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A desflorestação no Mato Grosso no livro Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, do médico João Severiano da Fonseca

A desflorestação no Mato Grosso no livro Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, do médico João Severiano da Fonseca

Autores:

Mário Roberto Ferraro,
Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.24 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017000200010

Abstract

This presents reflections on scientific production issued by the Commission for the Demarcation of the Empire’s Border Limits with Bolivia, with a focus on the environmental destruction of Mato Grosso state, as reported in João Severiano da Fonseca’s book, Journey around Brazil 1875-1878. Fonseca reported severe deforestation on the banks of the river Paraguay and advocated for protectionist measures from the state government. He set out a vision for Mato Grosso’s development that involved better use of the state’s natural resources, raw materials exports, and regional industrialization support. The methodology created an interface between environmental history and history of the sciences.

Key words: deforestation; environmental history; history of the sciences; river Paraguay (MT); João Severiano da Fonseca (1836-1897)

Este artigo aborda o desmatamento nas margens do rio Paraguai na então província do Mato Grosso, que compreendia aproximadamente os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia, na década de 1870, tendo como fonte histórica o livro Viagem ao Redor do Brasil 1875-1878 , do coronel João Severiano da Fonseca, 1 publicado em 1880 (v.1) e 1881 (v.2), por meio da história ambiental e da história das ciências.

O desmatamento infrene e a consequente defesa das florestas não eram assunto novo na literatura brasileira ou sobre o Brasil, conforme demonstrou José Augusto Pádua (2002) no seu livro Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888) . Um livro da magnitude de Viagem ao Redor do Brasil , entretanto, passou despercebido a Pádua, o qual, prudentemente, havia ressaltado ser impossível trabalhar todos os autores que, de alguma forma, atuaram em favor do patrimônio natural brasileiro. As dificuldades presentes nos levantamentos exaustivos como os de Pádua são duas: a primeira é sobre quais autores privilegiar nas análises e quais deixar de lado, uma vez que são muitos; a segunda dificuldade reside no fato de que algum autor importante sempre deixa de ser notado. Enfim, este artigo pretende, guardadas as devidas proporções, complementar o trabalho de Pádua.

Foram aqui privilegiados os estudos das relações entre ambiente e sociedade, pois, de acordo José Augusto Drummond (1991 , p.7), esse deve ser o critério principal na seleção das fontes históricas. Ele aponta como exemplo de fonte a ser usada os relatos dos “viajantes estrangeiros (diplomatas, militares, missionários etc.) [que] observam e narram fatos sociais ‘rotineiros’ que nem sempre aparecem nos registros dos locais”. Aponta também os trabalhos dos naturalistas como importantes fontes para os historiadores da natureza:

Já os viajantes naturalistas, também estrangeiros, principalmente os de meados do século XIX em diante, têm mais a dizer sobre os aspectos naturais do que sobre as sociedades. Seus olhos eram treinados para identificar novas espécies animais e vegetais, independentemente de sua utilidade econômica, mas prestavam atenção nos recursos locais usados pelos europeus, escravos, índios e mestiços residentes em lugares distantes ( Drummond, 1991 , p.7).

Essa asserção de Drummond se apresentou, em princípio, como uma dificuldade: sendo Fonseca brasileiro, porém, médico por formação, com fortes conhecimentos sobre a natureza, 2 militar em serviço e chefe da expedição que realizou longa viagem para demarcação dos limites do Brasil com a Bolívia, poderia seu relato ser considerado fonte histórica para análise da preservação ambiental no país?

A resposta foi positiva, pois, mesmo sendo um intelectual brasileiro, sua obra pode se constituir numa importante fonte para a história ambiental do Brasil, devido à agudeza e à amplitude de suas observações sobre o meio ambiente em relação com a sociedade – e esse é o principal critério, e não a nacionalidade do autor. Seu livro inspirou estudos de história política, regional, da medicina e das doenças, etnografia e linguística. Enfim, é um manancial pouco aproveitado do ponto de vista da história das ciências e, menos ainda, da história ambiental.

O excerto de Drummond mencionado lança uma questão relevante: por que, ao se referir primeiro aos viajantes (os diplomatas, militares, missionários etc.) e, em seguida, aos naturalistas, Drummond apõe o adjetivo “estrangeiro”? Estaria a abrir mão dos viajantes e naturalistas brasileiros? Certamente não, pois em outras obras suas ( Franco, Drummond, 2004 ) os cientistas brasileiros são estudados, mas esse é um detalhe que pode revelar o quanto ainda falta para que se estabeleça um diálogo mais amplo entre a história ambiental e a história das ciências. Uma iniciativa nessa direção foi o dossiê “História, ciência, natureza”, publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas , em 2010, que indica, já em sua apresentação:

