versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.27 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2020 Epub 23-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702020000100016
A previously unpublished, modernized transcript of the manuscript História do descobrimento da cochonilha no Brasil (History of the discovery of the cochineal in Brazil), edited by the physician and chemist Manuel Joaquim Henriques de Paiva between 1774 and 1801, is presented. By bringing out this reviewed, annotated version of the pioneering study by his brother, the physician José Henriques Ferreira, Paiva wanted to encourage the culture and trade of the cochineal, an insect that produced a red dye that was in great demand in Europe. História... thus provides indications of the key role of so-called scientific knowledge in the development and growth of the Portuguese kingdom and their primary colony.
Key words: Portuguese-Brazilian history; scientific knowledge; cochineal
Em 1772, o doutor José Henriques Ferreira (1740-1780) ajudou a fundar, em conjunto com o vice-rei marquês de Lavradio (1729-1790) e outros homens de ciências, a Academia Científica do Rio de Janeiro (1772-1779) e finalizou sua Dissertação sobre a cochonilha, história sobre seu descobrimento na América... Pouco tempo depois, o irmão mais jovem de Henriques Ferreira, o promissor médico e químico Manuel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1829), reuniu, ampliou e apurou esse trabalho em um novo manuscrito, sob o título de História do descobrimento da cochonilha no Brasil..., com o propósito de “publicá-lo com toda a perfeição”. Embora Henriques Ferreira tenha dedicado “seis anos de contínuas e trabalhosas averiguações” à elaboração de seu estudo, Henriques de Paiva acreditava ser necessário realizar algumas reparações para publicar a Dissertação sobre a cochonilha... Longe de desqualificar o conhecimento científico do irmão acerca da cochonilha, Henriques de Paiva buscava precisar nesse estudo algumas informações ausentes no original, devido, sobretudo, à novidade da matéria, à “pouca exatidão com que os antigos e modernos escritores a trataram, e por [Henriques Ferreira] escrever em um país remoto, onde falta[va]m às vezes os livros de uma erudição mais curiosa” (Ferreira, s.d., fl.3).
A despeito dos empecilhos que dificultavam o incremento dos estudos ditos científicos no Brasil em finais do século XVIII – como a falta de materiais especializados mencionada por Paiva, além, é claro, da inexistência de cursos superiores e de imprensa local –, é importante enfatizar o despertar de uma preocupação luso-brasileira no fomento desses saberes. Exemplo disso foi a empenhada atuação do vice-rei marquês de Lavradio na fundação, em seu palácio, da pioneira Academia Fluviense, Médica, Cirúrgica, Botânica e Farmacêutica, ou Academia de Medicina e História Natural do Rio de Janeiro, ou simplesmente, como ficou conhecida na historiografia, Academia Científica do Rio de Janeiro. Esse “amante das Ciências Naturais”, juntamente com médicos, químicos, naturalistas, entre outros homens de ciências formados no Velho Mundo, dedicou-se, em associação, à investigação dos reinos animal, vegetal e mineral no Rio de Janeiro e à elaboração de dissertações e memórias acerca da flora e fauna cariocas (Silva, 2013, p.25-33).
Tais aspirações científicas em terras brasileiras aconteciam em simultâneo com a famigerada reforma da Universidade de Coimbra (1772) nos tempos de dom José I (1714-1777) e de seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o marquês de Pombal. É sabido, a propósito, que o interesse pelas terras brasílicas aparece nos escritos luso-brasileiros desde o século anterior, intensificado na segunda metade do século XVIII, entre outras motivações, pela demarcação de limites entre as monarquias ibéricas deste lado do Atlântico, pela busca de um equilíbrio na balança comercial portuguesa e pelo financiamento régio de memórias acadêmicas e viagens científicas que estreitaram os laços entre Portugal e o Ultramar e buscaram promover estudos no campo das ciências e sobre a agricultura na América portuguesa (Pataca, 2011; Raminelli, 2008; Kury, 2004; Domingues, 2001; Serrão, 1988, p.23-50; Silva, 2013, p.37).
