versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.1 Rio de Janeiro jan. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017221.16202015
Vários estudos demonstraram que a inserção do farmacêutico na equipe multidisciplinar resulta em desfechos mais custo-efetivos, porém a maioria desses estudos foram dirigidos ao estudo de público, doença ou situação específica1-7.
Em uma revisão sistemática recentemente publicada, foi observado que a maioria dos estudos relacionados à prestação de serviços farmacêuticos na atenção primária foram conduzidos nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, respectivamente8. Considerando apenas os estudos em que o farmacêutico trabalhava na mesma unidade que o clínico geral, de modo a avaliar o impacto da inserção desse profissional na equipe e suas intervenções, constatou-se que a maioria dos estudos (25/38) relatavam efeitos positivos em pelo menos um aspecto do cuidado. Resultados mais expressivos eram alcançados quando o farmacêutico interagia com o prescritor pessoalmente, reforçando a observação de que a presença do farmacêutico nos serviços de atenção primária é essencial para garantir a comunicação efetiva e o estabelecimento de relações interpessoais de forma a aumentar a probabilidade de sucesso nas intervenções8.
É indiscutível o avanço do Brasil em relação às políticas públicas de saúde e à promoção ao acesso a medicamentos essenciais desde a Política Nacional de Medicamentos (PNM), em 1998. Estudos que avaliaram os programas de assistência farmacêutica do governo federal demonstraram expressivo aumento da oferta de medicamentos por esses programas bem como o fato de que as compras públicas se tornarem mais eficientes9-11.
Embora os programas para distribuição gratuita de medicamentos no SUS tenham sido iniciados logo após a publicação da PNM, a assistência farmacêutica em caráter sistêmico, indo além do aspecto logístico para incluir a prestação de serviços, só tem sido priorizada mais recentemente, com destaque para o aumento da oferta de capacitação em serviços farmacêuticos e gestão e de linha de financiamento para essa finalidade. A despeito desses esforços, segundo estudo realizado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a disponibilidade em estoque dos medicamentos principais foi de 73% nas unidades de saúde e dos medicamentos prescritos, a proporção dispensada ou administrada nas unidades de saúde foi de 66%, o que sugere falta do medicamento ou de adesão aos medicamentos selecionados12.
É recente e ainda insuficiente o número de farmacêuticos no Sistema Único de Saúde (SUS), sobretudo na dispensação de medicamentos nas UBS. Dados de fiscalização do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) revelam que de 3214 farmácias públicas dos municípios do Estado de São Paulo – fiscalizadas em 2006 –, 2346 (73%) não contavam com o farmacêutico13. Não há literatura disponível que identifique quantas farmácias de Unidade Básica de Saúde (UBS) contam com farmacêutico no Brasil, porém estudo realizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2009, para avaliar a influência da indústria farmacêutica no SUS, identificou que em 7 de cada 10 farmácias do SUS faltam farmacêuticos14.
Os elementos básicos dos cuidados primários e dos cuidados farmacêuticos são os mesmos e incluem a centralidade do cuidado no paciente, o tratamento de transtornos agudos e crônicos, a ênfase na prevenção de agravos; a documentação do serviço prestado, o acesso, os cuidados contínuos e sistemáticos, a integralidade do cuidado, a responsabilidade pelo tratamento, a formação/promoção de educação e de saúde15. Embora já tenha sido estudado o impacto clínico do farmacêutico, há escassez de estudos que demonstrem melhoria do acesso a medicamentos, da qualidade de prescrição e promoção do uso racional de medicamentos após sua inserção em equipes de atenção primária à saúde, sobretudo quando esse profissional acumula também as funções administrativas. O objetivo deste trabalho é descrever e avaliar resultados da inserção de um farmacêutico na equipe multiprofissional de uma unidade básica de saúde em relação à promoção do acesso e uso racional de medicamentos essenciais.
