versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.7 Rio de Janeiro jul. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017227.02032017
As concepções acerca do desenvolvimento das sociedades e os modos como alcançá-lo presidem, por óbvio, as práticas da cooperação para o desenvolvimento. Ações de cooperação internacional em saúde são formuladas e praticadas sob a moldura dessas mesmas concepções. Ao longo do tempo, alterações quanto às formas pelas quais se realizava a cooperação em saúde guardam relação com as mudanças de curso na trajetória histórica das concepções acerca do próprio desenvolvimento.
Este ensaio examina, em perspectiva histórica, os valores e as prescrições do desenvolvimento e da cooperação, nos efervescentes anos setenta, buscando lançar novas luzes sobre o processo que, no âmbito da saúde internacional, culmina na celebração, em 1978, em Alma-Ata, na então União Soviética, da Atenção Primária de Saúde (APS) como estratégia rumo à Saúde para Todos nos Anos 2000 (SPT2000)1. A gênese da APS e da conferencia de Alma-Ata já foram examinadas por partícipes diretos dos eventos e historiadores2-5. Nosso foco, porém, está concentrado no percurso das ideias acerca do desenvolvimento e da cooperação internacional e nas relações destas com o ideário da APS. Na primeira parte, discutimos os principais componentes, as expectativas e as decepções da Primeira Década do Desenvolvimento das Nações Unidas, transcorrida ao longo dos anos 1960. Na segunda seção, procurou-se examinar o conteúdo de três formulações sobre o desenvolvimento e sua práticas - a Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI); o Informe Dag Hammarskjöld (IDH) e a Abordagem das Necessidades Humanas Básicas (NHB) – presentes nos debates da década de 1970. Na terceira parte, as ideias e as prescrições constantes dessas formulações foram cotejadas com os enunciados dos documentos oficiais da OMS e em discursos do seu diretor geral, Halfdan Mahler. Como se verá, os documentos dos fóruns do desenvolvimento e aqueles da saúde internacional compartilham um largo espectro de termos e noções, assim como boa parte das expectativas de mudança e das tensões presentes nos últimos anos da época clássica do desenvolvimento do pós-guerra.
Em setembro de 1961, John Kennedy exortou as nações mais afluentes a empreenderem um esforço comum para tornar a década que se iniciava um período orientado ao desenvolvimento. A XVI Assembleia Geral da ONU acolheu a iniciativa, dando início à Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Considerando o diagnóstico de que a distância entre os países desenvolvidos e aqueles menos afortunados continuava a aumentar desde o pós-segunda guerra, foram propostas medidas para, em tese, promover as exportações dos países menos desenvolvidos; garantir o usufruto equânime dos ganhos obtidos pela exploração de produtos primários desses países; e estimular o fluxo de recursos públicos e privados para as suas economias. A ajuda internacional deveria atingir 1% do produto interno bruto de cada país em melhor posição e imaginava-se que recursos não mais dispendidos na corrida armamentista poderiam convergir para o desenvolvimento. As políticas sociais foram contempladas quando se tratou de recomendar medidas que “acelerassem a erradicação do analfabetismo, da fome e das enfermidades”, e permitissem aperfeiçoar a educação geral e a formação técnica6-8. Merece registro que esta resolução foi precedida pelo anúncio e formalização, em agosto de 1961, da Aliança para o Progresso e são muitos os pontos em comum entre as duas iniciativas9,10. As políticas sociais já eram temas presentes no debate sobre o desenvolvimento no pós-segunda guerra desde o final da década de 19508,11-15. Entretanto, somente uma década mais tarde as preocupações com esta relação seriam retomadas com maior alcance. No âmbito pan-americano, por exemplo, foi a partir da celebração a Ata de Bogotá, em 1958, e da Aliança para o Progresso e do seu Plano de Decenal de Saúde Pública, em 1961, que os temas da saúde passaram a frequentar com alguma densidade o debate interamericano9.
