versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.9 Rio de Janeiro 2016 Epub 10-Out-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00059116
El término territorio y sus derivaciones se han hecho habituales en el campo de la Salud Mental desde la reforma psiquiátrica, marco del ideario no hospitalocéntrico y potencialmente emancipatorio. No obstante, constatamos en la investigación empírica precedente que a esa incorporación terminológica no le correspondieron concepciones y prácticas coherentes de reinserción territorial de personas con enfermedades mentales. Para aclarar los diversos usos del término, y sus posibles correlaciones en la práctica, realizamos una localización sistemática de artículos científicos y documentos oficiales, comparándolos entre sí y con el concepto de territorio de la Geografía Crítica. Concluimos que en el campo de la Salud Mental brasileña, a pesar de los muchos, y siempre renovados esfuerzos críticos, ha prevalecido una noción funcional de territorio, que omite relaciones de poder y apropiaciones simbólicas, aumentando la tendencia de la reinserción de personas con enfermedades mentales que desembocan en su sujeción a un territorio determinado, en vez de favorecer transformaciones socio-espaciales para la convivencia en diversidad.
Palabras-clave: Territorialidad; Desinstitucionalización; Salud Mental
Em pesquisa empírica realizada sobre inserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave, constatamos que a relação destas pessoas com o espaço urbano varia de um extremo a outro: desde aqueles que se sentem mais à vontade na rua do que na sua própria casa até aqueles que se sentem tão expostos e desprotegidos que dizem preferir os antigos hospitais 1. O fato de termos encontrado situações tão drásticas, as quais os serviços de saúde e seus trabalhadores dão pouca atenção, parece indicar a falta de referencial plenamente estabelecido sobre como o território afeta os usuários subjetiva e objetivamente. Daí o nosso interesse em compreender as concepções de território que explícita ou tacitamente se sedimentaram nesses serviços desde a reforma psiquiátrica.
Em estudos na área da Saúde, palavras como espaço, ambiente e território se tornaram correntes desde o spatial turn nas Ciências Sociais. Elas comparecem em todos os discursos intra ou extra-acadêmicos que queiram dar sinais de alguma consciência da dimensão espacial 2, assim como há muito é usual em relação à dimensão histórica. Na Saúde Mental, foco da presente discussão, o termo território adquiriu particular relevância com a reforma psiquiátrica e a contraposição entre serviços centrados no hospital psiquiátrico e serviços comunitários 3), (4. Mas a essa incorporação do termo ao vocabulário da Saúde Mental não corresponderam concepções, princípios e modos de operar compartilhados por todos os agentes, como bem mostra uma revisão recente 5. Especialmente problemática nos parece a ambivalência entre noções genéricas e operacionais e um conceito de território advindo da teoria social crítica, em particular da Geografia Crítica.
Noção aqui compreendida como elemento inicial de um processo de conhecimento, ideia imediata e intuitiva que se tem sobre alguma coisa, constituindo-se conteúdo do conceito 6. Por sua vez, conceitos constituem "unidades explicativas fundamentais" com as quais se constroem teorias 7. Para nomear um conceito, pode-se recorrer a um neologismo, a um termo estrangeiro ou, simplesmente, a uma palavra comum. Isso, porém, não torna o conceito equivalente às noções atribuídas a tal palavra no uso cotidiano da linguagem. O conceito de território cunhado pela Geografia Crítica - embora mesmo aí não seja unívoco ou usado sempre com a devida precisão - designa determinações recíprocas de espaço e poder. Souza 8 sugere que, numa aproximação inicial, o território pode ser compreendido como "um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder" 8 (p. 78). Perguntar por território, territorialidade ou territorialização significa perguntar "quem domina ou influencia quem nesse espaço, e como" 8 (p. 79). O conceito de território implica a consciência de que o poder sempre se exerce em determinado espaço e por meio dele, seja um Estado-nação, sejam territórios menos evidentes, como aqueles do tráfico de drogas ou da indústria imobiliária de luxo. Mais à frente, no mesmo texto, o autor afirma que o território não deve ser confundido com o espaço concretamente percebido e objetivado, mas como "(...) as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial" 8 (p. 97). O espaço territorializado não é apenas cenário do poder, mas também um de seus fundamentos e principais instrumentos.