É importante recordar que a situação econômica de Portugal em finais do Setecentos e no alvorecer do Oitocentos não era das melhores. A produção mineradora nos sertões do Brasil havia decaído, os rendimentos do quinto eram instáveis e a concorrência estrangeira no mercado açucareiro aumentava, trazendo à tona a necessidade de incrementação da economia e do comércio. Nesse mesmo momento, nota-se o crescente intento dos monarcas e de seus representantes no além-mar – especialmente os secretários de estado e os vice-reis – de alocar o Império português ao patamar material e intelectual das grandes potências europeias, como França, Inglaterra e mesmo a Espanha. A vizinha ibérica, cabe lembrar também, investiu, desde o século XVI, no conhecimento, na descrição e no controle das riquezas naturais de suas possessões americanas, patrocinando diversas crônicas e páginas de história natural da América produzidas por cronistas, missionários, viajantes, médicos e naturalistas, que buscaram fornecer um panorama detalhado das plantas e dos animais considerados úteis à medicina, à agricultura e ao comércio (Ventura, 2016; Fonseca, 1999). Destarte, a promoção de novas culturas, tais como o anil, o linho e a cochonilha – já explorada pelos castelhanos na América espanhola –, e o desenvolvimento de estudos científicos que visavam à melhor utilização dos recursos naturais da América portuguesa foram medidas consideradas fundamentais na tentativa de reestabelecer a economia, fomentar o comércio e adequar os saberes luso-brasileiros àqueles considerados em voga na Europa (Dias, 2005; Kury, 2004; Wehling, 1977).
Imbuídos de uma noção pragmática e utilitarista da ciência e comprometidos com as demandas de uma política de estado ilustrada que os estimulava com prêmios, cargos e benesses, os letrados luso-brasileiros – tais como os administradores que exerciam cargos políticos nos trópicos, os naturalistas e eclesiásticos formados na Coimbra reformada ou nas bibliotecas dos seminários existentes na colônia, e os integrantes das academias de caráter científico atuantes nos dois lados do Atlântico – escreveram dezenas de opúsculos, memórias acadêmicas, pareceres, cartas e relatórios destinadas a elaborar um diagnóstico do estado da monarquia com vistas ao seu progresso econômico, social, cultural e moral (Rodrigues, 2017, p.169; Domingues, 2001, p.829). Os propósitos de desenvolver um saber que instruísse o povo e promovesse o Estado e sua economia foram, portanto, o que homens como José Henriques Ferreira e Manuel Joaquim Henriques de Paiva buscaram implementar nos seus estudos sobre a cochonilha.
Os irmãos Henriques de Paiva e Henriques Ferreira, formados na Universidade de Coimbra, provinham de uma tradicional família de médicos, natural da antiga vila portuguesa de Castelo Branco.1 Entre os ilustres representantes dessa família estavam o pai, cirurgião, boticário e cristão-novo Antônio Ribeiro Paiva (1721-?), os irmãos médicos Francisco Antônio Henriques de Paiva (1757-1831) e Filipe Joaquim Henriques de Paiva (?-?), além do conhecido nome das ciências naturais, seu tio, Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782). José Henriques Ferreira foi o primeiro a aportar em solo americano, em 1763, em companhia do então governador da Bahia, o segundo marquês de Lavradio, Luís de Almeida Portugal Soares de Mascarenhas, para atuar como médico do presídio e comissário do físico-mor do reino. Em 1769, acompanhando a ascensão do marquês de Lavradio, agora como vice-rei do Brasil (1769-1779), Ferreira passou a ocupar, no Rio de Janeiro, o cargo de primeiro médico do Hospital Real Militar e Ultramar, e trouxe para o Brasil o pai, Antônio Ribeiro Paiva, e o irmão Manuel Joaquim Henriques de Paiva, de apenas 17 anos de idade (Dias, 1959, p.2-3).