Os resultados da primeira década do desenvolvimento foram frustrantes. Um sentimento generalizado de ineficácia invadia os espíritos e abria-se espaço para uma crítica ao próprio modelo de desenvolvimento que se pretendia reproduzir. A pretensão – pelo menos retórica – da Aliança para o Progresso de promover um fortalecimento da democracia nos países latino-americanos frustrou-se igualmente. Esta foi suplantada pela conspiração reacionária e a intervenção direta. Já em 1964, os fuzileiros navais dos EUA desembarcaram na República Dominicana para derrubar um governo que não seguia as políticas de Washington, na primeira intervenção aberta na região em cinquenta anos. Diante desse quadro de decepções, as concepções alternativas tendiam a ganhar uma mais franca circulação nos meios intelectuais e políticos5,8,16.
No final dos anos 1960, a crítica das práticas da cooperação internacional culmina na definição dos termos de uma Estratégia Internacional para o Segundo Decênio do Desenvolvimento, da ONU, que retoma vários dos temas econômicos tradicionais, mas introduzindo preocupações no tocante ao acelerado crescimento populacional e recomendações visando uma maior equidade na distribuição dos benefícios do desenvolvimento. A pauta de temas sociais incluía a melhoria do bem estar geral; a distribuição mais equitativa da renda; a elevação do nível de emprego; melhorias na educação, saúde, nutrição e de proteção do ambiente17.
As formas de implementar de fato essas orientações seriam objeto de um amplo debate no decorrer dos anos 1970. Para efeito de contextualização da agenda da saúde internacional, convém examinar em maior detalhe três conjuntos de formulações que, entrelaçados entre si, ressoavam as inquietações, as frustrações e as críticas que repercutiram na arena institucional do desenvolvimento ao longo da década.
O primeiro processo a ser comentado tem como marco a formalização, em 1974, no âmbito das Nações Unidas, das diretivas por uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). Sua origem remonta à instituição do Movimento dos Países não Alinhados, formalizado em 1961, e à formação do Grupo dos 77, no âmbito da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), de 196418. Entre 1962 e 1971 a ONU foi dirigida pela primeira vez por um não europeu e o birmanês U Thant promoveu o ingresso dos novos Estados recentemente independentes da Ásia e da África, o que alterou sensivelmente o balanço de poder nas Assembleias Gerais. No contexto mais imediato, a NOEI conecta-se à degradação do cenário econômico internacional como consequência da internacionalização da crise do déficit em transações correntes dos EUA e o seu rompimento unilateral dos acordos de Bretton Woods, em 1971. Esses eventos, acompanhados da derrota americana no Vietnam e da emergência da primeira crise do petróleo, ambos de 1973, eram então percebidos como parte de um processo de declínio da hegemonia dos EUA19. Nesse ambiente de crise, países do chamado terceiro mundo, liderados pelo presidente da Argélia, Houari Boumedine, pleitearam a realização de uma sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas visando debater a questão das matérias-primas e as relações entre países industrializados e em desenvolvimento. A VI Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU, de 1974, aprovou uma declaração e um programa de ação no sentido do estabelecimento do que seria a Nova Ordem Econômica Internacional8,20,21.
Mais uma vez, reconhecia-se que os benefícios do avanço econômico e do progresso tecnológico alcançavam desigualmente a maioria dos países. Entendia-se que essa desigualdade não mais correspondia à estatura política que os países do terceiro mundo haviam alcançado, o que tornava obsoleta a ordem internacional estabelecida ao final da Segunda Guerra. Em um cenário de crescente interdependência, foram apesentadas medidas que pretendiam o estabelecimento de um novo regime internacional no que tange às trocas econômicas, com impactos positivos nos ambientes políticos e sociais8, com o desenvolvimento econômico no chamado mundo periférico, a partir dos princípios de equidade entre países, igualdade com soberania, interdependência, interesse comum e cooperação. Considerou-se legítima a associação dos países produtores para a negociação de volumes e preços de matérias primas, chancelando assim a recente elevação coordenada de preços do petróleo. Com um voto discordante dos EUA, a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados afirmou a soberania plena de cada Estado no que concerne aos recursos existentes em seu território, bem como à regulação das atividades de companhias estrangeiras8,20,22.