A concepção crítica e política do espaço que se condensa nesse conceito forte de território foi marginal na Geografia enquanto ali preponderaram abordagens a-históricas, quantitativas e até positivistas, para as quais o espaço geográfico constitui um substrato do qual as sociedades extraem recursos e um palco sobre o qual se desenvolvem. A inflexão crítica contra essas abordagens tradicionais se deve em boa parte a releituras não ortodoxas das obras de Marx e à efervescência cultural e política da Europa dos anos 1960. Além de reformular criticamente o pensamento geográfico, tal inflexão inseriu a dimensão espacial nas teorias sociais e ensejou reformulações amplas em muitas áreas (o processo em geral denominado spatial turn). Autores como Henri Lefebvre, Yves Lacoste ou, um pouco mais tarde, David Harvey transformaram o entendimento das relações de sociedade e espaço, evidenciando que não se trata de uma fusão harmônica, mas de uma conjunção tensionada, repleta de embates, conflitos e contradições.
No Brasil, o geógrafo Milton Santos inaugurou a abordagem do espaço como processo e construção social, considerando também as particularidades dos territórios periféricos ou semiperiféricos do capitalismo global. Isso possibilitou à Epidemiologia, por exemplo, enfrentar mais adequadamente as mudanças do perfil epidemiológico advindas da globalização e superar as abordagens que desconsideravam as implicações socioespaciais no processo saúde/doença 9), (10. Mas Milton Santos também abriu caminho para uma nova geração de geógrafos que avançou para além de sua obra, seja em amplitude, precisão conceitual, pesquisas empíricas ou contundência crítica 7), (8), (11.
Partimos do pressuposto de que negligenciar as questões de poder e disputa presentes no território, diluí-lo numa noção vaga e instrumentalizá-lo como divisão territorial do Sistema Único de Saúde (SUS), pode ter implicações relevantes para os egressos de longas internações psiquiátricas e demais pessoas com transtorno mental grave. Esses últimos, como integrantes do polo dominado nas relações de poder, tenderão a sucumbir ao risco assinalado por Bourdieu 12 (p. 124) de "aceitação da definição dominante da sua identidade ou da busca de assimilação a qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma". Ou seja, a inclusão pode se dar ao preço de submissão e tentativa de ocultar recursos depreciados 12. Nesse sentido, trabalhos de reabilitação psicossocial devem superar tendências a normatizarem e encaixarem os supostos desviantes, avançando para a transformação da sociedade visando ao convívio com as diferenças 13.
Nos itens que seguem, detalhamos a questão, começando pelo uso do conceito de território no âmbito da Saúde Mental em documentos do campo científico, na forma de publicações indexadas. Por meio de documentos oficiais da esfera federal do SUS, na forma de relatórios de conferências, leis, portarias e manuais, analisamos as concepções explícitas ou tácitas de território ali presentes, cuja importância reside justamente em sua capacidade indutora de práticas. Além disso, consideramos que a circunscrição clara de uma noção mesmo no campo burocrático aqui abordado é desejável, uma vez que o engajamento por leis, planos e instrumentos jurídicos frequentemente constituem documentos de conteúdo ambivalente e escorregadio, permitindo apropriações por polos opostos, conforme pudemos analisar em relação ao direito à cidade e à noção de participação da comunidade no planejamento urbano 14.
Confrontamos os discursos científicos e burocráticos com as concepções de território da Geografia Crítica e, ainda, com as discussões desenvolvidas por Bourdieu 15 acerca das noções de campo, que no presente caso nos permite distinguir as concepções dos campos científico e burocrático. Evidenciando convergências e divergências, pretendemos compreender como o termo território tem sido considerado no pensamento da reforma psiquiátrica brasileira, esclarecendo os diversos usos do termo e apontando possíveis correlações para a chamada reinserção social de pessoas com sofrimento mental grave. Finalmente, tratamos de apontar as possibilidades que adviriam de uma abordagem conceitualmente mais precisa e, talvez, politicamente mais contundente.