A primeira estada do jovem irmão em terras do Brasil foi curta, retornando para Portugal, em 1772, pouco tempo depois da fundação da Academia Científica, para ingressar na Universidade de Coimbra, onde se formou em medicina, em 1781. Henriques de Paiva, além de atuar como médico, químico e ocupar diversos cargos e funções em Portugal e no Brasil,2 escreveu, editou e traduziu uma vasta obra sobre medicina, química, farmacopeia, botânica e história natural, e foi o principal organizador e divulgador da obra do irmão (Pita, 1996, p.177), esforçando-se para tornar públicos estudos como Discurso crítico em que se mostra o dano que tem feito aos doentes, e aos progressos da medicina em todos os tempos, a introdução, e uso de remédios de segredo, e composições ocultas, não só pelos charlatões, e vagamundos, mas também pelos médicos, que os têm imitado, publicado com José Henriques Ferreira, em 1785, e a Dissertação sobre a cochonilha... (Ferreira, 1772), trabalho que alimentou o manuscrito História da cochonilha no Brasil... (Ferreira, s.d.), em que trata do modo de cultivar, propagar e colher um inseto que produzia uma substância “avermelhada”, muito rentável no mercado têxtil europeu pelas suas propriedades corantes, que passou a despertar o interesse comercial português, especialmente na segunda metade do Setecentos.
Assim, os estudos sobre a cochonilha no Brasil foram sistematizados com as pesquisas de Henriques Ferreira, no auge da chamada política fomentista3 portuguesa, e resultaram na mencionada Dissertação sobre a cochonilha... (Ferreira, 1772.) Até então, a produção e o comércio do corante extraído da cochonilha utilizado em Portugal e em suas possessões eram realizados pelos espanhóis no México,4 como bem lembra Henriques Ferreira no estudo aqui transcrito, a saber: “os castelhanos, que não têm os olhos mais perspicazes que nós, souberam fazer dos produtos da História Natural da sua América um negócio de muito rendimento para eles e de muita utilidade para a Europa” (Ferreira, s.d., fl.33). Daí a importância conferida pelos irmãos e pelo próprio vice-rei do Brasil às pesquisas, ao cultivo e à utilidade da cochonilha na América portuguesa (Relatório..., 1812, p.473-474), pois, se a cultura fosse bem-sucedida, os portugueses não precisariam adquirir o corante de estrangeiros, estimulando a produção local, o seu comércio e, por conseguinte, o aumento da riqueza do Estado português.
Além dos benefícios econômicos que tal estudo poderia trazer para Portugal e sua principal colônia – vantagens que conferem à História do descobrimento da cochonilha no Brasil... um lugar importante nas produções científicas a serviço do Reino –, outro mérito da obra esteve nas notas de rodapé, grande parte delas produzida por Henriques de Paiva na edição do manuscrito aqui transcrita, em que é possível encontrar um verdadeiro histórico dos estudos sobre a cochonilha, e mesmo de história natural, até aquele momento. O esforço do irmão mais novo para dar a conhecer esse produto era tamanho, que, em suas exaustivas notas, é possível encontrar desde afirmações como as de Pierre Pomet (1658-1699), farmacêutico francês o qual, na sua História geral das drogas (de 1694), dizia ser a cochonilha uma semente, ou as do naturalista holandês Anton van Leeuwenhoek (1632-1723), que, num primeiro momento, também definiu a cochonilha, depois de observá-la no seu famoso microscópio, como um fruto; passando por Charles Plumier (1646-1704), monge botânico francês que, na Descrição das plantas da América (de 1693), declarou ser a cochonilha um vivente; até as definições mais claras de cronistas espanhóis como Francisco Hernández de Toledo (1517-1587), padre José de Acosta (1539-1600) e Antônio de Herrera (1559-1625) e de outros homens de ciências como Nicolaas Hartsoeker (1656-1725), Philipe de La Hire (1640-1718) e Étienne Louis Geoffroy (1725-1810). Sem esquecer, é claro, a classificação de Carl von Lineu (1707-1778) no seu célebre Systema Naturae, de que Paiva chega a questionar algumas definições do conhecido naturalista sueco referentes à classe e ao corpo do inseto.