O trabalho foi realizado em uma unidade de saúde da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que está sob contrato de gestão de uma organização social (Projeto Região Oeste, da Faculdade de Medicina da USP). Essa unidade inclui um serviço de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), uma Unidade Básica de Saúde (UBS) com quatro equipes Estratégia Saúde da Família (ESF), tendo 42.479 habitantes em sua área de abrangência.
Com a contratação do farmacêutico, em maio de 2007, iniciou-se uma série de ações cujos resultados serão apresentados considerando diferentes aspectos da atuação do farmacêutico: a) Estruturação e organização do serviço; b) Estudo e intervenções para melhoria do padrão de prescrição de medicamentos; c) Elaboração e adoção de método para orientação padronizada para pacientes com polifarmácia ou com dificuldades em seguir o esquema posológico prescrito; d) Serviços Farmacêuticos Clínicos.
A estruturação e organização do serviço compreendeu todas as atividades relacionadas à implementação de melhorias do espaço físico e de processos gerenciais, como mudança do local da farmácia – tanto da dispensação quanto do estoque –; inventários diários e semanais, de acordo com as características dos medicamentos; troca de medicamentos entre unidades visando reduzir perda de medicamentos devido a vencimento; e a capacitação da equipe de colaboradores – inicialmente composta por auxiliares de enfermagem que foram gradativamente substituídos por quatro técnicos de farmácia –, por meio de reuniões quinzenais com duração máxima de 30 minutos, que incluíam aula de cerca de 10 minutos e discussão. Neste trabalho foi considerado técnico de farmácia o profissional com curso técnico completo ou experiência de pelo menos dois anos em dispensação de medicamentos, visto que foram as exigências aplicadas no processo de seleção do cargo.
O estudo e intervenções para melhoria do padrão de prescrição de medicamentos ocorreu em duas etapas: foram elencadas as prioridades de intervenção (para intervenção e também para capacitação da equipe) e iniciaram-se as intervenções farmacêuticas. Para elencar as prioridades de intervenção do farmacêutico estudaram-se as prescrições apresentadas ao serviço de farmácia para levantar os principais problemas que impactavam no acesso aos medicamentos. Nos meses de junho e julho de 2007 foram coletados dados em formulário padronizado, manualmente, referentes à 1.200 prescrições. No momento da dispensação de medicamentos, os técnicos de farmácia previamente capacitados, registravam os dados da prescrição (origem, número de itens prescritos, medicamentos prescritos pelo nome genérico do fármaco, medicamentos prescritos pertencentes a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais – REMUME – e número de medicamentos dispensados).
Após elencados os problemas, as intervenções farmacêuticas a serem realizadas foram definidas em reuniões com todos os membros da equipe de farmácia. Posteriormente ao primeiro ano de atuação e maior integração à equipe, essas discussões passaram a envolver os demais profissionais da equipe de saúde – enfermeiros, médicos, técnicos administrativos da recepção, assistente social e gestor.
A comparação dos resultados foi realizada a partir de dados de atendimento da farmácia, coletados de forma padronizada, em planilha Excel®. Foram avaliados os dados de 16.720 prescrições médicas, atendidas entre julho e outubro de 2011. A taxa média de registro das informações na planilha de coleta de dados foi de 90% – comparando-se dados da planilha e do sistema informatizado de controle de estoque de medicamentos, o que foi considerado representativo para todo o atendimento da farmácia. A análise estatística foi realizada empregando o teste Qui-Quadrado de Pearson, com nível de significância de 5%, e, para avaliar a associação entre o resultado e a intervenção, foi calculado o ODDs Ratio, usando o programa Epi Info®.
A partir da observação de que a) haviam medicamentos cuja embalagem eram muito semelhantes, podendo confundir os pacientes; b) parte dos pacientes atendidos eram analfabetos e precisavam de orientação individualizada para seguir o esquema posológico prescrito; c) não havia tempo hábil para a confecção de caixas para orientação dos pacientes; foram discutidas alternativas para que fosse padronizada a forma de orientação individualizada. Desse modo, foi elaborado método padronizado empregando-se uma tabela de cores e impressos em forma de calendário, contendo pictogramas representando períodos do dia, como manhã, almoço e noite, ou ações, como levantar-se ou ir dormir.
