versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.26 supl.1 Rio de Janeiro dez. 2019 Epub 27-Jan-2020
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702019000500008
The article analyzes the creation of the National Commission of Social Welfare (Comissão Nacional de Bem-Estar Social) during the second Vargas administration (1951-1954). Presidential communiqués and the private archive of Alzira do Amaral Peixoto Vargas are used to characterize the context of the founding of the commission and its liaison with international entities involved in the planning of social welfare policies.
Key words: social welfare; second Vargas administration; Ministry of Labor; state planning
A Comissão de Bem-Estar Social, um lado muito importante do governo Getúlio que não tem sido também muito focalizado, estava começando a racionalizar a política no país. Foi talvez o maior esforço de racionalização da política social que se fez no país. Que infelizmente foi interrompido (Almeida, 1988, p.81-82).
A história da Comissão de Bem-estar Social (CNBS), formada no governo de Getúlio Vargas (1951-1954), constitui um ângulo morto da historiografia do período. Ainda que existam documentos que associem a CNBS aos projetos de assistência e à expansão dos direitos sociais após a Segunda Guerra Mundial, a comissão não foi abordada na escrita da história.
No depoimento de Rômulo Almeida ao Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea do Brasil (CPDOC), a referência à CNBS era apresentada como uma iniciativa voltada para a classe trabalhadora, a fim de “racionalizar a política social” – no sentido de reorganizar iniciativas dispersas em diversos órgãos públicos e privados e expandir seu campo de atuação em uma política de bem-estar social. Era um dos projetos de planejamento estatal com foco no “desenvolvimento” nacional, no âmbito do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Na entrevista ao CPDOC, Rômulo Almeida inscrevia suas ações na história e memória da política brasileira, reivindicando para si o envolvimento em vários projetos de relevância para o “desenvolvimento” do país, na superação do subdesenvolvimento e transformação de uma sociedade agrária em urbana e industrial. Ele acumulou as seguintes funções entre 1951 e 1954: oficial do Gabinete Civil da Presidência, organizador da Assessoria Econômica da Presidência, membro do Conselho Consultivo da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), economista da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Subcomissão de Habitação e Favelas da CNBS.
Vale ressaltar que a referência à CNBS e a sua relação com o planejamento estatal para o desenvolvimento econômico e social do Brasil não se restringe ao testemunho de Rômulo Almeida. Nos arquivos pessoais de Alzira Vargas do Amaral Peixoto e em mensagens do presidente da República enviadas à Câmara Federal, encontram-se estratégias para dar visibilidade e informar à sociedade a ação do governo de Vargas e, novamente, encontramos a centralidade da Comissão Nacional de Bem-estar Social no Ministério do Trabalho.
O silêncio sobre a CNBS na historiografia sugere que as interpretações da história social e política da década de 1950 priorizam a análise das lutas partidárias e sindicais, com menor ênfase na compreensão dos processos institucionais de construção das políticas de assistência social. A comissão era constituída por intelectuais, de formações acadêmicas e inserções políticas e profissionais diversas, que tinham por objetivo realizar um diagnóstico a respeito das políticas em voga nas áreas de previdência social, saúde, alimentação, assistência rural, habitação e favelas. Investigava-se a questão social na modernização econômica brasileira, propondo políticas públicas no campo da assistência social. A CNBS inscreve-se na longa trajetória das políticas de assistência social no Brasil.
Ao contrário de uma imagem essencializada da pobreza e das instituições e comportamentos que visam solucionar a questão social, a historiografia tem abordado a forma como as práticas e representações ligadas aos grupos identificados como “pobres” diferem no tempo e no espaço, ganhando significados diversos no equacionamento das políticas voltadas para a questão social e no processo de formação do capitalismo (Himmelfarb, 1988; Pinto, 1999; Souza, 2004, 2012; Castel, 2010; Viscardi, 2011). Nesse sentido, a CNBS partilhou de um momento de avaliação da pobreza na América Latina, conectada aos debates internacionais de construção do Estado de bem-estar social, e estabeleceu um diagnóstico da “marginalidade social” em um país subdesenvolvido – esse foi o discurso que justificou a expansão dos serviços públicos de assistência social no pós-guerra.