As tentativas de publicação dos estudos sobre a cochonilha, ou partes deles, portanto, não foram poucas. Em 1774, o próprio Henriques Ferreira exprimia o desejo de imprimir sua Dissertação sobre a cochonilha..., com o intuito de difundir com mais eficácia as propriedades da cochonilha produzida no Brasil e as instruções para o seu desenvolvimento no reino e na colônia.5 No entanto, foi Henriques de Paiva quem buscou levar a cabo tal empreitada. Embora não seja possível afirmar a data precisa da elaboração da História do descobrimento da cochonilha no Brasil..., é provável que Henriques de Paiva tenha realizado a organização e a revisão da obra do irmão entre 1774 e 1801, período em que exerceu os cargos de demonstrador real da química (1773-1777) e de professor da cadeira de farmácia na Universidade de Coimbra (1801), atividades descritas na folha de rosto daquele que acreditamos ser o manuscrito original da obra, localizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) (Ferreira, s.d.). Há, aliás, outro manuscrito da História do descobrimento da cochonilha no Brasil... sob a guarda da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), que, muito provavelmente, é uma cópia revisada para ser impressa na coleção de memórias dessa instituição (Ferreira, 1780-1811). Apesar de essa versão não conter datação, sabemos que está anexada ao conjunto de memórias “que não tiveram lugar nas coleções da Academia” elaboradas entre 1780 e 1811. Ademais, encontramos a mesma referência presente no manuscrito do ANTT aos cargos exercidos por Henriques de Paiva, o que nos leva a crer que a cópia foi redigida pouco tempo depois do manuscrito original.
Ao compararmos os dois manuscritos mencionados da História do descobrimento da cochonilha no Brasil... e o da Dissertação sobre a cochonilha..., de 1772, notamos que a versão do ANTT é a mais completa, contendo não só as notas de rodapé elaboradas por José Henriques Ferreira, como também aquelas formuladas por Manuel Henriques de Paiva. Além disso, o manuscrito do ANTT reproduz a mesma dedicatória ao marquês de Angeja (1716-1788), presente na Dissertação sobre a cochonilha..., solicitando a proteção necessária para a impressão. Tal dedicatória, vale destacar, talvez tenha sido suprimida no manuscrito da ACL pelo simples fato de que, àquela altura, este seria impresso nas Memórias organizadas pelos membros da Academia e, portanto, já não demandava a busca de um patrono. Ainda sobre nossa proposição de que a versão da História do descobrimento da cochonilha no Brasil... localizada na ACL seja uma cópia, é importante mencionar que, na escrita, encontramos palavras e frases invertidas e algumas passagens suprimidas ou complementadas, demonstrando, assim, tratar-se de uma transcrição do documento do ANTT.
Nos séculos seguintes ao manuscrito, pois, foram localizados alguns poucos fragmentos publicados da História do descobrimento da cochonilha no Brasil.... O mais citado entre os estudiosos, e frequentemente confundido com uma transcrição desse documento, é o Sumário da História do descobrimento da cochonilha no Brasil, publicado por Henriques de Paiva, em 1814, no jornal O Patriota (Paiva, 1814, p.3-30). Esse Sumário..., como o próprio título sugere, tinha como propósito sintetizar os principais aspectos da história da cochonilha no Brasil. Uma centúria depois, foi publicada uma obra intitulada Coleção de opúsculos sobre a cochonilha. Esse documento da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) – sem data precisa, local e editor – possui apenas alguns trechos da Dissertação sobre a cochonilha... (Ferreira, 19--) de Henriques Ferreira; o restante provavelmente se perdeu. Assim, malgrado os esforços empreendidos por Henriques de Paiva e pelo próprio Henriques Ferreira, o trabalho na íntegra sobre a cochonilha, ou melhor, a História do descobrimento da cochonilha no Brasil... permanecia ainda em manuscrito.
O documento que o leitor encontrará a seguir é, portanto, a edição inédita, modernizada e completa da História do descobrimento da cochonilha no Brasil..., elaborada a partir do cotejamento de dois manuscritos organizados por Manuel Joaquim Henriques de Paiva entre o final do século XVIII e o alvorecer do XIX.6 Tal edição baseou-se, pois, na transcrição do manuscrito matriz existente no ANTT e na inclusão de algumas passagens modificadas ou acrescentadas pelo editor da obra, e existentes apenas no documento da ACL.