versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 supl.1 Rio de Janeiro 2017 Epub 24-Jul-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00078816
Existen pocas investigaciones realizadas en Brasil centradas en las influencias de la raza/color, en lo que se refiere a la experiencia de la gestación y parto, siendo inédito un análisis de alcance nacional. Este estudio tuvo como objetivo evaluar las inequidades en la atención pre-natal y parto, de acuerdo a la raza/color, utilizando el método de apareamiento, basado en los marcadores de propensión. Los datos provienen de la investigación Nacer en Brasil: Investigación Nacional sobre Parto y Nacimiento, un estudio de base poblacional de alcance nacional con entrevista y evaluación de historiales médicos de 23.894 mujeres en 2011/2012. Se utilizaron regresiones logísticas simples para estimar las razones de oportunidad (OR) y sus respectivos intervalos de un 95% de confianza (IC95%) de la raza/color asociados a los desenlaces analizados. En comparación a las blancas, las puérperas de color negro tuvieron un mayor riesgo de tener un período pre-natal inadecuado (OR = 1,6; IC95%: 1,4-1,9), falta de vinculación a la maternidad (OR = 1,2; IC95%: 1,1-1,4), ausencia de acompañante (OR = 1,7; IC95%: 1,4-2,0), grandes desplazamientos para el parto (OR = 1,3; IC95%: 1,2-1,5) y menos anestesia local para episiotomía (OR = 1,5; IC95%: 1,1-2,1). Las puérperas mulatas también tuvieron un mayor riesgo de tener un período pre-natal inadecuado (OR = 1,2; IC95%: 1,1-1,4) y ausencia de acompañante (OR = 1,4; IC95%: 1,3-1,6), cuando se comparan con las blancas. Fueron identificadas disparidades raciales en el proceso de atención a la gestación y al parto, evidenciando un gradiente de peor para mejor cuidado entre mujeres negras, mulatas y blancas.
Palabras-clave: Grupos Étnicos; Inequidad Social; Atención Prenatal; Tocología
Ao longo das últimas décadas, vem sendo produzido um expressivo conjunto de evidências que aponta para importantes disparidades raciais no Brasil nas mais diversas dimensões da vida social, incluindo educação, emprego e condições de moradia 1,2. As desigualdades segundo raça/cor também têm sido documentadas nas pesquisas em saúde, com os segmentos socialmente menos favorecidos, incluindo pretos, pardos e indígenas, apresentando níveis mais elevados de adoecimento e de morte por causas evitáveis, desde as doenças infectoparasitárias até aquelas relacionadas à violência 3,4,5,6. No âmbito da saúde, estudos apontam para as influências raça/cor no acesso ao serviço e sua utilização 7,8,9,10. Decorrente desse cenário, vêm sendo implantadas iniciativas governamentais voltadas ao tema, como é o caso do Programa de Combate ao Racismo Institucional, lançado em 2005 11,12. Dentre os diversos componentes desse programa, está a obrigatoriedade do registro do quesito raça/cor nas estatísticas vitais do país, o que viabilizou abordagens comparativas entre os grupos de raça/cor e o monitoramento de desfechos demográficos, sociais e de saúde.
Nas recentes análises dos Objetivos do Milênio, ainda que o Brasil tenha recebido uma boa avaliação para a maioria dos indicadores, ficaram evidentes as lacunas no tocante à promoção da equidade de gênero, autonomia da mulher e mortalidade materna 13. Mortalidade materna elevada sinaliza para falhas na atenção obstétrica ofertada, desde o pré-natal até o parto. Muito embora tenham sido alcançadas coberturas universais de pré-natal e assistência hospitalar ao parto, estudos têm mostrado falhas na qualidade da assistência prestada, contribuindo para esses desfechos negativos, tanto em relação à saúde materna quanto do recém-nascido 13,14,15. Em consonância com resultados observados em outros países no mundo, que apontam para níveis de mortalidade materna expressivamente mais elevadas em mulheres de minorias étnico-raciais 16,17, a razão de mortalidade materna é maior duas vezes e meia em mulheres pretas do que em brancas no Brasil (Sistema de Informações sobre Mortalidade. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10uf.def, acessado em 22/Abr/2016; Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinasc/cnv/nvuf.def, acessado em 22/Abr/2016).