Embora desde sua contratação o farmacêutico atendesse pacientes em consulta, quando necessário, o registro dessas atividades só passou a ser realizado no final de 2009. Assim, serão apresentados os resultados referentes aos anos de 2010 e 2011, quando a equipe de colaboradores já estava capacitada, o serviço de farmácia estruturado e o farmacêutico podia dedicar-se quase que exclusivamente aos serviços farmacêuticos clínicos, destacando-se a realização de grupos de educação em saúde, atendimentos farmacêuticos e o seguimento farmacoterapêutico, quando necessário. A aceitação da recomendação do farmacêutico e o número médio de medicamentos prescritos foram comparados, empregando o teste qui-quadrado de Pearson, com nível de significância de 95%, usando o programa Epi Info®. No seguimento farmacoterapêutico foi empregada adaptação do método Dader16.
Uma vez que os dados para pesquisa foram obtidos de prescrições e registros administrativos, o trabalho foi liberado da obrigatoriedade de aprovação pelo Comitê de Ética, embora tenham sido seguidas as recomendações da Resolução do CNS n° 466/2012.
No primeiro inventário do estoque de medicamentos (28/05/2007), 168 (93%) dos medicamentos avaliados apresentaram discrepância entre a quantidade discriminada no sistema informatizado e a observada no estoque físico. No segundo inventário (04/06/2007), apenas 87 (48%) desses e nos inventários realizados de janeiro a outubro de 2012, a média do número de medicamentos que apresentavam discrepância foi de apenas 4%. Como resultado do gerenciamento do estoque, a não dispensação, devido à falta de medicamentos da Remume prescritos na unidade foi reduzida de 10,7% (em 2007) para 1,3% (em 2011), p < 0.0000001. Em 2010, essa farmácia passou a ser o serviço de referência para dispensação de tuberculostáticos e oseltamivir para os Centros de Detenção Provisória e os hospitais da região por ser considerada bem organizada. Ainda nesse ano, o farmacêutico passou a fazer parte da equipe de educação continuada da região, participando e coordenando cursos de capacitação para farmacêuticos e técnicos da rede municipal e recebendo residentes de farmácia de um programa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, em 2012.
Concomitantemente ao processo de estruturação do serviço, foi realizado levantamento de situações que pudessem demandar intervenções pelo farmacêutico, com particular atenção em relação ao acesso a medicamentos. Nos 1200 atendimentos avaliados entre junho e julho de 2007, observou-se que em 820 (68,3%) destes, a prescrição apresentada foi integralmente atendida, ou seja, todos os medicamentos prescritos foram dispensados; em 329 (27,4%) a prescrição foi parcialmente atendida. Nos 51 atendimentos onde nenhum medicamento foi dispensado, o que impossibilitou a dispensação foram irregularidades técnicas ou legais da prescrição.
No período inicial, 2007, foram prescritos 2.642 medicamentos, considerando aqueles presentes nas prescrições integralmente ou parcialmente atendidas. Desses, 1.288 (48,8%) foram prescritos empregando nome comercial do fármaco. Além disso, desses 2.642 medicamentos, 521 (19,7%) não faziam parte da relação municipal de medicamentos essenciais (REMUME). Dos 2.121 medicamentos prescritos e padronizados na REMUME, 418 (15,8%) não foram dispensados: 282 (10,7%) estavam em falta e 136 (6,4%) por motivos relacionados ao esquema posológico ou ilegibilidade.
Os problemas elencados e as intervenções adotadas estão descritos no Quadro 1. Na Tabela 1 estão descritos os resultados da atuação do farmacêutico para a promoção da melhoria do padrão de prescrição de medicamentos, comparando-se os dados de atendimento do período inicial (junho e julho de 2007) e pós-intervenção (julho a outubro de 2011).