A CNBS é um dos capítulos para o debate da expansão dos direitos sociais, em diálogo com o paradigma do Estado de bem-estar social (Welfare State). O período do pós-guerra favoreceu a expansão da atuação do poder público na “solução” da questão social, em detrimento ou sobreposição aos serviços da filantropia privada e católica que prevaleceram na Primeira República (Souza, 2004, 2012; Viscardi, 2011). Segundo Castel (2010), a assistência social no Welfare State associou-se à reconfiguração da condição operária e salarial: o trabalho deixou de ser a “retribuição pontual por uma tarefa” e agora “assegura direitos, dá acesso a subvenções extratrabalho (doenças, acidentes, aposentadoria) e permite uma participação ampliada na vida social: consumo, habitação, instrução ... e lazer” (p.416). Ou seja, a reformulação da assistência social vinculou-se ao debate sobre a cidadania do trabalhador nacional.
Além de se associar às práticas do planejamento da assistência social na expansão da ação do poder público, a CNBS se insere na dinâmica do segundo governo Vargas, que buscou fortalecer seu vínculo político com a classe trabalhadora. A história social e política revisitou os governos de Getúlio Vargas como períodos especiais para o debate a respeito da formação da classe trabalhadora, da reivindicação de direitos sociais e da discussão do “populismo” ou “trabalhismo” (Ferreira, 2001, 2005; D’Araújo, 1996; Gomes e D’Araújo, 1989; Gomes, 2001; Reis Filho, 2001; French, 2002; Duarte, Fontes, 2004; Negro, 2004; Leal, 2011). Em um período de “crise” e renovação das práticas políticas no início da década de 1950, o Ministério do Trabalho, lócus de atuação da CNBS, era o cerne de contendas políticas, sindicais e partidárias.
A partir do acervo dos arquivos privados sob guarda do CPDOC, de pesquisa no jornal Última Hora, da legislação do período e das mensagens presidenciais à Câmara Federal, formou-se um corpus documental para tratar da estrutura administrativa da CNBS e do processo de criação da comissão no segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). O foco do artigo é a investigação das configurações sociais e políticas que atravessaram a criação e o funcionamento da CNBS.
A proposta de criação da Comissão Nacional de Bem-estar Social surgiu no início do segundo governo Vargas. No projeto original, lançado por Danton Coelho (ministro do Trabalho do segundo governo Vargas e um dos organizadores da campanha eleitoral vitoriosa), planejava-se a criação de uma Subsecretaria de Bem-estar Social no Ministério do Trabalho. Em abril de 1951, Danton Coelho propôs a criação de uma subsecretaria de Estado “abrangendo todos os serviços de assistência social ao trabalhador brasileiro e às suas famílias, que se incumbiria de planificar e pôr em execução … as atividades” da assistência social. Na visão do político, a assistência social se apresentava em “esforços parcelados de serviços e órgãos na esfera de competência” do Ministério do Trabalho, dificultando a coordenação das políticas que se ocupavam “dos problemas fundamentais ligados à conquista” do bem-estar social (Coelho, 4 abr. 1951). No entanto, o projeto da subsecretaria de governo não logrou sucesso: em vez de um órgão com status de “subsecretaria”, foi criada uma “comissão”.
Diferentemente de uma “subsecretaria”, órgão de caráter executivo para várias instituições públicas e privadas que atuavam no campo da assistência social, constituiu-se uma comissão para o “planejamento estatal”, mantendo o objetivo de melhorar as políticas públicas de assistência. Isso reduziu bastante a capacidade de “racionalização” das políticas de assistência social, visto que as decisões da CNBS aparentavam ser indicações políticas sem efeitos práticos imediatos. Contudo, isso não significou que a CNBS foi inócua, visto que os efeitos práticos do planejamento estatal podem ser notados e analisados a partir do acompanhamento das trajetórias de políticas sociais específicas.1
O abandono da intenção de instituir uma “subsecretaria” mostrava os conflitos entre os grupos que se engajavam na oferta e no controle dos serviços sociais para os trabalhadores. Os Institutos de Aposentadoria e Previdência Social (IAPs), os representantes do trabalhismo vinculados ao Ministério do Trabalho, bem como o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço Social do Comércio (Sesc), criados com objetivos de prestar assistência ao trabalhador, eram instituições marcadas pela forte representação corporativa de segmentos sociais distintos. Os representantes dos trabalhadores e os dos empresários tinham anseios diferentes. Enquanto para os sindicatos e representantes do trabalhismo a assistência estava envolta na linguagem da reivindicação da expansão dos direitos do trabalhador nacional (Gomes, 2005), os empresários tinham o foco na assistência, tendo em vista os ganhos de produtividade da força de trabalho e o reforço do paternalismo empresarial (Weinstein, 2000).