Tomamos como verdadeiro para as instituições da Saúde Mental no Brasil o que Vieira-da-Silva 16 constata acerca da Saúde Coletiva em geral: trata-se de um espaço social caracterizado pelo trânsito de agentes entre os campos científico e burocrático. Por essa razão, recorremos à análise concomitante de artigos científicos e textos oficiais. Ela permite mostrar que formulações surgem e repercutem nesses dois campos e como eles se influenciam mutuamente. Os artigos científicos da área de Saúde Mental foram levantados em periódicos indexados nas bases LILACS, SciELO, Scopus e PubMed, utilizando os termos de busca território e territorialidade, no período relativo a janeiro de 2005 e dezembro de 2015, buscando-se evidenciar o pensamento contemporâneo sobre o tema em fases da reforma caracterizadas respectivamente por sua consolidação e expansão 17),(18 (Tabela 1).
A busca foi realizada por dois pesquisadores de forma independente, obedecendo aos seguintes passos: (1) leitura dos resumos de todos os artigos identificados a partir dos descritores; (2) exclusão de textos em outros formatos que não de artigo, originários de outros países, artigos duplicados ou que não mantêm relação com ações desenvolvidas por serviços específicos da saúde mental - considerando que, neste último caso, extrapolariam a área da saúde tornada foco de nosso interesse; (3) confrontação entre as duas listas geradas por cada um dos pesquisadores; (4) discussão e formação de consenso entre os dois investigadores; (5) acionamento de um terceiro pesquisador em caso de dissenso; (6) leitura na íntegra dos artigos restantes. Dentre os 187 artigos levantados, foram excluídos 136 com base nas etapas citadas anteriormente. Os demais 51 artigos (Tabela 2) foram lidos pelos dois pesquisadores isoladamente, buscando identificar, em cada caso, os sentidos em que o termo território foi utilizado e os referenciais teóricos correspondentes.
O levantamento de documentos oficiais da política de saúde mental foi feito por meio da página da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde e da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) na área temática da saúde mental. Foi considerado o período entre 1992 e 2015, que abrange a realização de importantes mobilizações e conquistas de caráter político - entre os anos 1992 e 2000 - e de consolidações e expansão da rede de atenção psicossocial - a partir de 2001 - por meio da publicação de lei e portarias e do aumento expressivo dos serviços de saúde mental, conforme periodização proposta por autores citados 17), (18. Um total de 22 documentos constituiu o corpus de análise, no qual se investigou a ocorrência e as formas de uso do termo território. Foram consideradas a Lei Federal e o conjunto existente de portarias relativas à Saúde Mental do período, os relatórios das três últimas conferências e amostra intencional de guias para serviços estratégicos - Centros de Atenção Pisicossocial (CAPS), Serviços Residencial Terapêutico (SRT), Atenção Básica, Economia Solidária, Infanto-juvenil e álcool e drogas - além daqueles voltados a discussões de modelo e políticas (Tabela 3).
Na análise do conjunto de artigos científicos constatamos três situações distintas. Por um lado, conceitos bastante sofisticados de território, com discussões de desterritorialização, território existencial, cartografia etc. Por outro, 28 artigos (caracterizados por aqueles que não apresentam território e/ou territorialidade nas palavras-chave) não explicitam a concepção de território utilizada, nem fazem referência a autores ou escolas relevantes para o tema. E, finalmente, a presença de noção de território em parte dos artigos se fazendo de maneira alusiva ou descritiva, não com um conceito explicativo ou crítico. Isso é menos óbvio do que talvez pareça à primeira vista, uma vez que haveria a possibilidade de um conceito se estabelecer entre os especialistas de um campo, a ponto de dispensar explicações. Numa circunstância assim, ele seria utilizado com precisão sem ser detalhado a cada novo texto.
A inferência de que isso de fato não ocorre no campo científico da Saúde Mental é corroborada pela relação entre as datas de publicação dos artigos e sua precisão ou imprecisão conceitual quanto ao termo território. Artigos dos dois tipos estão distribuídos de maneira equivalente ao longo de todo o intervalo de 11 anos examinado (Figura 1). Não parece ter havido amadurecimento paulatino do campo nesse aspecto. Também é notável a ausência de qualquer correlação entre a precisão conceitual na concepção de território e a estratificação das publicações no Qualis-Periódicos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), seja na área de Saúde Coletiva, seja na de Psicologia. A proporção de artigos em que o termo foi (ou não) referido e usado com precisão é quase a mesma em todos os estratos.