Quadro 1 Problemas identificados nas prescrições avaliadas entre junho e julho de 2007 e intervenções realizadas, em uma unidade básica de saúde de São Paulo.
Problema | Intervenções |
---|---|
1. Irregularidades técnicas ou legais da prescrição 2. Medicamentos prescritos empregando nome comercial do fármaco |
. Intervenção educativa junto aos prescritores da unidade por meio de intervenções face a face; . Elaboração de memorandos internos (assinados pelo farmacêutico e pelo gestor), dada a dificuldade em reunir os prescritores para discussão e orientação. . Durante um período de adaptação de seis meses, a equipe de farmácia procurava o médico solicitando a correção dos erros na prescrição. Um mês antes do final desse período, em abril de 2010, foi elaborado novo memorando interno reforçando as informações; . Campanhas internas sobre temas relevantes para a segurança do paciente como identificação do medicamento, legibilidade da prescrição, esquema posológico descrito adequadamente etc. |
3. Vencimento das prescrições de medicamentos para tratamento de condições crônicas | . Implantou-se o uso de um carimbo com campos referentes aos seis meses de atendimento da prescrição, permitindo ao paciente fácil visualização de quantos campos em branco (ou seja, meses de validade da prescrição) ainda restavam após o atendimento atual; . Parceria com a equipe da recepção para agendamento de pacientes quando solicitado pela farmácia. |
4. Medicamentos que não constam da REMUME | . Divulgação da REMUME e da lista de medicamentos do CEAF, por meio de uma publicação periódica; . Intervenções face a face com o prescritor para recomendar alternativas terapêuticas disponíveis. |
5. Falta de medicamentos que constam da REMUME | . Otimização da gestão do estoque com inventários periódicos; trocas de medicamentos entre unidades para evitar perdas por vencimento; etc. |
Tabela 1 Resultados das intervenções realizadas para melhoria do padrão de prescrição médica em uma unidade básica de saúde de São Paulo, comparando-se o período anterior (junho a julho de 2007) e posterior (julho a outubro de 2011) à inserção do farmacêutico.
Antes | Após | p | Odds ratio (IC 95%) | |
---|---|---|---|---|
Prescrições atendidas integralmente |
68,3% (820/ 1.200) |
87,3% (14.597/16.720) |
< 0,0000001 | 3,19 (2,80 – 3,63) |
Prescrições não atendidas devido a irregularidades técnicas ou legais |
4,2% (51/1.200) |
1,8% (301/16.720) |
< 0,0000001 | 0,41 (0,30 – 0,56) |
Medicamentos prescritos que não constam da REMUME |
19,7% (521/2.642) |
4,2% (1.545/36.792) |
< 0,0000001 | 0,18 (0,16 – 0,20) |
Medicamentos prescritos empregando nome genérico do fármaco |
51,2% (1.354/2.642) |
94,4% (34.732/36.792) |
< 0,0000001 | 16,04 (14,68 – 17,52) |
Medicamentos (da REMUME) prescritos em falta |
10,7% (282/ 2.121) |
1,3% (458/35.247) |
< 0,0000001 | 0,08 (0,07 – 0,10) |
O método adotado para orientar os pacientes com dificuldades de seguir o esquema posológico prescrito foi elaborado e aperfeiçoado ao longo de três anos. A orientação inclui impressos com pictogramas e uma tabela de cores padronizada de forma a permitir que o técnico identificasse interações potencialmente prejudiciais (por exemplo: amiodarona, sinvastatina e digoxina eram identificadas com a mesma cor para que ao ser usados concomitantemente, alertasse o técnico para a necessidade de que o farmacêutico fosse comunicado para avaliar o risco-benefício da associação).
