por outro lado, a ampliação tecnológica do estetoscópio, com o objetivo de trazer ganho ao ensino por meio de amplificação, gravação, reprodução, visual gráfico e simultaneidade de auscultadores, não se tornou disponível para a continuidade assistencial do aprendizado.
Não há como negar, a CEAEV nutre-se do interesse em praticá-la. O "treino do ouvido" apoiado em outros dados do exame físico cardiovascular reproduz como os antigos faziam e, integrado com os demais métodos disponíveis, é vantagem sobre os antigos14. A CEAEV, pois, é guia da beira do leito para "diálogos" com métodos complementares.
O Brasil do início do século XXI presencia a convivência da cardiopatia reumática do jovem, não decrescente, e da estenose aórtica do idoso, crescente, nos ambulatórios de valvopatia. A CEAEV dá padronização observacional às várias faixas etárias. É uma das razões pelas quais a CEAEV desatenciosa deprecia: a) explicação para dados da anamnese; b) encaminhamento da positividade diagnóstica; c) alerta de valvopatia até então desconhecida. Ademais, desatenção com os ruídos cardíacos abrevia, por tabela, o acolhedor e pró-terapêutico vínculo médico-paciente9,15-17.
O STH pode esgotar um diagnóstico com rapidez, completude, alta especificidade, excelente relação de custo-benefício e satisfação pessoal - por exemplo, a insuficiência importante da valva mitral causada pela rotura de corda tendínea. Ele não tem necessidade de muito mais ação propedêutica para explicar a insuficiência cardíaca aguda e grave, e para conjeturar a terapêutica etiopatogênica.
O STH não é saudosista. Ele enxerga benefício renovado no patrimônio propedêutico construído por notáveis mestres da semiótica3, muitos deles eternizados como epônimos e transformados em metonímia (auscultei um Austin Flint, o Rivero Carvallo desapareceu, o Gallavardin esclareceu).
O STH destaca que a CEAEV pode ter papel relevante na aplicação de inovações. Na década de 1980, foi o aparecimento de um sopro sistólico no decorrer da sequência de dilatações na valvoplastia mitral por cateter-balão que passou a marcar a finalização terapêutica, a fim de evitar o desenvolvimento da insuficiência mitral aguda no afã de maximizar a área valvar mitral.
O STH reconhece, todavia, que a modernidade tecnológica dispensa certas etapas da CEAEV clássica e, inclusive, as elimina dos programas de capacitação. É o caso da quantificação do período de tempo entre a segunda bulha e o estalido de abertura da mitral - 0,04-0,10 s -, como índice do grau de hipertensão atrial esquerda e, ipso facto, da gravidade da estenose mitral.
Com esse conceito, e ciente das limitações de captação dos ruídos e do silêncio de morfologias de vulto, como trombos e vegetações, o STH empenha-se pela segurança em se posicionar sobre não raras dissociações de informações. Exemplo desse compromisso ético "revisor" da tecnologia é o juízo sobre a chance de uma identificação de regurgitação valvar discreta ao Doppler, não por ele auscultada, ser achado verdadeiro ou falso positivo.
Vale formular: STH, qual é o papel atual da CEAEV no diagnóstico da lesão valvar no Brasil (subtendendo o uso do estetoscópio convencional)?
O STH que faz "válvula", especialmente o que associa deveres de ensino, responderá com um categórico indispensável. Claro, ele sabe que é minoria na cardiologia, mas justificará que, para dar um sólido núcleo ao diagnóstico, a CEAEV não é nem um exame complementar nem um exame supérfluo para admitir opções de nível de aplicação. A tecnologia não é um inimigo da CEAEV, a preocupação é com o mau uso da mesma18.
O STH aproveitará a ocasião e se manifestará solidário e à disposição de colegas que, embora fora da ilha, responderiam de modo semelhante a ele, lamentando razões pelas quais não adquiriram a expertise ou vieram a atrofiar pelo desuso. Mas ele enxergará reducionista se o argumento for que é a sobrecarga de trabalho que sacrifica o empenho do cardiologista pela CEAEV.
Advogados do diabo não faltam fora das ilhas. Eles apregoam que há apologia da CEAEV nas "desculpas" pelas imprecisões com variações individuais e efeitos de janela acústica15, que ela é um luxo para poucos e uma perda de tempo para muitos, e que há mais qualidade de informações quantitativas e hemodinâmicas em outros métodos8,13.
Diante das opiniões sobre rebaixamento da hierarquia da CEAEV, o STH lembra que é complexo atribuir causas a uma "não ausculta" ou a uma "ausculta esquisita", que o incomum e o áfono nunca deixarão de existir. E reforça o lema do profissionalismo do STH: boa ausculta, melhor diagnóstico.