Para ampliar o escopo desses conflitos, havia ainda a presença da assistência social católica. A Igreja e os leigos influenciados pela doutrina social católica lutavam pela ampliação do financiamento público para as instituições privadas de assistência sob sua alçada e pela ampliação do escopo de sua atuação nos espaços urbanos e rurais. Na década de 1950, a Igreja católica no Brasil se engajava no debate da questão social e das estratégias de desenvolvimento econômico do Brasil e da América Latina (Mainwaring, 2004). Os projetos de assistência e cidadania do trabalhador nacional envolviam disputas entre grupos com visões de mundo e interesse heterogêneos, com conflitos de difícil equacionamento na dinâmica da “crise” experimentada pelo governo de Getúlio Vargas (Skidmore, 1975; D’Araújo, 1982; Ferreira, 2005).
A decisão de formar uma “comissão”, em vez de uma subsecretaria, era uma tentativa de produzir consenso. Analisando a crise do governo de Vargas, Soares D’Araújo observou a fragilidade das alianças políticas e as várias tentativas de solucionar esse problema para garantir a governabilidade. Em 1950, a eleição de Vargas tinha como componente a articulação entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Progressista (PSP), o que não garantia o apoio da maioria na Câmara Federal e criava uma constante instabilidade para o governo. Vargas tentou formar uma aliança ampla entre os grupos partidários divergentes e organizar comissões para tratar de projetos de governo específicos, como um meio para formar consenso em torno de algumas ações e evitar a imobilidade do governo (D’Araújo, 1982). A CNBS foi uma dessas comissões criadas para produzir consonância ao redor de projetos encampados pelo governo.
Os propósitos da CNBS retomavam o intento propagandístico da campanha eleitoral de Vargas, que foi carregada de críticas ao governo de Dutra (1946-1950) pela “desnacionalização” da economia e o abandono da questão social como foco da política de governo. No início do governo Dutra, a política econômica de câmbio flutuante e a abertura à movimentação de capital – na esperança de retomada da competitividade do mercado interno e de investimentos estrangeiros – favoreceram a importação de produtos, o aumento da inflação e a permanência da tendência de alta no custo de vida. As reservas cambiais acumuladas pelo governo federal durante a Segunda Guerra Mundial foram usadas, reduzindo a capacidade de ação e intervenção do Estado. Junto a isso, o governo Dutra reprimiu as manifestações operário-sindicais e restringiu a atuação dos sindicatos e do Partido Comunista do Brasil (PCB). Para se eleger, Vargas criticou essas iniciativas do presidente Dutra e construiu políticas marcadas pela diferenciação em relação ao governo anterior (Skidmore, 1975, p.92-100; Pandolfi, 2002, p.99-100; D’Araújo, 1982, p.81-102).
Ligada ao Ministério do Trabalho, a CNBS buscou unificar o planejamento da previdência social, da política habitacional e do serviço social, além de discutir a extensão da proteção social ao trabalhador nacional. Representou a crença em um Estado planificador que tinha como eixo a combinação entre o progresso econômico e a expansão de direitos em diferentes âmbitos da esfera social. Essa articulação era um objetivo almejado tanto nas promessas eleitorais do governo de Vargas quanto nos projetos de planejamento econômico e social delineados no cenário internacional. Na configuração da expansão do Estado de bem-estar social, diferentes autores identificam no período de pós-guerra a ascensão de governos e políticas que combinavam crescimento, distribuição de renda, instituição de direitos sociais e formação de uma sociedade do consumo (Hobsbawn, 1995; Judt, 2008; Frieden, 2008). São várias as “comissões” criadas no período com o objetivo de planejar estratégias de governo e desenvolvimento econômico e social.
Atrelada a uma comissão permanente para dirigir e coordenar a CNBS, o governo fundou as subcomissões para equacionar o planejamento da assistência social (ver Quadro 1). Foram criadas as subcomissões de Seguro Social, Serviço Social, Habitação e Favela, Saúde, Indústrias Domésticas e Artesanato, Colonização e Bem-estar Rural, Recreação e Cultura e Assistência Técnica (Vargas, 1952, p.327). Em todas essas subcomissões, destacavam-se os órgãos públicos e intelectuais do Estado ligados ao serviço social. Na comissão permanente, destacava-se a presença do Serviço Social da Indústria (Sesi), do Serviço Social do Comércio (Sesc), da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e do Ministério da Educação e Saúde – no período, a pasta de assistência social e educação eram conjuntas (Brasil, 29 set. 1951).