Durante o ano de 2011, 712 pacientes foram orientados por técnicos de farmácia empregando esse método, sendo que 581 (82%) desses retornaram para retirar seus medicamentos nos meses seguintes e a cumprir o regime posológico conforme prescrição médica, segundo o relato do paciente. Em 131(18%) a orientação do técnico não possibilitou a compreensão do esquema posológico e os pacientes foram encaminhados para atendimento farmacêutico.
A Tabela 2 descreve os serviços farmacêuticos clínicos realizados durante os anos de 2010 e 2011.
Tabela 2 Serviços farmacêuticos clínicos realizados entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2011 em uma unidade básica de saúde de São Paulo.
2010 | 2011 | Total | ||
---|---|---|---|---|
Grupos de Educação em Saúde | ||||
Número de eventos | 04 | 10 | 14 | |
Número de participantes (total) | 64 | 259 | 323 | |
Atendimentos farmacêuticos | ||||
Número de atendimentos | 374 | 571 | 945 | |
Seguimento farmacoterapêutico | ||||
Número de pacientes que iniciaram o Seguimento farmacoterapêutico | 38 | 67 | 105 |
Os temas abordados nos grupos de educação em saúde em 2010 foram sobre a necessidade do uso de medicamentos continuamente por pacientes diabéticos e hipertensos; e em 2011, sobre temas relacionados ao tratamento de hipertensão e diabetes (dieta e uso de medicamentos), os riscos da automedicação, os cuidados no armazenamento de medicamentos e os cuidados relacionados à automedicação das crianças (sendo esse último ministrado em uma escola da região, na reunião de pais, atendendo solicitação da direção). A partir de 2011, além de promover grupos de educação em saúde, o farmacêutico passou a participar do grupo multidisciplinar de controle de tabagismo na unidade.
As razões para o atendimento farmacêutico nos dois anos do estudo foram: obtenção de informações sobre acesso a medicamentos no SUS, 238 (25,2%); necessidade de conciliação medicamentosa, 224 (23,7%); regime terapêutico complexo (ou seja, 5 ou mais medicamentos prescritos), 108 (11,4%); mudanças recentes na farmacoterapia (inclusão, exclusão ou substituição de medicamentos), 98 (10,4%); esclarecimento de dúvidas sobre medicamentos, 89 (9,4%); suspeita de reação adversa a medicamentos, 82 (8,7%); não adesão a terapia farmacológica, 67 (7,1%); e suspeita de inefetividade terapêutica, 39 (4,1%).
Embora a maioria dos atendimentos farmacêuticos tenha sido realizada devido a identificação de problemas pelos técnicos de farmácia ou o farmacêutico durante a dispensação de medicamentos (846; 89,5%), parte dos pacientes foi encaminhada por médicos da unidade: 41 (11,0%) em 2010 e 83 (14,5%) em 2011 – com aumento significativo (p < 0,0001).
Os motivos para que os médicos encaminhassem pacientes para atendimento farmacêutico, considerando-se os anos de 2010 e 2011, foram: mudanças recentes na farmacoterapia (68; 54,8%), regime terapêutico complexo (47; 37,9%) e suspeita de inefetividade terapêutica (9; 7,3%). Além disso, os médicos da unidade solicitaram discutir questões ligadas a farmacoterapia dos pacientes em 28 ocasiões em 2010 e 61 vezes, em 2011.
Dos 945 pacientes atendidos pelo farmacêutico, para 105 (11,1%) foi iniciado seguimento farmacoterapêutico – todos esses pacientes eram aderentes ao tratamento farmacológico. No entanto, somente 64 (61,0%) continuaram o seguimento até a liberação (alta) pelo farmacêutico. Para esses pacientes, a média de medicamentos prescritos foi reduzida de 7,4 ± 2,3 para 5,9 ± 1,7, p < 0,0001.