Quanto aos conteúdos do termo, a análise dos artigos permitiu distinguir quatro acepções relevantes, em parte explicitadas pelos autores e em parte deduzidas por nós com base no respectivo contexto semântico (acepção aqui entendida como sentidos que uma palavra ou mesmo um conceito apresentam em dado contexto 19)). Há artigos em que, como seria de se esperar, tais acepções compareceram lado a lado, mas mesmo aí uma ou outra predominou claramente. Desconsideramos os artigos com a noção de território polissêmica em que não se viu sentido predominante (artigos de número 5, 14, 28, 31 e 41 da Tabela 2) e aquele que utilizou o termo como sinônimo de estado/município 20. A seguir, apresentamos as quatro acepções e a respectiva classificação dos artigos.
A mais frequente é de território como área de cobertura e ação de serviços extra-hospitalares. Os artigos em que ela prevalece identificam o território com o espaço fora do hospital (por extensão, contraposto à psiquiatria hospitalocêntrica) e adjacente ao serviço de saúde, cujos moradores ou frequentadores podem fazer uso deste serviço. Mesmo artigos em que esse não é o significado principal, empregam-no com naturalidade, como se fosse senso comum no campo.
"Como o CAPSad é uma unidade estadual, optou-se então por trabalhar com o conceito de 'território do CAPSad' considerando a área geográfica mais próxima dessa unidade de saúde, abrangendo o bairro de Pernambués, tendo em vista sua área física e a vida ali presente, seu território de vida pulsante" 21 (p. 466).
Numa segunda acepção, o território é um conjunto de recursos terapêuticos, em sentido amplo e nem sempre bem delimitado, isto é, uma resultante de interações potenciais a serem exploradas e articuladas pelos profissionais dos serviços de saúde em instâncias que não pertencem a estes serviços diretamente (espaços públicos, vizinhanças, associações etc.). A ênfase dos artigos em que predomina esse significado está na inclusão social das pessoas com sofrimento mental grave. No entanto, tais recursos terapêuticos são apontados quase sempre de maneira vaga, sem menção a conflitos, refratariedades e embates inerentes à disputa pelo acesso a bens e serviços. A passagem a seguir exemplifica particularmente bem essa característica.
"É importante que os profissionais atuantes no CAPS busquem outros cenários cotidianos do usuário, isto é, fora do âmbito da instituição de saúde mental. Assumirão, assim, uma postura de mediadores/facilitadores de relações e de recursos do território para produzir redes sociais solidárias de acompanhamento dos usuários no curso de suas vidas. É a criação de espaços de afetividades e encontros, pois há necessidade de promover habilidades para que as pessoas consigam autonomia e emancipação" 22 (p. 106).
A terceira acepção é o território existencial, constituído a partir da história pessoal de cada indivíduo. Ele denota o espaço de construções simbólicas e de pertencimento, articulando sentidos etológicos, subjetivos, sociológicos e geográficos. Os artigos em que ela prevalece em geral remetem a Deleuze e Guattari, cujo conceito de território existencial abrange tais relações entre clínica, espaço e subjetividade. A passagem a seguir caracteriza o contexto argumentativo em que essa terceira acepção aparece.
"Desse modo, desinstitucionalização e integralidade são operadores conceituais que afirmam o território como um pressuposto ético nas ações de saúde. Uma prática de cuidado só pode ser consequente se for relativa ao sujeito em seu contexto existencial. No campo das políticas públicas de saúde, algumas tecnologias de cuidado têm operado utilizando o deslocamento pelos territórios de vida dos usuários para desenvolver ações" 23 (p. 10).
Por fim, há o território como sistema de objetos e ações, derivado sobretudo das teorias de Milton Santos. Nos artigos que implícita ou explicitamente tomam essas teorias por referência, o território tem a acepção de interface entre o político e o cultural, entre fronteiras que vão daquelas existentes entre países até aquelas entre indivíduos, nos seus limites corporais. Central, nesses casos, é a dependência entre a materialidade do espaço e seu uso, entre processo histórico, base material e base social da ação humana (Tabela 4).