Quadro 1 : Estrutura da Comissão Nacional de Bem-estar Social (CNBS)2
Estrutura | Organização administrativa |
---|---|
Comissão Permanente | A Comissão Permanente era formada pelo presidente, o ministro do Trabalho do momento, o vice-presidente, posição ocupada por Josué de Castro e Alzira Vargas – os dois principais porta-vozes da CNBS –, e pelo Conselho Consultivo, com representação permanente da Legião Brasileira de Assistência (LBA), do Serviço Social do Comércio (Sesc), do Serviço Social da Indústria (Sesi), do Ministério da Educação e Saúde, do Banco do Brasil e um representante da Prefeitura do Distrito Federal que atuava na Fundação Leão XIII. |
Inquérito Nacional de Padrão de Vida | Todas as subcomissões eram formadas por um coordenador ou diretor-geral, normalmente um quadro “técnico” – intelectual especialista no assunto – e um conselho consultivo que congregava representantes de órgãos ligados à assistência social.3 |
Subcomissão de Artesanato e Indústria Doméstica | |
Subcomissão de Habitação e Favelas | |
Subcomissão de Seguro e Previdência Social | |
Subcomissão de Saúde | |
Subcomissão de Recreação e Cultura | |
Subcomissão de Colonização e Bem-estar Rural | |
Subcomissão de Serviço Social |
Nesse sentido, a CNBS vincula-se ao processo de formação dos técnicos especializados em assistência social no Brasil e na construção de um discurso competente para tratar do tema. Nas décadas de 1940 e 1950, tem-se um processo de constituição de escolas de “assistentes sociais ou agentes sociais” e o surgimento de uma legislação que reconhecia a profissão e o curso de ensino superior na área. Essa especialização profissional foi acompanhada da expansão de uma rede pública e privada de assistência tendo como objetivo “diminuir ou suprimir as deficiências ou sofrimentos causados pela pobreza ou pela miséria ou oriundas de qualquer outra forma do desajustamento social e de reconduzir tanto o indivíduo como a família, na medida do possível, a um nível satisfatório de existência no meio em que habitam” (Brasil, 1 jul. 1938). O reconhecimento da profissão de “assistente social” em 1956 ocorre em meio a um processo de maior intervenção do Estado na economia e à proliferação de concepções políticas e sociais que tinham em vista o tratamento da pobreza e da cidadania da classe trabalhadora (Carvalho, Iamamoto, 2013; Vieira, 2013).
Tanto nas subcomissões quanto na comissão permanente havia uma clara sub-representação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) e uma valorização do serviço social coordenado pelo empresariado. Como destacou Barbara Weinstein (2000), o debate sobre a assistência social no Ministério do Trabalho teve forte presença das elites industriais, com o intuito de realizar a “(re)formação” da classe trabalhadora no Brasil. O objetivo era estabelecer o vínculo entre a assistência social, a educação do trabalhador e o aumento de produtividade na racionalização fordista do trabalho. A única subcomissão que teve presença expressiva dos IAPs e setores sindicais foi a do “Inquérito de Padrão de Vida”, que prometia equacionar a questão de um valor do salário mínimo em bases nacionais e era foco de conflito nas várias greves do início da década de 1950 (Ferreira, 2005; Leal, 2011).
Além dessa maior representação da assistência social ligada aos empresários, devemos lembrar a situação especial de Alzira Vargas: ela era filha de Getúlio Vargas, articuladora do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e representante da LBA, sendo nomeada para participar como vice-presidente da Comissão Nacional de Bem-estar Social (Nomeação..., 23 out. 1951). Ela cumpriu um papel bastante expressivo na institucionalização do serviço social no Brasil e ganharia destaque como uma das principais porta-vozes da CNBS.
A presença da Igreja na CNBS ocorreu por intermédio dos intelectuais ligados às escolas de serviço social e à Fundação Leão XIII, instituição de assistência social criada para solucionar o problema das favelas e da pobreza urbana na capital da República. A arquidiocese do Rio de Janeiro, capital do Brasil até 1960, tinha influência destacada nas políticas estabelecidas no Ministério do Trabalho, no Ministério da Educação e Assistência e na Prefeitura do Distrito Federal. Essa influência também se destacava no pioneirismo das universidades católicas na criação dos primeiros cursos e manuais da profissão de serviço social na década de 1940 (Carvalho, Iamamoto, 2013).
Além dos profissionais do serviço social, a CNBS congregava em suas subcomissões vários intelectuais de “conhecimentos destacados”, ligados às ciências sociais – economistas, geógrafos e sociólogos. Existia a crença de que as ciências sociais, que se institucionalizavam em cursos de graduação criados a partir da reforma das universidades nas décadas de 1930 e 1940, eram artífices de uma ordem social e política mais justa. Esses intelectuais eram encarregados de estudar a realidade brasileira e propor “medidas capazes de acelerar o progresso econômico, através da elevação dos padrões de vida das classes trabalhadoras, assegurando-lhes um mínimo de bem-estar social, sem o qual não há possibilidade de realizar-se, em sua plenitude, a expansão econômica do país” (Coelho, 4 abr. 1951). O planejamento, a intervenção na economia e na sociedade, bem como a elucidação de “deficiências técnicas” da estrutura social brasileira, eram intentos intercambiáveis na justificativa de atuação dos intelectuais das ciências sociais.