Como resultado dos atendimentos farmacêuticos e do seguimento farmacoterapêutico, foram realizadas 972 recomendações de mudanças na farmacoterapia aos prescritores, sendo que 659 (67,8%) dessas foram aceitas. Como pode ser observado na Tabela 3, na qual são descritos o número, o tipo e a aceitação ou não das recomendações do farmacêutico ao prescritor, as recomendações realizadas por meio de intervenção face-a-face foram melhor aceitas do que aquelas que empregavam anotações em prontuário e/ou bilhete (p < 0,0001). Observa-se ainda aumento da aceitação de recomendações entre os anos de 2010 e 2011 (p < 0,0001).
Tabela 3 Descrição do tipo e da aceitação de recomendações para mudanças na farmacoterapia realizadas pelo farmacêutico ao prescritor em uma unidade básica de saúde de São Paulo, entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2011.
2010 | 2011 | Total | |
---|---|---|---|
Recomendações ao prescritor | |||
Face-a-face | 228 (59,1%) | 390 (66,6%) | 618 (63,6%) |
Anotação em prontuário e/ou bilhete | 158 (40,9%) | 196 (33,4%) | 354 (36,4%) |
Total | 386 (100,0%) | 586 (100,0%) | 972 (100,0%) |
Recomendações ao prescritor aceitas | |||
Face-a-face | 158 (69,3%) | 313 (80,2%) | 471 (76,2%) |
Anotação em prontuário e/ou bilhete | 74 (46,8%) | 114 (58,2%) | 188 (53,1%) |
Total | 232 (60,1%) | 427 (72,9%) | 659 (67,8%) |
Em 2014, o relato dessas ações foi reconhecido com Menção Honrosa no Prêmio de Incentivo em Ciência e Tecnologia para o SUS.
Em estudo realizado em 2005, avaliando a assistência farmacêutica no Brasil, foi observado que somente 32% das unidades de saúde avaliadas apresentavam registros de estoque12. Vieira, em 2008, constatou, a partir de relatórios de fiscalização de municípios da Controladoria Geral da União (CGU) gerados entre agosto de 2004 e julho de 2006, que nos municípios onde havia falta de medicamentos, o problema mais frequente (81%) era o “controle de estoque ausente ou deficiente”17. A oferta de sistemas informatizados promove a qualificação do processo de programação de medicamentos, mas perde sua função quando o registro das informações não é fidedigno. Considerando o grande número de unidades de saúde do município de São Paulo, cerca de seiscentas, a programação de compras é de grande complexidade e a confiabilidade das informações do sistema torna-se essencial para garantir planejamento adequado.
Em relação à falta de medicamentos, há dois aspectos a serem considerados. O primeiro seria a gestão adequada do estoque de medicamentos resultando em redução do desperdício e permitindo adequada programação para a distribuição do medicamento do almoxarifado à unidade. Por outro lado, é importante ressaltar que também houve avanços na gestão dos medicamentos na secretaria municipal de saúde, tendo reflexo direto sobre os resultados observados, como o aumento da oferta de computadores e implantação do sistema informatizado em todas as unidades de saúde, bem como a inclusão de novos medicamentos na REMUME.
Não foram encontrados outros estudos que relatassem o aumento do acesso a medicamentos após intervenções do farmacêutico para comparação dos dados ou ainda a mudança no padrão de prescrição em unidades de atenção primária. No entanto, o fato de que todos os parâmetros avaliados em relação à melhora da qualidade da prescrição ou à ampliação do acesso aos medicamentos foram estatisticamente significativos e com forte associação com a intervenção reforça o achado de outros autores em relação ao fato de que a presença do farmacêutico no serviço de saúde de atenção primária, para que possa estabelecer relação interpessoal com a equipe e com o paciente, garante melhores resultados8.
Entre os motivos para a não dispensação dos medicamentos prescritos estavam as irregularidades técnicas ou legais em prescrições, independente da origem da prescrição. No Brasil, milhões de prescrições geradas, anualmente, nos serviços públicos de saúde, não apresentam os requisitos técnicos e legais imprescindíveis para uma dispensação eficiente e utilização correta dos medicamentos18,19. A média brasileira para prescrições completas é de 46%, com variação importante entre os estados avaliados: 1,1% em Goiás, 27,2% no Pará, 29,3% no Rio Grande do Sul, chegando a 81,9% no Sergipe e 98,6% no Espírito Santo20. Esse cenário reflete o fato de que a prescrição ainda não é vista como um documento de orientação ao paciente mas sim como uma formalidade necessária ao acesso21.