A NOEI conferia atenção central a temas econômicos tais como os preços relativos dos bens primários e a industrialização, essa última concebida como uma estratégia central para as elites e os dirigentes dos países em desenvolvimento, especialmente daqueles com maior potencial de formação de um mercado doméstico e de competitividade no comércio exterior23,24. Outra das estratégias preconizadas, nos marcos da NOEI, foi a Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD), com o intuito de aproveitar as experiências acumuladas nos países; impulsionar a sua integração e “autossuficiência em matéria econômica, científica e tecnológica” e o desenvolvimento endógeno de tecnologias adaptadas ao contexto local25.
Apesar das suas raízes terceiro-mundistas, é um equívoco considerar que os sentidos de uma imaginada nova ordem e o próprio uso da expressão tenham sido monopólio dos países em desenvolvimento e de suas lideranças. A expressão e suas variações assumiram uma multiplicidade de significados e o seu sentido estratégico e prático foi objeto de disputas consideráveis26. Em 1975, quando da realização de uma nova sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, uma certa opinião pública internacional era quase por inteiro partidária de uma nova ordem e da necessidade de esforços comuns em sua direção. Mesmo a diplomacia norte-americana, sob a batuta de conservadores como Nixon e Kissinger, a princípio reativa, mostrou-se disposta à negociação. Contudo, apesar desse consenso imaginado e festejado, permaneciam em aberto quais eram o significado prático da NOEI e as medidas objetivas a serem encaminhadas. Desse modo, a NOEI era, principalmente, uma arena de disputas27.
O segundo conjunto de formulações críticas aos modelos de desenvolvimento é fruto de uma iniciativa da Fundação Hammarskjöld, sediada em Estocolmo, Suécia, e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Um amplo grupo de intelectuais, de todos os quadrantes do globo, foi mobilizado numa tentativa de fornecer um novo patamar conceitual e uma nova agenda, como um subsídio independente a ser apresentado à Assembleia Geral da ONU, em setembro de 1975. O relatório final da iniciativa explicitou que sua preparação ocorrera em decorrência de “uma profunda crise do desenvolvimento”, reconhecia a importância da Estratégia para o Desenvolvimento e os primeiros documentos da NOEI, mas assumiu um posicionamento assumidamente crítico28.
O documento apoiava-se também nos resultados de um conjunto de conferências internacionais temáticas. Foram enumeradas as conferencias sobre Meio Ambiente (Estocolmo, 1972), Matérias Primas e Desenvolvimento (Nova Iorque, 1974), População (Bucareste, 1974), Alimentos (Roma, 1974), Direito dos Mares (Caracas, 1974 e Genebra, 1975), Indústria (Lima, 1975) e, numa citação, a Conferencia Mundial sobre o Emprego, então em preparação. Esses encontros internacionais e outros não enumerados podem ser considerados como conformando um ciclo de conferências que se prolongaria até a proximidade do final da década de 1970 e alguns autores8,29 referem esses eventos como sendo componentes de uma espécie de agenda ampliada da NOEI. Sem compromisso com essa classificação, este ensaio procura observar a Conferencia Internacional Sobre Atenção Primária de Saúde, em Alma-Ata, 1978, como uma das tardias desse ciclo.
Na esteira desse debate, o Informe Dag Hammarskjöld definiu o desenvolvimento como um processo bem mais complexo que deveria estar profunda e firmemente ancorado na estrutura das formações sociais. Além disso, não haveria uma formula única para promover e alcançar o desenvolvimento, embora se recomendasse uma ênfase especial para com os contingentes populacionais mais empobrecidos. As iniciativas a serem implementadas junto a esses grupos deveriam se assentar sobre recursos efetivamente ali disponíveis e de forma sustentada8. Afinado com as teorias da dependência, o relatório diagnosticava que os problemas presentes tinham raiz nas estruturas de exploração norte-sul e na cumplicidade das elites locais do terceiro mundo e que situações de iniquidade prevaleciam também nos países já industrializados. Em termos similares àqueles da NOEI, propôs-se o fortalecimento da autossuficiência coletiva dos países do terceiro mundo e sua ‘participação seletiva’ nos circuitos internacionais de comércio e finanças, segundo os interesses de cada nação8,28.