Apesar da centralidade da questão da saúde da mulher e da criança nas políticas de saúde no Brasil, até o momento foram conduzidas poucas pesquisas voltadas para a análise das influências da raça/cor no tocante à experiência de gestação e parto. Em geral, as investigações disponíveis foram realizadas em contextos locais específicos, não havendo análises de abrangência nacional 18,19. Nesse cenário, este estudo teve como objetivo avaliar as iniquidades na atenção pré-natal e parto com foco na dimensão raça/cor mediante dados de uma ampla investigação recentemente realizada no Brasil.
A presente análise se baseia nos dados do estudo Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento, de base populacional e abrangência nacional, sobre atenção à gestação e ao parto, realizado no período de fevereiro de 2011 a outubro de 2012 20. A amostra foi selecionada em três estágios. O primeiro foi composto por hospitais com 500 ou mais partos/ano estratificados pelas cinco macrorregiões do país, localização (capital ou não capital) e tipo de hospital (privado, público e misto). O segundo foi composto pelo número de dias necessários para entrevistar 90 puérperas (mínimo de sete dias em cada hospital); o terceiro, pelas puérperas. Foram amostrados 266 hospitais totalizando 23.894 mulheres. A descrição detalhada do desenho amostral está disponível em Vasconcellos et al. 21.
Participaram do estudo puérperas admitidas nas maternidades por ocasião do parto e seus conceptos vivos, ou mortos com peso ao nascer ≥ 500g e/ou idade gestacional ≥ 22 semanas de gestação. Foram critérios de exclusão: puérperas com transtorno mental grave que não permitiam comunicação com o entrevistador, ou que não compreendiam o idioma português; surdas/mudas. Às mulheres foi perguntado “Qual a sua cor ou raça?”, tendo sido apresentadas como opções as cinco categorias utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (branca, preta, parda, amarela e indígena). Aquelas que se classificaram como amarelas ou indígenas não foram incluídas na presente análise devido ao número extremamente pequeno de mulheres nessas categorias de raça/cor.
As mulheres foram descritas segundo as variáveis: região geográfica (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-oeste); classe econômica (A+B, C, D+E) 22; idade materna (< 20, 20-34, ≥ 35 anos); anos de estudo (< 8, 8-10, 11-14, 15 e mais); fonte de pagamento para o parto (pública ou privada) e paridade (multíparo, um parto anterior, dois partos anteriores, três ou mais partos anteriores). Essas variáveis foram utilizadas para construir os escores de propensão, descritos adiante. Mulheres com partos em unidades públicas e mulheres com partos em unidades mistas, que não foram pagos por plano de saúde, foram classificadas como tendo “fonte de pagamento pública”. Mulheres com parto pago por plano de saúde, tendo o parto ocorrido em unidades mistas ou privadas, e mulheres com parto em unidades privadas, independentemente de o parto ter sido pago ou não por plano de saúde, foram classificadas como tendo “fonte de pagamento privada”.
Os desfechos considerados foram: adequação do pré-natal segundo o Ministério da Saúde; orientação no pré-natal a respeito de complicações na gravidez (sim/não); orientação no pré-natal sobre sinais do início do trabalho de parto (sim/não); vinculação à maternidade - gestantes orientadas sobre o local de internação para o parto (sim/não); peregrinação para o parto - necessidade de busca de mais de um hospital no momento da internação para o parto (sim/não); presença de acompanhante durante o trabalho de parto e parto (em nenhum momento/em algum momento/em todos os momentos); tipo de parto (vaginal/cesariana); uso de ocitocina (sim/não); episiotomia (sim/não); anestesia local para episiotomia (sim/não); anestesia peridural (sim/não); idade gestacional ao nascer em semanas (pré-termo precoce - até 33; pré-termo tardio - 34 a 36; termo precoce 37 e 38; termo completo 39 a 41; pós-termo 42 e mais); e satisfação da puérpera com o atendimento recebido (excelente, bom e regular/ruim/péssimo).
O direito à vinculação à maternidade foi estabelecida pela Lei nº 11.634/200723, no seu artigo primeiro que refere que “toda gestante assistida pelo Sistema Único de Saúde - SUS tem direito ao conhecimento e à vinculação prévia à: I - maternidade na qual será realizado seu parto”.