Deixaram de ser atendidas também prescrições que não continham todas as informações necessárias para garantir o uso adequado do medicamento (concentração, esquema posológico e tempo de tratamento). Uma vez que é comum que haja apenas uma concentração do medicamento na lista de medicamentos essenciais, os prescritores relataram que não compreendiam a necessidade de descrevê-la na prescrição.
As prescrições incompletas ou ilegíveis aliadas ao baixo nível socioeconômico-cultural dos pacientes brasileiros são fatores relevantes na exposição das várias camadas que compõem a sociedade, em especial os idosos e as crianças, aos possíveis problemas relacionados com os medicamentos22. Esses problemas retroalimentam a demanda pelos serviços clínicos, muitas vezes em níveis mais complexos, diminuindo a relação custo/efetividade dos tratamentos, onerando de forma desnecessária os gastos com saúde e diminuindo a qualidade de vida dos pacientes23.
Para que houvesse redução das prescrições de medicamentos de uso contínuo vencidas foi essencial o comprometimento da equipe de farmácia como técnicos administrativos responsáveis pelo agendamento, assistente social, enfermagem e os prescritores e também o aumento do quadro de médicos devido à implantação de quatro equipes ESF, em 2011. A maior dificuldade foi a divergência que há nas regras de dispensação e validade da prescrição entre os vários serviços de saúde e programas, gerando problemas tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde e gestores (dependendo do serviço de saúde a prescrição pode valer 3 meses (Farmácia Dose Certa), 4 meses (Farmácia Popular), 6 meses (UBS) ou até um ano (Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo).
Segundo estudo realizado por Dal Pizzol et al., a disponibilidade de medicamentos essenciais em oito serviços de atenção primária ou secundária de municípios da região centro-sul do país foi, em média, 88,1%, variando de 53% a 93%24. Emmerick et al.20, em estudo realizado em 5 estados brasileiros, descreveram que a média nacional para porcentagem de medicamentos prescritos que foram dispensados ou administrados foi de 67,9%, variando de 89,6% no Espírito Santo para 52,6% no Rio Grande do Sul, considerando o estado e de 22,0% a 93,2% considerando unidades de saúde analisadas. Outros autores relatam valores que variavam de 60,3% a 80,7% dos medicamentos prescritos sendo atendidos19,25-27 e descrevem problemas para calcular o indicador devido à falta de anotação da dispensação quando ocorre o fornecimento, padrões diferentes de anotação entre funcionários da farmácia, dispensação de medicamentos não padronizados devido a amostras grátis ou doações ou ainda não retenção da segunda via da prescrição, comprometendo a coleta dos dados. Uma vez que a coleta dos dados foi realizada no momento da dispensação, não dependendo da retenção da segunda via nem anotação, os problemas relatados no cálculo do indicador foram evitados. Além disso, não eram aceitas doações de medicamentos nem amostras grátis por não haver como garantir a procedência e a qualidade do produto.
No estudo de Emmerick et al.20, foi descrita média nacional de prescrição empregando o nome genérico como 84,2%, variando entre 80,6% no Pará a 92,7% no Espírito Santo. A prescrição por meio da denominação genérica é fator essencial na promoção do uso racional dos medicamentos à medida que favorece a identificação do medicamento pelos pacientes, além de facilitar o processo de educação sanitária realizado no momento da dispensação do medicamento.