O relatório registrou também preocupações ecológicas, ao apontar para os limites a serem impostos ao desenvolvimento. Nesse sentido, recomendava a mudança de estilos de vida nos países desenvolvidos e a adoção de um regime internacional econômica, social e ecologicamente mais equânime. Entre as iniciativas preconizadas estavam, por exemplo, uma maior parcimônia no consumo de alimentos e energia baseada em petróleo; e uma maior vida útil dos bens duráveis. Assim, a problemática do desenvolvimento deixava de ser uma questão exclusivamente do terceiro mundo, passando também a dizer respeito aos modelos adotados nos países centrais e à sua difusão não crítica mundo afora. Adicionalmente, o relatório propôs uma revisão do sistema das Nações Unidas, recomendando modos menos centralizados de condução das suas agências e a constituição de um fundo de recursos financeiros assentado na reconversão, mais uma vez, de parte dos gastos até então despendidos na corrida armamentista8,28.
Em um capítulo em que busca definir uma moldura conceitual para um modelo de desenvolvimento alternativo, o informe discute brevemente áreas como alimentação, habitação, saúde e educação. Quanto à saúde, registrou que era geralmente aceito que as condições de saúde dependiam da alimentação, da moradia e das medidas preventivas, sem que, todavia, “as implicações práticas dessa assertiva ainda não tivessem sido estabelecidas”28. A satisfação de necessidades básicas de saúde implicaria medidas como a realocação de recursos, privilegiando as ações preventivas; a integração dos serviços de saúde aos “serviços do desenvolvimento como um todo”28; a adaptação das ações de saúde às circunstâncias específicas, recorrendo a uma utilização máxima dos recursos disponíveis localmente. Um serviço público orientado às necessidades básicas deveria apoiar-se em uma descentralização radical que favorecesse a participação das comunidades e que precisaria estar apoiada em uma “rede de trabalhadores de saúde” e em unidades locais responsáveis pela maior parte do cuidado. A pesquisa científica em saúde deveria ter por objeto problemas de todos os níveis, segundo a especificidade de cada sociedade, “do centro de saúde local ao hospital universitário”. Noções bastante similares quanto às relações entre saúde e necessidades básicas eram então também defendidas não só na OMS, mas em fóruns como a UNICEF, em particular nesse caso pelo diplomata americano Henry Labouisse, então o seu diretor executivo (1965-1979)28.
No que concerne à abordagem das necessidades humanas básicas (NHB), a aparição do conceito, nesse contexto, remonta a um discurso de Robert McNamara, em 1972, como presidente do Banco Mundial. Naquela ocasião a retórica de McNamara abordava com veemência as precárias condições de vidas das populações empobrecidas e sua pretensão era conciliar crescimento econômico com justiça social. O desafio consistia, na opinião desse dirigente, em aumentar o volume da ajuda internacional, mas garantir que esses recursos chegassem de fato aos mais desassistidos. Como contrapartida e pré-condição, os governos dos países tomadores de recursos deveriam estabelecer metas precisas no que concerne à melhoria das condições de nutrição, habitação, saúde, alfabetização e emprego. A proposta tinha por fundamento a ideia de mudar para conservar e que somente a partir da obtenção de algumas condições mínimas seria possível aos indivíduos e famílias adentrarem ao mundo da produção e consumo econômicos. A partir dessa abordagem, o Banco Mundial tornou-se em alguma medida mais interessado em promover alterações nas condições básicas de vida, ainda que permanecesse com uma carteira em sua maior parte orientada para o financiamento de grandes de projetos de infraestrutura8,16. Essas concepções fundamentaram o desenvolvimento de estratégias orientadas para a ‘pobreza absoluta’, para ‘grupos alvo’ e de “desenvolvimento rural integrado”, presentes na pauta do Banco Mundial ao longo da década de 197016.