Após a Segunda Guerra Mundial, foram várias iniciativas em que “ciência” e “desenvolvimento” foram colocados em destaque na articulação da modernização da sociedade. A Assessoria Econômica, diretamente ligada à Presidência, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e a Comissão de Desenvolvimento Industrial, alocadas no Ministério da Fazenda, o Grupo Itatiaia, com vínculos com o Ministério da Agricultura e, posteriormente, a fundação do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (Ibesp) são exemplos de iniciativas incentivadas no segundo governo Vargas que flexionavam a “ciência” em uma missão de modernização e “desenvolvimento” da sociedade brasileira (Botelho, 2008a, p.271-276). No perfil desse Estado planificador, que justificava a expansão do horizonte de ação do poder público na economia e na regulação das relações de trabalho, os intelectuais das ciências sociais eram vistos como estratégicos, como capazes de formular políticas e conduzir um processo de mudança social controlada (Oliveira, 1995, p.53).
Podem-se citar os seguintes intelectuais que participaram da CNBS e pactuaram, em alguma medida, com a intenção de promover o bem-estar social declarado pelo governo Vargas: o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos,4 o geógrafo Josué de Castro,5 o economista Rômulo Almeida,6 o economista Heitor Lima Rocha, o sociólogo José Arthur Rios,7 entre outros. Nesse critério de recrutamento de intelectuais que partilhavam do objetivo de promover reformas, percebe-se um predomínio de grupos que fizeram carreira como técnicos na administração federal ou que atuaram em instituições do Rio de Janeiro, então capital da República. Esses intelectuais se viam como portadores de um discurso novo e “moderno” e se identificaram com a formulação de um conhecimento que problematizava a relação entre tradição e modernidade na rápida industrialização e urbanização do Brasil nos anos 1940 e 1950. Além disso, colocavam como centro da discussão o tema da desigualdade social e as disparidades de classe no Brasil, estabelecendo uma distinção em relação à geração dos modernistas dos anos 1920 (Botelho, 2008b; Villas Boas, 2006; Guimarães, 2012).
Os membros da comissão atuaram como mediadores de processos sociais e conflitos políticos, produzindo o imaginário de uma sociedade em transformação. No debate público do período, as noções de “imigrante”, “trabalhador”, “massa”, “rurícola”, “campo”, “salário”, “custo de vida”, “subúrbio”, “bairro operário” e “favelas” foram politizadas, para se referir aos “problemas sociais” do Brasil. A linguagem e os debates estabelecidos por agentes das ciências sociais e do serviço social no âmbito das subcomissões da CNBS mostram que o principal problema analisado era a questão da pobreza na passagem de uma sociedade rural para urbana.
Na segunda metade do século XX, o Brasil passou por um processo de transformação social, com o rápido aumento da população urbana e a estagnação e posterior redução da população rural (ver Tabela 1). Ligados à observação e análise do processo de urbanização e modernização social, os intelectuais da CNBS construíram um discurso da “marginalidade social”: estabeleceram uma retórica sobre as condições sociais, econômicas e morais que engendravam a marginalização social no Brasil e como transformá-la. Nessa retórica, havia um projeto de reformar/civilizar o modo de vida das classes populares consideradas marginais à sociedade moderna e industrializada a partir de um viés autoritário, baseado na visão esclarecida dos agentes do Estado (Oliveira, 2014, p.145-180).
Tabela 1 : População urbana e rural brasileira (milhões)
1940 | 1950 | 1960 | 1970 | 1980 | 1990 | |
---|---|---|---|---|---|---|
Urbana | 12,9 | 18,8 | 31,3 | 52,1 | 80,4 | 111 |
Rural | 28,3 | 33,2 | 38,8 | 41,1 | 38,6 | 35,8 |
Fonte: censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE..., s.d.).