Estudos brasileiros já descreviam a dificuldade de muitos pacientes em compreender o regime posológico prescrito28-32. A compreensão da prescrição variou em estudos realizados em outras cidades, e de acordo com a metodologia, variando de 34% a 70%25,26,31. No entanto, um sistema de identificação visual com o emprego de cores e impressos padronizados permitiu que a maioria dos pacientes pudesse cumprir adequadamente a prescrição medicamentosa – de acordo com os relatos dos pacientes –, sem a necessidade de atuação direta do farmacêutico, mostrando a relevância da orientação dada pelos técnicos de farmácia visto que seria inviável que o farmacêutico atendesse a todos os pacientes. De fato, a capacitação dos técnicos e a sistematização da dispensação dos medicamentos, de forma a contribuir na identificação, e até mesmo para a resolução, de alguns problemas relacionados ao uso de medicamentos ou a qualidade da prescrição permitiu otimizar o tempo do farmacêutico para que esse possa dedicar-se mais às atividades clínicas, o que já havia sido relatado em estudos internacionais33-36.
Todos os aspectos avaliados em relação aos serviços farmacêuticos clínicos e a integração com a equipe multidisciplinar apresentaram melhora quando comparados os anos de 2010 e 2011, inclusive a aceitação das recomendações do farmacêutico ao prescritor para mudanças na farmacoterapia dos pacientes. Esse achado é compatível com o relatado em um estudo realizado no Canadá, descrevendo o processo de inserção de sete farmacêuticos em equipes de atenção primária, com o apoio de mentores, no qual observou-se que para a efetiva integração do farmacêutico é necessário tempo, adaptabilidade e apoio37. Os participantes relataram que o papel do mentor foi essencial para garantir confiança e para desenvolvimento de habilidades tanto no aspecto do cuidado quanto do relacionamento interpessoal37. O processo de integração do farmacêutico na equipe foi facilitado pelo apoio do gestor local e de outros atores, que em reconhecimento aos avanços na estruturação da farmácia e capacitação da equipe, tornaram-se aliados na realização de intervenções. Embora não tenha havido um mentor durante o processo, o farmacêutico pôde valer-se da experiência de outros colegas que atuavam em outras esferas da administração municipal. As dificuldades mais relevantes foram falta de tempo devido ao acúmulo de atividades e ao desconhecimento do papel do farmacêutico pelo fato de nunca ter havido um trabalhando na unidade.
As intervenções do farmacêutico junto aos prescritores para mudanças no padrão de prescrição, realizadas antes da divulgação de um memorando interno assinado pelo gerente da unidade, foram ignoradas pelos prescritores, pois não acreditavam na aprovação do gestor nem na legitimidade do papel do farmacêutico em questões que ultrapassavam o aspecto logístico em relação ao medicamento. Apesar da reação negativa, com o apoio do gestor, a manutenção das intervenções face-a-face e a identificação dos médicos que aceitavam melhor as intervenções para recrutamento como agentes multiplicadores, foi possível estabelecer uma relação de trabalho que passou de respeitosa para harmoniosa e proativa, com o passar do tempo, ampliando o papel do farmacêutico em questões clínicas.
Entre os méritos do estudo tem-se o fato de que descreve várias ações do farmacêutico em unidade de atenção primária de maneira que pode nortear a ação de profissionais que estejam iniciando suas atividades. Além disso, trata-se de uma experiência real, que para alcançar resultados demandou tempo e articulação com outros profissionais de saúde, sem que o farmacêutico estivesse dedicado apenas as atividades assistenciais. As principais limitações residem no caráter descritivo do estudo e no fato de ter sido realizado em apenas uma unidade de saúde (ainda mais por tratar-se de um serviço de saúde para os quais houve mudanças importantes como a implantação de equipes ESF, o que poderia interferir com a aceitação pela equipe uma vez que esses profissionais já estão melhor habituados ao trabalho multidisciplinar).
Apesar das barreiras iniciais, com a integração do farmacêutico à equipe multiprofissional, ele passa a assumir papel relevante na redução de problemas relacionados a medicamentos e na melhoria da qualidade das prescrições médicas. A presença do farmacêutico na unidade para a realização das intervenções foi de fundamental importância para o alcance de resultados positivos.