Em um contexto institucional em parte distinto, e com outras tonalidades, a ideia de ênfase sobre os mais empobrecidos esteve presente nos debates internacionais sobre políticas de emprego e renda desde pelo menos o final dos anos 196016. Em meados da década de 1970, mais precisamente em 1976, a Organização Internacional do Trabalho, quando da realização da Conferência Mundial sobre Emprego, adotou as NHB como conceito organizador, visando alternativas para o desenvolvimento baseadas no uso intensivo do trabalho. Reconhecidamente, como assinala Pereira16 e indicam os registros da época30, as alternativas baseadas em trabalho intensivo e voltadas para o atendimento de necessidades básicas estavam então em sintonia com a recente legislação dos EUA sobre a política de cooperação bilateral, com as diretivas do Banco Mundial e com os posicionamentos de doadores europeus, ainda que a delegação dos EUA se mantivesse reticente durante a conferência16.
A abordagem das NHB, segundo a OIT, contemplava duas dimensões: ela incluía um requerimento mínimo para as famílias no que tange à alimentação, vestuário, abrigo e moradia, mas abarcava igualmente serviços essenciais no tocante à água de qualidade e esgotamento sanitário, transporte público, saúde, educação e instalações culturais30. Tal proposta era bem recebida por círculos bastante amplos devido à sua anunciada preocupação com os mais pobres. Contudo, a maior parte da atenção dos círculos de poder no terceiro mundo permanecia concentrada nas propostas em que prevalecia a ideia de uma necessária modificação das relações de troca e da divisão do trabalho entre o Norte e o Sul e ficava claramente preservada uma absoluta soberania dos países no que concerne aos seus assuntos internos. Todavia, as NHB recebiam atenção considerável nos círculos internacionais do desenvolvimento, ainda que com diferentes matizes. O seu viés crítico, dirigido à distribuição de recursos no interior dos países, colocava em pauta as políticas domésticas e os dirigentes dos países em desenvolvimento temiam que, pela via de uma negociação desigual, agentes financiadores da ajuda pudessem intervir sobre temas nacionais. Receavam também que a ênfase nos mais pobres terminasse por restringir o fluxo de investimentos para os países de PIB médio, diminuir o apoio à industrialização e a restringir a transferência de tecnologias mais sofisticadas23. Essa tensão transpareceu fortemente nos debates da conferência e ressalvas foram incluídas no documento final visando à preservação da mais ampla soberania dos países31.
Todavia, a ênfase na pobreza absoluta, presente nos documentos da OIT e nas proposições do Banco Mundial, terminou por resultar, como assinala Pereira16, num deslocamento relativo do tema da equidade na retórica crítica do desenvolvimento. Desse modo, a própria desigualdade da distribuição da riqueza no conjunto das classes sociais torna-se de alguma forma menos audível e, no limite, a mudança social poderia ser substituída pela ideia de socorro humanitário aos mais desfavorecidos. Quando eclodiu a crise da dívida dos países do terceiro mundo, nos primeiros anos oitenta; quando a “ordem internacional da soberania” é substituída pela “ordem internacional liberal”7 e o ajuste macroeconômico passa a ser imposto como precondição para a obtenção do socorro financeiro internacional; quando se aprofunda a desigualdade e o desespero dos mais pobres, a ideia de ‘ajuste com face humana’ seria apenas um espectro da esperança que alguns dos espíritos mais progressistas depositaram nas possibilidades de desenvolvimento com justiça social e numa nova ordem internacional ao longo dos anos 1970.
Os componentes essenciais da APS, tal como estabelecidos pela conferencia de Alma-Ata, são bastante conhecidos dos leitores. Eles podem ser relembrados com facilidade32 e não precisam ser elencados aqui. Mais importante para os nossos propósitos é examinar as possíveis conexões entre os valores e os princípios que os presidem e os debates acerca do desenvolvimento.
A OMS, sob a direção de Mahler, manifestou desde a primeira hora a sua aproximação às formulações críticas em relação ao desenvolvimento e encontrou na UNICEF de Labouisse um parceiro na promoção dessas ideias. O Comitê Executivo da OMS, em 1973, entendia que a saúde em sua dimensão internacional estava às vésperas de “uma grave crise” que ameaçava inclusive a estabilidade social nos países33. Uma das suas causas seria a “incapacidade dos serviços em eliminar as importantes diferenças existentes quanto à situação de saúde entre os diferentes países e no interior de um mesmo país”33. Mahler não economizava enunciados para assinalar seu compromisso com uma mudança que considerava radical na organização e nas práticas da saúde. Assim, na sua formulação conhecida: “muitas transformações sociais e revoluções ocorrem porque as estruturas sociais estão desmoronando. Há sinais de que as estruturas científicas e técnicas da saúde pública também estão desabando”5.