Esse discurso também possibilitou a construção de maior sensibilidade em relação à questão social e aos debates políticos relacionados à classe trabalhadora no governo de Vargas. A criação da CNBS tinha em vista a rearticulação dos órgãos ligados à segurança social e econômica do trabalhador. Na visão do Ministério do Trabalho, nos países de economia altamente desenvolvida “o bem-estar social decorre como um corolário natural da produtividade coletiva, e a elevação dos níveis de vida se processa, automaticamente, pela expansão da economia”; no Brasil, ao contrário, “dada a incipiente estrutura econômica nacional e as deficiências técnicas existentes, não pode o Governo aguardar, impassível, que se processe a lenta elevação dos níveis de vida, em decorrência natural do desenvolvimento econômico nacional” (Coelho, 4 abr. 1951). Os relatórios produzidos pela CBNS reforçavam essa retórica que conjugava o diagnóstico do “desequilíbrio” do problema social em uma sociedade subdesenvolvida, mas também acreditava que a questão social seria solucionada quando o país atingisse o estágio de evolução da economia dos países desenvolvidos.
Um dos relatórios de maior destaque no período foi o inquérito intitulado Pesquisa de Padrões de Vida (1951). A pesquisa foi coordenada por Alberto Guerreiro Ramos, contando com a colaboração de Josué de Castro e dos principais IAPs. Objetivou compreender o padrão de consumo na alimentação, habitação, vestuário, lazer e cultura em cem municípios, oferecendo um registro do bem-estar social da população brasileira para além dos grandes centros urbanos, comparando o “padrão” de bem-estar social nas “grandes cidades” e no “interior”. O trabalho era inédito, porque tentava agrupar várias pesquisas que ocorriam em caráter limitado nas capitais do país, estendendo-as para um contexto nacional, uniformizando uma maneira de analisar a questão dos salários e identificando o padrão de vida de cidades industriais do interior como superior ao dos grandes centros. Ou seja, propugnava que, ao contrário de aumentar o salário – demanda de greves e sindicatos no período –, devia-se conter a migração com medidas de serviço social ao homem do “interior”.8
Outro relatório de destaque foi o articulado pela subcomissão de Habitação e Favela, organizado por Rômulo de Almeida. Abordava as políticas habitacionais e o serviço social em diferentes municípios para resolver o problema da informalidade das favelas, mocambos, vilas, entre outras formas urbanas associadas à pobreza. Ligava-se ao intento de potencializar a atuação da Fundação Casa Popular, criada pelo governo federal em 1946 para executar uma política habitacional em âmbito nacional. Nos relatórios, elaborava-se um discurso que justificava a diferenciação entre os “marginais” e “trabalhadores” nos espaços urbanos identificados como “favelas” e nas políticas públicas voltadas para essas localidades. A partir dessa distinção, as políticas habitacionais e de serviço social deveriam priorizar o atendimento ao “trabalhador”, que era elemento produtivo e tinha uma função social na estrutura familiar. Da mesma maneira, tinha-se em vista a necessidade de controlar a migração para evitar um problema social (Oliveira, 2014).
A grande questão que se delineava nos relatórios da CNBS eram os direitos sociais dos trabalhadores rurais que, na representação dos intelectuais do período, migravam para as cidades em busca de melhores condições de vida e acabavam por gerar os “problemas sociais”. A legislação social promulgada a partir da década de 1930 ficou restrita aos trabalhadores urbanos e só foi estendida aos trabalhadores rurais por meio das lutas sociais travadas nas décadas de 1950 e 1960 (Grynszpan, 2002; Carvalho, 2005). Isso transformava o tema dos direitos sociais para o “homem do campo”, ou do “interior”, em um dos temas centrais da análise e debate entre os intelectuais da CNBS. Além disso, as imagens do contraste entre os mundos rural e urbano ganharam diferentes figurações na imaginação dos intelectuais do Brasil e da América Latina na representação do mundo subdesenvolvido e foram compartilhadas nos circuitos internacionais que também influenciaram a CNBS.
A CNBS vinculou-se aos debates de proteção social do trabalhador no cenário de diálogo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo os documentos oficiais, a CNBS tinha como objetivo “tomar conhecimento da política de bem-estar social dos organismos especializados das Nações Unidas, com a finalidade de articular a política nacional com os programas dos mesmos, visando ao máximo de rendimento para o país, das oportunidades de colaboração e assistência por parte desses organismos” (Brasil, 29 set. 1951). Foram estabelecidos projetos de cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), para Educação, Ciências e Cultura (Unicef) e com o Fundo Internacional de Socorro à Infância (Vargas, 1952, p.328).9
A CNBS tentava explorar as possibilidades dessa colaboração com a ONU em questões atinentes ao desenvolvimento econômico e social. Criada em 1945, a ONU tem como principal objetivo a manutenção da paz entre as nações após o término da Segunda Guerra Mundial, e está previsto em seu estatuto o auxílio ao desenvolvimento econômico e social. A reconstrução dos países destruídos pela Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e a desigualdade no sistema internacional reforçaram a posição da ONU no debate sobre as questões sociais. Ela propugnava uma política intervencionista e planificada como meio para estender a paz social entre as classes e nações. Na América Latina, na década de 1950, a planificação da economia e a superação do atraso levaram à criação da Comissão de Planejamento Econômico da América Latina (Cepal). Com a criação da CNBS, o segundo governo Vargas vislumbrava ampliar a colaboração com técnicos internacionais e o planejamento do desenvolvimento nacional.