Para o cálculo da adequação do pré-natal, foi elaborado um indicador de adequação mínima da assistência pré-natal que considerou como assistência pré-natal adequada: início do pré-natal até a 12ª semana gestacional; número adequado de consultas para a idade gestacional no parto recomendado pelo Ministério da Saúde brasileiro (pelo menos uma consulta no primeiro trimestre gestacional, duas no segundo e três no último trimestre); o registro de pelo menos um resultado de cada um dos exames preconizados na rotina de pré-natal: glicemia, urina, sorologia para sífilis, sorologia para HIV e ultrassonografia; e o recebimento da orientação sobre a maternidade de referência para a assistência ao parto 15.
As hipóteses explicativas da associação entre raça/cor da pele e atenção ao pré-natal e ao parto aqui estudadas foram explicitadas na Figura 1.
A variável independente foi raça/cor das puérperas que se autorreferiram como brancas, pretas ou pardas. A comparação foi operacionalizada de maneira binária em três análises distintas: pretas vs. brancas, pretas vs. pardas e pardas vs. brancas.
A análise de regressão múltipla, usualmente utilizada para o ajuste de potenciais fatores de confusão, pode ser inadequada para fins da análise de dados abordados neste estudo. Inicialmente, essa técnica foi desenvolvida para ajustar pequenos desbalanceamentos de estudos randomizados quando, por conta do próprio desenho, os expostos e não expostos a um tratamento possuem distribuição equivalente das covariáveis. No presente caso, as distribuições dos desfechos e de covariáveis relacionados à atenção pré-natal e obstétrica são extremamente distintas no Brasil.
O método de pareamento baseado nos escores de propensão é uma alternativa para lidar com diferenças entre os grupos em razão de um desenho não experimental, como é o caso da pesquisa Nascer no Brasil. Como não é possível medir o efeito da raça/cor para a mesma puérpera e comparar situações em que ela possui e não possui um dado desfecho, propõe-se uma comparação entre puérperas similares 24. De acordo com Rosenbaum & Rubin 25, é necessário ter um grupo de comparação válido, igual em todas as características ao grupo de indivíduos tratados, exceto pela raça/cor, para que se possa identificar a associação. O escore de propensão é a probabilidade predita, obtida por meio de regressão probit múltipla, de um caso receber um determinado tratamento vs. um controle, condicionada às covariáveis observadas. Neste estudo, os escores de propensão foram estimados considerando as seguintes variáveis: região geográfica, classe econômica, idade materna, escolaridade, fonte de pagamento para o parto e paridade.
A seleção de indivíduos foi realizada pelo método de pareamento do vizinho mais próximo (nearest neighbor matching within caliper), com uma diferença máxima absoluta fixada de 0,2 entre os escores de propensão, que gerou subamostras distintas para cada análise efetuada. Para a comparação de puérperas pretas (grupo tratamento) vs. brancas (grupo controle), foi adotado um pareamento do tipo 1:4, isto é, para cada puérpera preta foram inseridas quatro brancas. O mesmo foi feito para a comparação das puérperas pretas (grupo tratamento) vs. pardas (grupo controle). Finalmente, para a análise comparativa de mulheres pardas (grupo tratamento) vs. brancas (grupo controle), foi adotada a estratégia de 1:1.
Utilizaram-se modelos de regressão logística simples não condicional para estimar as razões de chance (OR) e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) dos desfechos estudados nas três comparações: pretas vs. brancas, pretas vs. pardas e pardas vs. brancas. Eles foram calculados após o pareamento pelo escore de propensão. O pacote estatístico utilizado para análise foi o SPSS, versão 22.0 (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos).
Esta pesquisa foi orientada pela Resolução nº 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que define as recomendações e procedimentos-padrão para pesquisas em seres humanos, tendo sido protocolada no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (nº 92/10). Todos os diretores de instituições e todas as puérperas assinaram o consentimento informado.
Todas as características sociodemográficas analisadas e utilizadas para o controle no pareamento pelo escore de propensão se associaram à raça/cor. Em comparação às mulheres brancas, as mulheres pardas e pretas se concentram mais nas regiões Norte e Nordeste, assim como nas com pagamento público do parto, nas adolescentes, nas menos escolarizadas, nas pertencentes às classes econômicas D e E, e nas com três ou mais partos anteriores (Tabela 1).
Tabela 1 Características sociodemográficas maternas utilizadas para controle no pareamento por escore de propensão.
* Teste qui-quadrado.