Mahler e a OMS foram igualmente explícitos ao vincular SPT 2000 e Alma-Ata às iniciativas de maior tonalidade reformista com relação ao desenvolvimento e às práticas da cooperação. Em várias oportunidades, inclusive na Declaração de Alma-Ata, sinaliza-se a sua pertinência com relação às orientações rumo à NOEI32. Esta adesão específica, contudo, não se faz sem alguma dificuldade. Os documentos da NOEI concentram-se, como indicamos, quase que exclusivamente sobre os aspectos econômicos das relações entre os Estados Nacionais. Eles concedem pouquíssima atenção aos temas sociais e, dessa forma, à saúde. Ao procurar explicitar o seu lugar nas iniciativas rumo a uma nova ordem, a OMS mobiliza principalmente a Estratégia Internacional para o Segundo Decênio do Desenvolvimento34. De caráter mais geral, aprovada em outubro de 1970, a Estratégia antecede as formulações da NOEI e atribui peso à dimensão social do desenvolvimento, a “todas as esferas da vida social”, inclusive quanto ao emprego, à educação, à saúde, à moradia e à ciência e tecnologia17. Neste sentido, tal como nas outras instâncias aqui comentadas, a OMS adere às formulações da NOEI procurando resgatar o que seria uma olvidada dimensão social. Em um discurso, Mahler assinala como sua obrigação apontar como a saúde poderia “se relacionar produtivamente com uma nova ordem econômica, ou, como eu prefiro dizer, nova ordem do desenvolvimento, nesse nosso mundo socialmente irracional”35. E, retomando um enunciado clássico da relação saúde-desenvolvimento, afirmava que já não se poderia fazer distinção importante entre o econômico e o social, uma vez que “... os meios para conseguir esse duplo desenvolvimento estão intimamente relacionados”32.
Outros pontos do ideário da SPT2000 e da APS guardam conexão com os preceitos originais da NOEI. Podemos mencionar aqui as ideias entretecidas de autossuficiência coletiva, de cooperação técnica entre países em desenvolvimento e de tecnologia apropriada. É esta última noção, por exemplo, que permite recomendar a adoção de soluções cientificamente embasadas, adaptadas às necessidades e sustentada preferencialmente por recursos e meios disponíveis localmente. Experiências desse tipo seriam especialmente recomendadas ao intercâmbio internacional nos marcos de uma cooperação técnica entre países em desenvolvimento, promovendo uma maior autonomia coletiva32. Registre-se que o Informe Dag Hammarskjöld, de 1975, como vimos, é também explicito ao recomendar iniciativas junto a grupos em maior fragilidade apoiadas nos recursos e meios efetivamente disponíveis de forma sustentada, uma linha argumentação cara a Alma-Ata.
Outros aspectos, contudo, importantes das formulações da OMS, tendem a afastá-la do ideário dos primeiros documentos da NOEI. Esta última diz respeito essencialmente às relações entre países ou entre blocos destes. A problematização da ausência de equidade na interação se concentra nas relações entre aquelas entidades. Na SPT2000 e principalmente em Alma-Ata, no entanto, as questões centrais estão colocadas para a organização nacional dos sistemas de saúde. As principais diretrizes e recomendações de Alma-Ata dizem respeito às políticas domésticas dos Estados Nacionais, à sua organização interna e à distribuição equitativa de recursos e meios nos seus espaços nacionais, entre as suas classes e grupos populacionais. Essa dimensão essencialmente nacional das diretrizes e recomendações da APS e o problema da equidade tornam Alma-Ata mais próxima das formulações tanto do Informe Dag Hammarskjöld, quanto das Necessidades Humanas Básicas. Nessas formulações, como vimos, a NOEI é criticada exatamente por pouco problematizar a distribuição doméstica de renda e recursos. E, mais além, colocam sob ataque as elites nacionais naquelas formações sociais especialmente marcadas pela desigualdade, retratadas como cúmplices e beneficiárias dos processos de exploração. Não poucas vezes Mahler, em seus pronunciamentos em defesa da APS, coloca as elites políticas e médicas tradicionais sob um foco crítico similar. Reiteradamente, assume uma atenção prioritária às populações sócio e economicamente marginais no meio rural e nas periferias urbanas do terceiro mundo, sem, no entanto, restringir o problema aos países em desenvolvimento ou aos grupos sociais mais vulneráveis. Sem retirar também a ênfase na importância diretiva do Estado Nacional como agente promotor da mudança36.