O subjetivismo sobre veracidades e falsidades da CEAEV, embora criticável, sempre acompanhou o estado da arte. É histórico como a caracterização da CEAEV originou-se em casos isolados verdadeiramente positivos e se desenvolveu na constatação da baixa chance de falso negativo em pequenos grupos afins de pacientes, tendo como referências necropsia, cateterismo cardíaco e fonomecanocardiografia.
Empecilhos a conjeturas de estudos randomizados, duplo-cegos, multicêntricos mantêm o clima de alto enfoque observacional nas ilhas - recorde-se que Austin Flint (1812-1886) celebrizou-se pela observação de dois casos, e José Manuel Rivero Carvallo (1905-1993) relatou 11 casos, 10 positivos.
Alguns poucos estudos, até por vieses de variedade de etiopatogenia e de diversidade de padrão de referência para grau de gravidade8,13,19, não forneceram resultados para a construção de evidências. Como traduzir para a prática a sensibilidade do sopro de Austin Flint variando de 0-50% em insuficiência aórtica discreta a moderada e de 52-100% em insuficiência aórtica moderada a importante?19
Por outro lado, a CEAEV apresenta alta sensibilidade e alta especificidade para a identificação de portadores assintomáticos de valvopatia com as finalidades de check-up, liberação para procedimentos cirúrgicos, admissão de trabalho e planejamento de atividades esportivas20.
A rotina "que satisfaz" o STH rejuvenesce a CEAEV. A jovialidade, por sua vez, é ímã da vontade de ferro da mocidade pelas boas práticas da cardiologia. A atração já deu passos promissores.
O STH está esperançoso. Ele tem motivos para crer nas comemorações do bicentenário da invenção do estetoscópio, a acontecer em 2016, além de uma protocolar reverência histórica ao período entre dois criativos: o clínico bretão Réné Théophile Hyacinte Laënnec (1721-1826) e o cardiologista David Littmann (1906-1981), da Harvard Medical School. O STH prevê espaço para celebrar a reconquista do gosto pela CEAEV na força jovem do ser médico brasileiro.
Um bem tomado pode ser retomado, nos ensinou Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C.-65 d.C.). Em medicina, o atavismo hipocrático providencia. O STH sente o sopro de ventos favoráveis, dando movimento à percepção de que existir como médico requer a capacitação para extrair por si próprio o maior número possível de informações do paciente. Jovens ainda na graduação ou já na pós-graduação aproveitam a oportunidade de estágio opcional e vão ao encontro do STH.
Entre março de 2012 e dezembro de 2013, por exemplo, o expressivo número de 175 jovens, entre estudantes e residentes provenientes de 70% dos estados brasileiros, frequentaram ad libitum uma movimentada colônia universitária de STH de atenção terciária a portadores de valvopatia.
Sabe-se como a motivação dá agudeza aos sentidos e a dedicação diuturna eleva a autoestima. Ficou nítido como essa combinação teve o mérito de despertar nos aprendizes de STH, a cada lição apreendida com os próprios órgãos dos sentidos, a vontade de chegar ao máximo da captação dos ruídos, debruçar-se mais e mais sobre o paciente, percorrer focos, procurar posições, fazer manobras e o anseio pelo ouvido do STH - mestre para descobrir o ainda inaudível ou esclarecer o já auscultado.
O Brasil mantém as vantagens da garimpagem e da lapidação das variadas preciosidades semióticas em valvopatia "diretamente da fonte" e não em frios manequins providos de gravadores. As circunstâncias reais de cada exame provocam pontos de referência facilitadores e reforçadores da retenção e recordação. Dessa forma, torna-se natural o acúmulo da riqueza sonora da representação da normalidade ou anormalidade do ritmo cardíaco, da abertura (estalido de abertura da mitral, sopro de Austin Flint) e do fechamento das valvas (primeira e segunda bulhas), do enchimento ventricular (terceira e quarta bulhas), do deflúvio atrioventricular, da ejeção e da regurgitação (sopros característicos, estalidos, manobras de Valsalva e Rivero-Carvallo), da contração atrial (acentuação pré-sistólica) e da inflamação (atrito pericárdico, sopro de Carey Coombs, sopro contínuo na fístula por endocardite infecciosa).
Oxalá cada um desses jovens - e muitos mais - se torne um multiplicador. Que seus estetoscópios sejam real metáfora da medicina arte e ciência18. É a hipocrática contribuição do STH para o ressurgimento da CEAEV pelo Brasil afora. Será a cilindromania de volta para o futuro!