A análise comparativa de puérperas pretas vs. brancas gerou uma subamostra de 6.689 mulheres, sendo 1.840 pretas e 4.849 brancas após o pareamento pelo escore de propensão. As puérperas de cor preta possuíram maior risco de terem um pré-natal inadequado (OR = 1,62; IC95%: 1,38-1,91), falta de vinculação à maternidade (OR = 1,23; IC95%: 1,10-1,3 7), ausência de acompanhante (OR = 1,67; IC95%: 1,42-1,97) e peregrinação para o parto (OR = 1,33; IC95%: 1,15-1,54). As pretas também receberam menos orientação durante o pré-natal sobre o início do trabalho de parto e sobre possíveis complicações na gravidez. Apesar de terem menor chance para uma cesariana e de intervenções dolorosas no parto vaginal, como episiotomia e uso de ocitocina, em comparação às brancas, as mulheres pretas receberam menos anestesia local quando a episiotomia foi realizada (OR = 1,49; IC95%: 1,06-2,08). A chance de nascimento pós-termo, em relação ao nascimento termo completo (39-41 semanas), foi maior nas mulheres pretas que nas brancas (Tabela 2).
Tabela 2 Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação entre mulheres brancas e pretas antes e após pareamento pelo escore de propensão.
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.
* Apenas para as mulheres que realizaram parto vaginal com o total de 992 pretas e 2.094 brancas;
** Uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto. Apenas para mulheres que entraram em trabalho de parto com total de 1.148 pretas e 2.513 brancas.
A comparação entre puérperas pardas e brancas resultou numa subamostra de 13.318 mulheres, das quais 6.659 eram pardas e 6.659 brancas. Os resultados indicaram maior risco de as puérperas pardas terem pré-natal inadequado (OR = 1,24; IC95%: 1,12-1,36) e ausência de acompanhante (OR = 1,41; IC95%: 1,27-1,57). Foi menor o risco para uma cesariana e para realização de episiotomia e uso de ocitocina no parto vaginal. As puérperas pardas também apresentaram maior chance de nascimento pós-termo em relação ao nascimento termo completo (39-41 semanas) em comparação às mulheres brancas (Tabela 3).
Tabela 3 Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação entre mulheres pardas e brancas antes e após pareamento pelo escore de propensão.
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.
* Apenas para as mulheres que realizaram parto vaginal com o total de 2.479 pardas e 2.775 brancas;
** Uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto. Apenas para mulheres que entraram em trabalho de parto com total 3.019 pardas e 3.276 brancas.
Na comparação entre pretas e pardas, a subamostra foi de 9.006 mulheres, sendo 1.804 pretas e 7.202 pardas. A inadequação no pré-natal, a não vinculação à maternidade e a não orientação durante o pré-natal sobre o início do trabalho de parto foram mais frequentemente observadas nas puérperas pretas. Não foram encontradas diferenças significantes para os demais desfechos estudados (Tabela 4).
Tabela 4 Indicadores de atenção pré-natal e obstétrica: comparação entre mulheres pretas e pardas antes e após pareamento pelo escore de propensão.
IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.
* Apenas para as mulheres que realizaram parto vaginal com o total de 992 pretas e 3.866 pardas;
** Uso de ocitocina para acelerar o trabalho de parto. Apenas para mulheres que entraram em trabalho de parto com total de 1.148 pretas e 4.493 pardas.
As variáveis selecionadas para o pareamento na construção do escore de propensão mostraram grandes disparidades sociais e econômicas entre as mulheres segundo a raça/cor. Ainda assim, depois de equiparadas quanto a todas essas características, foram verificados piores indicadores de atenção pré-natal e parto nas mulheres de cor preta e parda, em comparação às brancas. Mulheres pardas e pretas sofreram menos intervenções obstétricas no parto que as brancas; no entanto as pretas receberam menos anestesia local quando submetidas à episiotomia. Apesar de pardas e pretas possuírem similaridades, a adequação do pré-natal e vinculação à maternidade para as mulheres pretas se mostrou pior.