Assim, em seu percurso argumentativo de afirmação da pertinência dos temas da saúde como parte da agenda rumo a uma ‘nova ordem’, Mahler e a OMS acompanham a tendência mais geral do debate internacional de extravasar os limites estritamente econômicos dos primeiros enunciados da NOEI em direção a uma espécie de urgência do social e – de uma maneira nem sempre clara – em fazer da saúde internacional uma ferramenta para promover mudanças sociais. Importa sublinhar, no entanto, que essa premência do social assumiria diferentes intensidades, matizes e mesclas – tanto no debate mais geral sobre o desenvolvimento quanto na arena da saúde internacional – segundo os interesses e os posicionamentos político-ideológicos dos agentes. Das cores vivas da transformação social à retorica esmaecida das orientações pragmáticas de viés conservador, Mahler e a OMS tanto acompanhavam essa tendência, sem escapar das suas tensões, como informavam o conteúdo desses debates a partir da sua especificidade. A esse respeito, é digno de nota que no Informe Dag Hammarskjöld, como vimos, os comentários sobre saúde guardam direta similaridade com os temas e as orientações que se tornavam então mais presentes nos debates da saúde internacional.
A preparação da conferência e a recepção da Declaração de Alma-Ata estiveram longe de serem harmoniosas2,3,5. Em poucos anos, por exemplo, as críticas levariam a UNICEF a esposar a proposta de uma Atenção Primaria Seletiva, após assunção de James P. Grant como diretor executivo do fundo, em 19803. A Atenção Primária Seletiva, como se sabe, foi introduzida no debate por iniciativa da Fundação Rockefeller, com concurso de outras agencias internacionais, como sendo uma alternativa de caráter pretensamente provisório, baseada em análises de custo/efetividade, orientada a indicadores específicos e ao controle de poucos agravos selecionados5. A esse respeito é importante observar que, ainda em 1978, poucos dias depois da realização da conferência, Davidson Gwatkin, que viria a ser o coordenador do International Health Policy Program, nos anos 90, com passagens pela UNICEF e pelo Banco Mundial, manifestou uma posição bastante cética com relação aos resultados finais de Alma-Ata. Em correspondência com dirigentes da Fundação Ford, Gwatkin – então trabalhando no Oversea Development Council, um influente think tank de Washington DC, financiado pelas fundações Rockefeller e Ford, dirigido por James Grant durante toda a década de 1970 – demonstrava preocupação com o otimismo idealizado de alguns membros da delegação americana e da recepção entusiasmada da conferência em alguns círculos naquele país. Sobretudo, reclamava a necessidade de estabelecimento de um maior rigor no processo de monitoramento e avaliação de iniciativas, na validação de estratégias e procedimentos, enfim na definição de um elenco de medidas com resultados quantificáveis e sujeitas a um permanente acompanhamento37.