A colaboração em programas de assistência técnica era uma maneira de o país consolidar uma posição no sistema internacional, rearticulado após a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, o governo buscou um alinhamento pragmático com os EUA, de modo que ampliasse as formas de desenvolvimento econômico, na tentativa de reproduzir a estratégia que garantiu a colaboração norte-americana no início da década de 1940 em setores estratégicos da economia, em troca do alinhamento brasileiro (Quintaneiro, 1988; Hirst, 1990).
Entretanto, a política internacional de alinhamento pragmático aos EUA foi confrontada pelo debate e pelas mobilizações nacionalistas do período. A Guerra da Coreia, o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos e a questão dos minerais atômicos estratégicos e do petróleo trouxeram a tensão para a política internacional de alinhamento e evidenciaram a necessidade de garantia dos interesses nacionais frente aos EUA no início da Guerra Fria. A CNBS também esteve no centro desses embates.
A exaltação nacionalista ficou evidente nas notícias de Josué de Castro e sua ligação com a CNBS. Entre 1951 e 1953, ele foi o principal porta-voz da CNBS e um dos responsáveis pela idealização e construção do “programa de bem-estar social” planejado pelo governo de Getúlio Vargas. No início das atividades da CNBS, em 1951, Josué de Castro venceu Lord Bruce, apoiado pela Inglaterra, EUA e França, para a direção da FAO, tornando-se presidente do conselho executivo da FAO de 1952 a 1956. O resultado foi lembrado e comemorado no governo como uma vitória dos interesses nacionais frente às “grandes potências”. O próprio Josué de Castro evidenciou esse ponto em uma carta em tom bastante pessoal a Alzira Vargas:
Foi um espetáculo inédito e de estarrecer, este do Brasil (país là-bas) ganhar uma luta contra as grandes potências unidas (a Inglaterra, os Estados Unidos e a França). Até hoje as delegações das grandes potências estão atordoadas com a surpresa. Mas palavra que foi bom!
Agora, com a eleição, sou forçado a demorar um pouco mais aqui, para presidir a sessão do Conselho que se reúne logo depois da Conferência. Tenho, no entanto, a impressão de que a demora será bem recompensada com as vantagens que poderemos tirar da FAO para o país, no programa do Bem-Estar Social ora em planejamento (Castro, 1 dez. 1951).
A carta em tom pessoal, direcionada à “amiga Alzira”, explicitava uma notícia que impactou a opinião pública do período. A vitória na disputa pela direção do conselho da FAO foi celebrada na imprensa em várias notícias. No jornal Última Hora, a chamada de destaque trazia a imagem de Josué de Castro, evidenciando que o “nosso representante naquele órgão pelos países latino-americanos” na FAO “disputou um pleito renhido, conseguindo vencer o candidato do grupo anglo-saxônico, apresentado pela Inglaterra com o apoio dos Estados Unidos. Houve embate no primeiro escrutínio, sendo a vitória obtida no segundo, por 34 votos contra 30” (Reintegrar..., 14 jan. 1952). A dramaticidade da vitória de Josué de Castro sobre Lord Bruce era evidenciada pela conquista por margem apertada de votos, após uma primeira votação terminar empatada.
Na sequência, o jornal salientava que, apesar de o escritório da FAO ser sediado em Roma, Josué de Castro não se deslocaria do Brasil; ele realizaria uma ponte entre a FAO, o Ministério da Agricultura e o Ministério do Trabalho, favorecendo o intercâmbio de técnicos (Reintegrar..., 14 jan. 1952). O entrelaçamento entre atividades nacionais e internacionais foi uma tônica da atividade intelectual de Josué de Castro nos anos 1940 e 1950, quando lançou o livro Geografia da fome (1946) – obra de repercussão mundial. Ele se destacou nos debates de criação da FAO em 1946 e, no ano seguinte, como membro do conselho consultivo da agência internacional em 1947, estabelecendo uma rede internacional de contatos nos EUA e na América Latina por meio de conferências e consultorias sobre a questão da nutrição e da fome no cenário internacional (Amorim, 2016, p.167-169). Assim, o acúmulo de cargos na FAO e no governo Vargas estariam unidos na consecução do objetivo de estabelecer um programa de bem-estar social no governo brasileiro.