Foi identificado um gradiente de cuidado menos satisfatório para mais satisfatório entre pretas, pardas e brancas para a maioria dos indicadores avaliados, evidenciando aspectos do funcionamento cotidiano dos serviços de saúde que resultam em benefícios e oportunidades diferenciadas segundo a raça/cor, com prejuízo para as de cor mais escura. Mesmo após controle das variáveis sociodemográficas através do pareamento pelos escores de propensão, as mulheres de raça/cor preta e parda, quando comparadas às brancas, apresentaram, de maneira geral, piores indicadores de atenção pré-natal e atenção ao parto. Ainda que as mulheres pardas e pretas tenham apresentado diversas similaridades no tocante aos desfechos investigados, foram observados piores resultados para as últimas em relação à qualidade da atenção pré-natal. Desse modo, as análises aqui detalhadas sinalizam para contundentes e preocupantes evidências acerca de desigualdades de raça/cor nas condições de atenção pré-natal e parto das mulheres brasileiras, previamente investigadas por estudos de caso em localidades específicas do país 18,26. Mesmo que a composição populacional e os níveis de desigualdades difiram, há evidências de iniquidades nas condições de atenção pré-natal e parto para diversos outros países cujos sistemas de registro de estatísticas vitais e de uso de serviços de saúde incluem dados sobre pertencimento étnico-racial 27,28.
A princípio, menor exposição a intervenções tais como uso de ocitocina, episiotomia e cesariana entre pretas e pardas em relação às brancas poderia significar um cuidado mais em acordo com as evidências científicas recomendadas pelo Ministério da Saúde 29. Porém, na prática, o modelo de assistência obstétrica adotado no Brasil é intervencionista e os profissionais de saúde em larga medida não somente identificam essas práticas como adequadas, mas também como indicativas de um “bom cuidado” 30. Em consequência, há um excesso de nascimentos nas idades gestacionais de 37 e 38 semanas, especialmente em decorrência das cesarianas agendadas 31. As mulheres pretas e pardas se diferenciam das brancas por apresentarem prevalências mais altas de parto pós-termo, provavelmente como reflexo de um “menor cuidado” devido a menos intervenções que as necessárias, que no caso de crianças pós-termo poderia ser requerida. Ainda que este estudo não tenha sido concebido para investigar especificamente a questão, é plausível argumentar que tal padrão de cuidado diferenciado possa se relacionar à ocorrência de discriminação pelo recorte de raça/cor.
Particularmente perversa, ao mesmo tempo que reveladora quanto aos impactos da desigualdade de raça/cor, é a constatação quanto à menor aplicação de analgesia para os grupos étnico-raciais mais discriminados. Diversas investigações, muitas das quais norte-americanas, têm relatado uso diferencial de analgesia em serviços de emergência para adultos e crianças, o que vitimiza, sobretudo, afro-americanos 32,33,34,35. Os resultados das mulheres brasileiras, mesmo após controle para variáveis sociodemográficas, indicam um menor uso de analgesia nas mulheres pretas. Uma década atrás, em estudo em maternidades na cidade do Rio de Janeiro, Leal et al. 18 também evidenciaram uma menor oferta de procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, com menores proporções ainda para as de menor escolaridade.
Segundo Hoffman et al. 36, o uso diferencial de analgesia segundo grupos raciais possivelmente se associa a percepções sociais que se baseiam na existência de profundas diferenças biológicas supostamente intrínsecas. Esses autores entrevistaram estudantes de medicina e residentes e constataram que eram comuns as perspectivas identificadas por esses autores como de “racismo internalizado”, de que, ao se comparar pretos e brancos, os primeiros eram tidos como mais resistentes à dor. O tema das percepções de profissionais de saúde acerca das relações entre atributos raciais e resistência à dor ainda está por ser pesquisado no Brasil. Mesmo que a temática não tenha sido sistematicamente investigada na pesquisa Nascer no Brasil, houve ocasiões, como foi o caso de serviços de obstetrícia no Rio de Janeiro, em que profissionais de saúde mencionaram uma suposta melhor adequação da pelve das mulheres pretas para parir, fato que justificaria a não utilização de analgesia.
Os achados deste estudo indicam que, além dos eventos no entorno mais imediato do parto, as desigualdades segundo raça/cor se estendem ao longo do processo mais amplo da gravidez. Mulheres pretas e pardas, além de um pré-natal com menor número de consultas e exames, vinculam-se menos à maternidade para o parto e recebem menos orientações, o que resulta em maior peregrinação para parir. Há impactos também sobre a garantia do direito da mulher ao acompanhante por ocasião do parto, que foi mais violado entre pretas e pardas do que entre brancas, mantido o gradiente de cor. Embora o direito ao acompanhante de livre escolha da gestante seja garantido pela Lei nº 11.10837, na pesquisa Nascer no Brasil se verificou que 25% das mulheres ainda ficaram sem acompanhantes durante toda a internação para o parto 38. Por várias razões, principalmente a inadequação da ambiência das maternidades para garantir esse direito para todas, ocorre algum tipo de seleção no momento da admissão para o parto. Aquelas que são informadas, conhecedoras dos seus direitos, que fizeram a vinculação durante o pré-natal, que têm relações de parentesco ou amizade com algum profissional de saúde nessa maternidade, podem levar vantagem. Diante dos dados dessa pesquisa, não seria descabido pensar que as pretas e pardas teriam menor chance de serem contempladas. A solidão na internação para o parto se associou com o relato de maior maltrato nos serviços de saúde, pior relação com os profissionais e menor satisfação com a atendimento recebido 39.