"Para que as ações de atenção à crise contemplem a complexidade das necessidades dos sujeitos, é necessário que os profissionais lancem mão de novas tecnologias de cuidado. Uma delas é a atenção à pessoa em seu contexto de vida, ou seja, dentro de seu território, que pode ser entendido como o espaço que resulta da inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistema de ações" 24 (p. 658).
Se considerarmos que um conceito forte de território, como diz Haesbart 11 (p. 95-6), "desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais 'concreta' e 'funcional' à apropriação mais subjetiva e/ou 'cultural-simbólica'", vê-se que as acepções citadas tendem a polos diferentes desse continuum. O território entendido como área de cobertura dos serviços de saúde, estruturador do funcionamento de redes de atenção psicossocial e portador de recursos no cuidado individual (acepções 1 e 2) corresponde ao polo de dominância funcional. O território considerado na perspectiva dos usuários ou como resultante de múltiplas relações materiais e imateriais de poder (acepções 3 e 4) tende ao polo de dominância simbólica. Bem ou mal, o campo científico abrange o continuum em questão, ainda que não o faça sempre e em cada texto particular.
As orientações normativas e técnicas do Ministério da Saúde enfatizam a importância do território na organização tecnoassistencial das iniciativas de Saúde Mental no SUS. Uma formulação típica é que "a ideia do território, como organizador da rede de atenção à saúde mental, que deve orientar as ações de todos os seus equipamentos" 25) (p. 25). Porém, nos documentos oficiais considerados (leis, portarias, relatórios e guias), a noção de território muitas vezes se reduz, justamente, a uma tal categoria da organização administrativa do sistema de saúde ou à cobertura dos serviços. Ilustra-o um documento da segunda conferência de Saúde Mental, em 1992, que propõe: "Adotar os conceitos de território e responsabilidade, como forma de dar à distritalização em saúde mental um caráter de ruptura com o modelo hospitalocêntrico, garantindo o direito dos usuários à assistência e à recusa ao tratamento, bem como a obrigação do serviço em não abandoná-los à própria sorte" 26 (p. 12).
O extrato mostrado antes, ainda que inspirado na concepção italiana de presa in carico27, traduzido em alguns textos como tomada de responsabilidade 28, restringe os cuidados em saúde mental aos serviços, e sua população adscrita a um determinado território geográfico - a referida distritalização.
Mais de uma década depois, um documento do Ministério da Saúde 25 acerca da Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil se, por um lado, amplia a noção de território para além do espaço físico, por outro, reforça a concepção do mesmo como recurso sinérgico, ignorando a presença de fatores antagônicos à inclusão proposta: "O território é a designação não apenas de uma área geográfica, mas das pessoas, das instituições, das redes e dos cenários nos quais se dão a vida comunitária. Assim, trabalhar no território não equivale a trabalhar na comunidade, mas a trabalhar com os componentes, saberes e forças concretas da comunidade que propõem soluções, apresentam demandas e que podem construir objetivos comuns. Trabalhar no território significa assim resgatar todos os saberes e potencialidades dos recursos da comunidade, construindo coletivamente as soluções, a multiplicidade de trocas entre as pessoas e os cuidados em saúde mental" 25 (p. 25).
A definição de território enunciada anteriormente, possivelmente inspirada em Milton Santos 29, alude a redes, forças propositivas, trocas entre pessoas e a uma suposta comunidade ou coletividade, no entanto obliterando a dimensão política ou a pergunta pelo poder, que seria determinante para a compreensão do território numa perspectiva crítica. O espaço social em que o setor da Saúde Mental opera aparece como se fosse politicamente neutro ou, no melhor dos casos, autogovernado. As forças que podem oferecer resistência à reinserção social de pessoas com transtorno mental grave, oriundas do campo econômico, clínico e moral, por exemplo, não são mencionadas.
Ora, os espaços hoje habitados por essas pessoas e que dispõem de suporte institucional, sejam SRT ou CAPS, em boa parte estão inseridos em grandes centros urbanos. Tais metrópoles talvez constituam os territórios mais complexos que a humanidade já produziu e os de mais difícil decifração e interação para quaisquer indivíduos, com ou sem transtorno mental. Dessa forma, "trabalhar no território" fazendo uso de "todos os saberes e potencialidades" ali existentes, como sugere a passagem citada, pressupõe uma reflexão crítica acerca das possibilidades e dificuldades de inserção não submissa das pessoas com transtorno mental nas relações de poder que definem esse território.