Em boa medida, essas críticas tornam visíveis as formas pelas quais, no âmbito da saúde, se manifestavam posições igualmente presentes nos debates sobre o desenvolvimento nos anos 1970; sobre o conteúdo de uma pretendida Nova Ordem; sobre o lugar da atenção às necessidades básicas, orientada à pobreza, e as tensões entre um reformismo mais ou menos radical e abordagens de viés mais pragmático. Tal como a NOEI, a APS era também uma arena. Mahler, por exemplo, teria, segundo Socrates Litsios, se mantido reticente com relação a uma possível adesão às necessidades básicas. Ao fazê-lo, Mahler poderia estar lidando, a seu modo, com duas ordens de questões. A primeira, a própria resistência dos representantes de países do terceiro mundo com relação a possíveis interferências em seus assuntos internos e a uma menor importância relativa das pautas desenvolvimentistas tradicionais. Em segundo lugar, a eventualidade das abordagens das necessidades básicas e da pobreza absoluta, ao fim e ao cabo, poderem implicar em um estreitamento do alcance das transformações pretendidas pelo movimento que Mahler liderava. Por caminhos não lineares, de forma não prevista àquela altura, no contexto de uma profunda recessão econômica, com governos conservadores nos principais países industrializados e em muitos em desenvolvimento, pressionados a fazer cortes nos programas sociais, a nova ordem liberal efetivamente instalada a partir da década de 1980 daria razão a boa parte desses receios.
Na produção da saúde coletiva no Brasil, a Conferência de Alma-Ata é frequentemente tratada como uma espécie de evento fundador. Suas diretivas teriam dado, assim, a partir de então, orientação para uma série de iniciativas que buscavam modos inovadores de organizar os serviços e de realizar o cuidado em saúde. Neste ensaio, ao contrario, ela é observada como um evento da fase terminal do desenvolvimento do pós-segunda guerra em sua época clássica; do desenvolvimento, tal como concebido e praticado segundo a ‘ordem internacional da soberania’, que seria em seguida substituída pela nova ‘ordem internacional liberal’, ou neoliberal7. Procuramos inscrever e relacionar, as concepções da saúde internacional de finais dos anos 1970 com os debates sobre o desenvolvimento e a cooperação internacional que atravessaram a década. Estes últimos, informados pelos resultados pífios da Primeira Década do Desenvolvimento e por uma crise da ordem internacional vigente, resultaram na proposição de uma revisão dos seus termos econômicos e que, quase imediatamente, passou a ser polvilhada de preocupações orientadas para a questão ambiental, a distribuição da riqueza no interior das formações sociais, para o emprego e os ingressos dos grupos populacionais mais desfavorecidos. A profundidade e o foco das reformas propostas variavam. Em comum, os ingredientes que as tornavam pertinentes à ordem da soberania: um sentido generalizado de necessidade da reforma da ordem vigente; o papel dos Estados Nacionais como instâncias fundamentais na direção do processo de mudança; o planejamento integrado das ações de desenvolvimento econômico e social; a crença numa racionalidade civilizatória e na possibilidade de um arranjo solidário entre os Estados e entre as classes sociais.
Os documentos da saúde internacional e os pronunciamentos de Mahler revelam tanto uma sintonia, quanto o desejo de inclusão da agenda setorial no debate mais geral. Vários dos componentes acima mencionados se fizeram presentes, em sua especificidade, nos enunciados da saúde. Da mesma forma, outros temas comuns tais como a transferência tecnológica e da adequação desta às situações particulares; a autossuficiência; a mobilização das populações nacionais e das comunidades; o lugar dos saberes tradicionais; ou ainda, a formação de contingentes profissionais capazes de planejar, estruturar, gerenciar e ofertar novos modos de cuidar.
As duas esferas, do desenvolvimento e da saúde, imbricadas entre si, constituíam arenas de negociação conflituosas, ainda que a enunciação dos consensos possíveis ao final de cada evento ou processo de formulação pudesse sugerir a ideia de harmonia e pensamento comum.
No final da década de 1970 e no decorrer dos anos oitenta, com a crise geral do capitalismo e a sua publicização como crise fiscal dos Estados Nacionais, a possibilidade de uma racionalidade solidária entre estados e entre as classes foi radicalmente substituída pela lógica do mercado. Movimentos em torno da realização da Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, que culminou na assinatura da Carta de Ottawa, de 1984, iriam reivindicar as ideias holísticas de Alma Ata. Todavia, o ímpeto reformista caraterístico dos debates internacionais da década de 1970 já era coisa do passado e o sentido das mudanças havia se invertido. Nesse novo ambiente, a atenção primária de saúde, como originalmente concebida, em sua vertente mais generosa e radical, seria bandeira e trincheira de resistência.