As desigualdades no acesso e no processo do cuidado, segundo Donabedian 39, têm origens distintas. O primeiro, está relacionado à estrutura dos serviços de saúde, como por exemplo, disponibilidade de recursos humanos e de equipamentos, acessibilidade geográfica, oferta dos serviços e aceitabilidade ou adesão ao tratamento; o segundo abrange principalmente as atividades desenvolvidas pelos profissionais de saúde, relacionando-se diretamente com a qualidade e equidade da atenção ofertada. Essas definições podem ajudar a identificar melhor as áreas críticas para redução dessas diferenças raciais observadas. Como é amplamente reconhecido na literatura sobre exposição à discriminação racial, os efeitos e consequências para indivíduos e coletividades podem ser longos e duradouros, ou mesmo permanentes. No campo da saúde, experiências de exposição continuada à discriminação racial podem gerar altos níveis de estresse físico e psicossocial e contribuir para a adoção de comportamentos inadequados, baixa adesão a tratamento e mesmo adoecimento 40,41. Dados brasileiros apontam maior prevalência de depressão pós-parto em mulheres de cor da pele preta, mesmo após o controle de fatores de confusão como características socioeconômicas, além de desfechos negativos nos recém-nascidos 7.
No plano internacional, com destaque para a produção norte-americana, que enfoca particularmente as diferenças entre brancos e afrodescendentes, nota-se um crescimento das investigações sobre a ocorrência de discriminação racial nos serviços de saúde, incluindo as dimensões institucional, interpessoal e de internalização das experiências discriminatórias 33. Uma das dificuldades enfrentadas nessa linha de investigação é a disponibilidade de instrumentos para aferir a ocorrência de discriminação 42,43. No Brasil, a despeito do crescimento da literatura sobre a temática, ainda predominam os estudos de natureza descritiva, raramente voltados à aferição de discriminação racial nos serviços de saúde e/ou análise da percepção dos usuários 44.
Conforme tem sido destacado por diversos autores, é importante reconhecer o forte componente de intersectionality envolvido nas experiências de discriminação, nas quais atributos de raça/cor se associam e potencializam dimensões relacionadas à condição socioeconômica e gênero, entre outras 45,46. Em dois estudos brasileiros com amostra de abrangência nacional, realizados em 2003 e 2013, os principais motivos apontados para a percepção de discriminação nos serviços de saúde foram a pobreza e a classe social 47,48. A referência explícita à raça/cor foi bem menor, ocupando o quinto lugar nos dois estudos, o que se alinha com outras análises sobre as percepções sociais acerca das relações entre raça/cor e saúde no Brasil 49. Vale salientar que Boccolini et al. 48 mostraram que, embora as mulheres não relatassem a questão racial como motivo maior de discriminação, na análise multivariada foram as mulheres de cor preta que mais identificaram a discriminação, por mais que a atribuíssem a outros motivos que não somente a raça/cor.
A diferença verificada na satisfação com o atendimento recebido durante a internação para o parto entre as mulheres brancas, pardas e pretas não foi estatisticamente significativa. Uma possível explicação seria que essa satisfação sofra influência de outros fatores além dos já referidos, como por exemplo, ter desejado a gravidez atual e desfechos negativos no recém-nascido (prematuridade, óbito fetal, má formação congênita, óbito neonatal e internação em UTI neonatal) não estudados no presente artigo. Em análise suplementar, as mulheres brancas e pardas que não desejaram a gravidez, ou a desejavam em outro momento, relataram menor satisfação com o atendimento recebido durante a internação que as que desejavam engravidar naquele momento, mesmo após a ponderação pelo escore de propensão (Tabela 5). Entretanto, este fato não foi encontrado entre as mulheres pretas, sugerindo que outros fatores seriam os responsáveis pela insatisfação com o atendimento recebido entre elas.