Em outras palavras, a despeito de eventualmente remeterem ao território existencial e considerarem as disputas ali presentes, os documentos oficiais operam essencialmente com as concepções de território como espaço de abrangência ou cobertura de serviços e redes (acepção 1 do campo científico) ou como um conjunto de recursos que potencializam o acompanhamento e a reabilitação de pessoas com transtorno mental grave (acepção 2 do campo científico). Finalmente, há a supramencionada ênfase na organização da rede de atenção, que parece estar por trás da vaga expressão "lógica do território" e constituiria uma acepção não encontrada da mesma maneira no campo científico.
A preponderância desses significados remete a funções típicas do Estado. Todos eles tendem ao polo de dominância funcional. Numa área de cobertura, a relação entre determinados serviços e determinada clientela adscrita permite sua melhor distribuição, hierarquização e articulação, com vistas à reabilitação e à reinserção. O território é sinônimo de "lugar de referência e de cuidado, promotor de vida, que tem a missão de garantir o exercício da cidadania e a inclusão social de usuários e de familiares" 30) (p. 3). Ele configura, enfim, um recurso, seja clínico, reabilitatório ou de gestão. Ainda que não exista concepção funcional de território que não inclua algum elemento simbólico - e vice-versa - fica evidente que, segundo os documentos oficiais, território seria algo bem mais estreito, imediato, simples e administrável do que a concepção que emerge do conjunto dos textos científicos.
Sabemos que a extinção de espaços de confinamento, tais como os hospitais psiquiátricos, não garante por si só nem a inclusão social dos excluídos, nem a sua emancipação da tutela. Contrariando as intenções e a intuição de todos aqueles que se engajaram na reforma psiquiátrica brasileira, o estabelecimento de uma rede de serviços de saúde "no território" carrega até mesmo o risco de um processo no sentido oposto, pois ele fornece ao Estado uma legitimação adicional para exercer vigilância sobre toda a população de determinada área, isto é, determinado "território". Como alertam Lima & Yasui 31 (p. 599), remetendo a Deleuze (1992), "do asilo aos novos serviços substitutivos (...) poderíamos apenas passar de uma prática disciplinar para uma prática de controle".
Para mitigar esse risco, Lima & Yasui 31 recomendam uma prática clínica delicada e atenta, capaz de acolher a multiplicidade de formas de existência e redes de sentido que criem novos territórios. No entanto, cabe ter em mente que essa intenção de acolhimento pluralista frequentemente esbarra na lógica de imposição de ordem social e uniformização embutida no próprio funcionamento da máquina estatal, por meio da integração moral e da produção de identidades sociais pelos atos dos agentes do Estado 32. Independentemente do posicionamento ético e político ou da prática clínica dos trabalhadores da rede de saúde mental, eles estão sujeitos à função de controle da instituição que os emprega e cujas determinações sentem na pele sempre que se defrontam com a sua imensa burocracia. A frequência e a naturalidade com que a acepção de território como área de cobertura é usada também nos artigos científicos, indicam que boa parte dos especialistas incorporou algo dos automatismos do "mundo administrado". Isso nos leva de volta à definição de Souza 7), (8: perguntar pelo território é perguntar pelo poder. E com Bourdieu poderíamos acrescentar que a gênese de todo Estado moderno é um longo e complexo processo de concentração dos recursos materiais e simbólicos de uma sociedade, resultado de intensas lutas pelo poder 32, que pode assumir diferentes formas, mas ao qual inexoravelmente corresponde um processo de estabelecimento da ordem e desapropriação de recursos simbólicos nas relações entre agentes nos espaços sociais e físicos onde atuam 33.