Como porta-voz da CNBS, Josué de Castro explorava sua função de intelectual da Universidade do Brasil, membro da FAO e participante do governo de Vargas. Em uma entrevista ao jornal A Noite, o médico-geógrafo ressaltava a mensagem de Vargas para a Câmara Federal e a centralidade que, em sua visão, a CNBS assumia no plano de governo. Na condição de “estudioso dos problemas sociais brasileiros, com constante preocupação pela condição de vida do povo e seus reflexos na estrutura e na evolução econômica”, frisou a importância atribuída pelo presidente em sua mensagem quanto aos “problemas brasileiros de acomodação social e de repartição da felicidade humana” e a “abolição da vergonhosa barreira que separa em duas castas os favorecidos da sorte e os desgraçados” (Harmonia..., 20 mar. 1952). Na visão de Castro, havia uma clara mistura entre nacionalismo, bem-estar social e progresso econômico, e a CNBS seria central no estudo “dos problemas nacionais relacionados à melhoria de existência do povo” (1952).
O planejamento do desenvolvimento econômico estava atrelado ao debate internacional acerca de políticas de assistência social para superar o “subdesenvolvimento”. Outro momento-chave para a discussão sobre “padrão de vida” e bem-estar do brasileiro” foi a Conferência dos Estados da América com os membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Realizada em Petrópolis, Rio de Janeiro, em abril de 1952, como preparatória para conferência da OIT, a conferência contou com vários representantes da CNBS. Até então, haviam ocorrido quatro conferências: Chile (1936), Havana (1939), México (1946) e Montevidéu (1949). Ali, mais uma vez, ocorreu o debate a respeito da questão social, por intermédio de instituições que tinham ampla influência dos EUA e de uma ideologia de modernização social para a América Latina.
Alzira Vargas, que também tinha destaque na articulação da CNBS, chefiou a delegação brasileira na Conferência dos Estados da América com os membros da OIT. Ao consultar os trabalhos guardados no arquivo privado de Alzira Vargas, vemos que a preocupação central na conferência preparatória da OIT era o “homem do campo”, figurando como uma classe social excluída dos benefícios da civilização. Os debates nacionais e latino-americanos seriam pautados pela imagem do camponês que era tido como símbolo do atraso nacional e como grupo fragilizado no âmbito da proteção social.
A CNBS foi um órgão criado no Ministério do Trabalho durante o segundo governo Vargas e esteve no centro de discussão dos debates sobre a “racionalização da política social” e do planejamento para o desenvolvimento do bem-estar social no Brasil. Funcionando entre 1951 e 1954, figurava como um local onde os intelectuais que atuavam em universidades e órgãos de governo se reuniam para propor estudos sobre a questão social no processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira. A heterogeneidade das propostas de cidadania para o trabalhador nacional e a crise do governo de Getúlio Vargas colaborou para tensionar as posições da CNBS e reduzir o alcance do projeto inicial de criar uma subsecretaria de bem-estar social para coordenar as várias atividades de assistência social do governo federal.
A comissão mantinha vínculos com instituições e eventos internacionais que debatiam a construção do Estado de bem-estar social no período pós-Segunda Guerra Mundial. Inserida nessa configuração social, a CNBS foi um dos lugares que promoveu esse encontro dos intelectuais com as temáticas da questão social. Os intelectuais da CNBS enfatizaram o bem-estar social dentro das dualidades rural-urbano, centro-periferia, desenvolvimento-subdesenvolvimento, localizando o Brasil na faixa de atraso de uma escala de evolução que o aproximava dos países da América Latina. O “homem do campo” e os direitos sociais eram centrais nos debates da CNBS.
A CNBS surge como o lugar onde os eruditos debatiam os processos de transformação social e produziam imagens híbridas marcadas pelas referências acadêmicas e pelas disputas que cercavam o Ministério do Trabalho. Na formação da assistência social do período, estabelecia-se a condição operária e salarial como base para acesso aos direitos. Os intelectuais do serviço social e das ciências sociais eram centrais na articulação de uma gramática da vida pública que estabelecia uma mediação entre o universo dos protestos sindicais e trabalhistas, os interesses dos empresários e da Igreja católica no planejamento da assistência social, tendo em vista a cidadania do trabalhador nacional.
Ainda que seja um dos loci de discussão da questão social no segundo governo Vargas, a história dessa instituição permaneceu como um ângulo morto do debate historiográfico. O artigo oferece uma primeira análise dessa comissão, possibilitando um olhar distinto sobre os processos de formação das políticas de assistência social no governo de Getúlio Vargas e na elaboração de retóricas a respeito da marginalidade social.