Tabela 5 Fatores associados à satisfação do atendimento para o parto em mulheres de acordo com a cor, após ponderação pelo escore de propensão.
* Estão inclusos má formação congênita, haver internação e óbito fetal ou neonatal do bebê.
No tocante aos estudos sobre desigualdades sobre raça/cor no Brasil, há uma dimensão metodológica desta pesquisa, no plano da análise dos dados, com implicações para além da dimensão da saúde especificamente. Ao longo da última década, os movimentos sociais enfatizam a centralidade do constructo “população negra”, o que em geral envolve a agregação das categorias preta e parda 4. Com a ampliação das políticas públicas com base no recorte raça/cor, há autores sugerindo que, em contraponto a comparações segundo as categorias, a junção pode resultar em interpretações que subestimem padrões de desigualdades 50,51. Nesse sentido, os achados da presente investigação são ilustrativos quanto à importância de análises as mais desagregadas possíveis. Por exemplo, a associação de raça/cor e analgesia se manifestou na comparação entre as mulheres pretas e brancas, mas não teria se explicitado caso os estratos de comparação fossem mulheres negras vs. brancas. Portanto, na operacionalização das categorias analíticas de raça/cor, tanto para fins da coleta quanto para a análise dos dados, é importante explorar as associações nos diversos estratos, sem o uso a priori de agrupamentos pré-definidos, por mais centrais que sejam de um ponto de vista sociopolítico.
Este estudo possui diversos pontos fortes. Primeiramente, foi o primeiro estudo nacional com dados primários sobre parto e nascimento, oriundos de em uma amostra representativa das parturientes do ano de 2011, abrangendo todos os estados brasileiros. Segundamente, os dados relativos aos procedimentos médicos foram coletados nos prontuários hospitalares, aumentando a validade interna dos dados. Por último, foi utilizada a técnica de pareamento pelos escores de propensão, uma ferramenta de análise que possibilita um pareamento minucioso entre os grupos sob comparação, o que os torna muito semelhantes, exceto quanto à variável sob interesse (no caso deste estudo, a classificação de raça/cor). É uma modalidade de análise que permite um ajustamento fino dos fatores de confusão e que tem sido utilizada em estudos sobre desigualdades de raça/cor, não somente no campo dos determinantes sociais e da atenção à saúde, como em outras dimensões da vida social (educação, justiça, entre outras) 24,52.
A presente investigação tem limitações que merecem ser destacadas. Uma delas é que o estudo Nascer no Brasil não foi planejado com objetivo de investigar especificamente os atores e os mecanismos envolvidos na expressão do racismo nos serviços de saúde voltados ao pré-natal e o parto no país. Por essa razão, aspectos como a utilização de escala para mensuração de discriminação, bem como a realização de pesquisa qualitativa voltada à questão da raça/cor, não foram contemplados. Há de se reconhecer também que, além da autoclassificação de raça/cor, seria importante ter informações acerca de classificação pela perspectiva dos profissionais de saúde (heteroclassificação) de que partiram os atos que resultaram nas desigualdades observadas. Há estudos recentes realizados no Brasil que apontam para diferenças importantes, no plano individual, ao se comparar auto e heteroclassificação, com destaque para a categoria parda 53,54. Por fim, a despeito da abrangência da pesquisa, não foram contemplados alguns segmentos da população, como é o caso das indígenas, reconhecidamente em situação de vulnerabilidade em termos de condições de saúde e de situação socioeconômica de uma maneira geral 55.
A melhoria da qualidade da atenção à saúde implica eliminação de iniquidades raciais. Como visto neste estudo, tais componentes são inseparáveis. As disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto contribuem para as disparidades nos indicadores finais da saúde. O sistema de saúde brasileiro tem como princípios a universalidade, integralidade e a participação social 56. Reconhece-se que os determinantes maiores dessas iniquidades estão na sociedade e não podem ser corrigidos por um esforço isolado do setor saúde, mas se sugere que o atual quadro seja modificado, utilizando-se como uma das ferramentas a inclusão do item equidade racial na atenção à saúde como indicador de qualidade dos serviços para acreditação hospitalar, conforme recomendado por Fiscella et al. 32. Em paralelo, é fundamental ampliar o debate e a conscientização com propósito de identificação e enfrentamento das práticas que potencialmente resultam nas iniquidades verificadas, o que necessariamente passará por medidas educativas voltadas aos profissionais dos serviços de saúde.