O movimento de desinstitucionalização na Itália dos anos 1970 - que influenciou fortemente a reforma psiquiátrica brasileira - confrontou não apenas o hospital psiquiátrico, mas também o modelo da comunidade terapêutica inglesa e a política de setor francesa. Do modelo inglês, os italianos de Trieste conservaram o princípio de democratização das relações, já da política francesa herdaram a ideia de territorialidade que, justamente, se contrapõe à noção de comunidade 34. No contexto da Saúde Mental, o termo comunidade - tão positivamente conotado na linguagem coloquial - é inseparável dos ideais preventivistas americanos, que fazem da comunidade o sistema funcional e do adoecimento mental a falha de adaptação aos mecanismos interativos deste sistema 35. Para os italianos, pelo contrário, a instituição a ser superada não era simplesmente o hospital psiquiátrico, mas "o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência e de relações de poder que se estruturam em torno do objeto 'doença'" 27 (p. 30), compreendendo que a luta pela liberdade está associada à luta pelos recursos que possibilitam as trocas sociais, sob o risco de restituir os excluídos a uma vida exclusa 36. Nesse sentido, o processo italiano de desinstitucionalização psiquiátrica e de inclusão territorial pressupõe disputas e embates em nada alinhados à noção funcional de território. E a mesma coisa pode se dizer dos princípios que moveram a reforma psiquiátrica brasileira.
No entanto, a hegemonia dessa noção funcional nos documentos (e nas operações) do Ministério da Saúde, assim como sua recorrência em artigos científicos, indicam uma progressiva perda de potência do conceito forte de território, isto é, do território como espaço de exercício de poder e, ao mesmo tempo, espaço de resistência. Estamos numa encruzilhada entre a verdadeira inserção no território e uma transinstitucionalização 37. Se a primeira representa conflitos, o difícil convívio com a diferença e avanços por vezes lentos e sempre parciais, a segunda representa somente a saída do hospital psiquiátrico em direção à tutela na comunidade, conduzida por profissionais de instituições como os CAPS e os SRT.
A superação do ostracismo pelo processo de reinserção social deverá evitar que os egressos de longas internações, e também aqueles que desde o princípio foram acompanhados nos serviços substitutivos, sintam-se deslocados e constrangidos a cumprirem condições exigidas tacitamente para serem aceitos 12. Um conceito crítico de território implica distinguir entre a inserção na rede de atenção socioassistencial e de saúde e a inclusão nos espaços físicos, social e relacional.
Na Saúde Mental, o vocábulo território foi adotado desde o início de uma maneira híbrida, oscilando entre significados ancorados ou não num referencial teórico. O território ou a territorialidade funcionam como alusões a um ideário avançado, sem que necessariamente se enfrentem as respectivas implicações políticas e sociais. O fato de não ter havido avanço conceitual em torno desse importante significante, implica que cada nova produção sobre o tema se veja obrigada a explicá-lo mais uma vez ou então a aceitá-lo nas suas acepções mais instrumentalizadas e menos críticas. Além disso, a imprecisão conceitual não parece desqualificar um texto aos olhos dos especialistas, sejam da Saúde Coletiva, sejam da Psicologia.
No que tange ao discurso oriundo de fontes oficiais, prevalece a concepção de território como espaço físico e social apto a catalisar o processo de reabilitação psicossocial e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave. Ao abstrair o território das relações de poder e, portanto, de disputas e resistências de diversas ordens, a concepção oficial induz tanto a prática quanto a reflexão a negligenciarem o que é central em qualquer processo de inclusão: as relações sociais e suas consequências para cada um dos indivíduos ditos loucos.
O conceito crítico de território contrasta com a noção corriqueira, cujos sentidos são variados e por vezes vagos ou superficiais (território como sinônimo de área ou região, por exemplo). Parece haver uma gradativa perda de potência e discernimento, que atenua a concepção de território presente na reforma psiquiátrica italiana e reforçada no Brasil pela Geografia Crítica e pela obra de Milton Santos. Ao abrandar a capacidade crítica e analítica dessa concepção, omitindo a caracterização do verdadeiro (des)encontro entre pessoas com sofrimento mental grave e o espaço urbano e social na sociedade brasileira contemporânea, tanto o campo científico quanto o burocrático tornam ainda mais vulneráveis e fragilizados os trabalhadores dos serviços e seus usuários. Para aqueles que tentam se inserir socialmente, é imenso o risco de sujeição a valores e comportamentos hegemônicos.