Particularmente relevantes, pela própria situação geográfica do Brasil, assim como por sua história, são as inter-relações entre política, investigação técnico-científica e exploração/interação do/com o mundo natural. A capa inspiradora deste número foi escolhida entre as inúmeras imagens produzidas pela primeira grande expedição de exploração empreendida, grosso modo, na região amazônica, patrocinada pela Coroa portuguesa e sob o comando do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815). Parte de um projeto maior concebido por Domenico Vandelli (1735-1816) para produzir uma vasta ‘História Natural das Colônias’, que envolveu diversas outras expedições à América portuguesa, África e Ásia, a viagem chefiada por Ferreira coletou e sistematizou material de qualidade, produziu mapas e ‘prospectos’ (desenhos de paisagens) precisos, inventariou os três reinos da natureza – além dos súditos de Sua Alteza Real –, estabelecendo, assim, um claro marco na investigação científica da natureza do Brasil ( Maio, Figueirôa, maio-ago. 2010 , p.1).

Outra iniciativa data de 2012, quando a Revista Brasileira de História da Ciência publicou o substancioso dossiê “Ciências, natureza e território”, no qual um dos três eixos temáticos referia-se explicitamente às “viagens e expedições científicas em articulação com a atuação profissional e a produção intelectual de agentes do conhecimento da natureza e da ocupação do território, como militares, engenheiros, literatos e cientistas” ( Sá, Vergara, jan.-jun. 2012 , p.9).

José Augusto Pádua (2002 , p.20) opta explicitamente por privilegiar os autores nacionais, dado estarem envolvidos no projeto político de construção da nação: “Essa opção pela política também me levou a privilegiar os autores brasileiros e, em alguns poucos casos, portugueses, que escreveram de forma direta sobre os problemas ambientais do país”.

Pensamos que talvez fosse mais benéfico se todos os naturalistas e viajantes do século XIX, sejam eles nacionais ou estrangeiros, fossem aproveitados como fontes históricas, porém destacando as limitações de sua condição. Houve naturalistas estrangeiros com sólida formação científica que trabalharam no Brasil por décadas, em instituições científicas renomadas, que produziram obras relevantes para estudos ambientais. Esses, que se fixaram por aqui, devem receber um tratamento distinto em relação aos que permaneceram no Brasil por apenas um curto período de tempo, que pode não ter sido suficiente para a compreensão da realidade brasileira em suas várias dimensões ou maior profundidade, mas mesmo assim não podem ser desprezados. Como exemplo no primeiro caso, pode-se citar Orville Derby, Hermann Von Ihering, Alberto Löfgren, Emilio Goeldi, entre outros, que trabalhavam por muito tempo em instituições científicas com finalidades políticas evidentes. 3 No segundo caso, as passagens meteóricas de Henrique Burmeister e Luiz Agassiz, que deixou seus discípulos no país, são exemplos notáveis. Cabe frisar que os pesquisadores em história das ciências, desde os anos 1980, têm estudado esses cientistas estrangeiros que permaneceram no Brasil e as instituições nas quais trabalhavam no século XX. 4

Ainda há muito a ser feito nesse campo. Por exemplo, as diversas Comissões de Limites que se instalaram no Brasil somente agora começam a ser estudadas como espaços de produção científica. Essas questões não serão discutidas aqui, mas é forçoso reconhecer que, atendendo a demandas urgentes, em repostas a conflitos que poderiam gerar guerras e perdas de território, essas comissões, todas temporárias, pois duravam apenas enquanto perduravam os desentendimentos, produziram conhecimentos de diversas naturezas: histórico, geográfico, geológico, médico, de história natural, etnográfico, linguístico etc.

Embora fora dos limites dessa pesquisa, como exemplo da interface, podemos citar o caso da delegação que tratava da demarcação de limites da colônia com o império espanhol, mencionado por Warren Dean (1996) sob o ponto de vista da história ambiental. Ele observa que essa comissão teve, para além de suas funções, importância científica, e isso foi o que lhe reservou um lugar na história:

Em uma das primeiras sessões da Academia Fluviense, em 1772, um de seus membros, Maurício da Costa – cirurgião militar que acabava de regressar de uma missão na delegação que demarcava a fronteira com os territórios espanhóis –, relatou haver observado uma curiosidade valiosa. Um oficial da delegação espanhola da fronteira lhe chamara a atenção para um determinado inseto que estava infestando um cacto do gênero opúncia ali mesmo, a seus pés. O inseto, observava, era a cochonilha, 5 do qual se extraía facilmente um corante vermelho. O corante, segundo lhe dissera o oficial, era um item comercial importante no México. O médico foi imediatamente incentivado por seus colegas acadêmicos a localizar espécimes de cochonilha nas vizinhanças. Não demorou muito a conseguir. … O hortelão da academia conseguira reproduzir diversas espécies de cactos dos quais o inseto costumava se alimentar. Um outro acadêmico, José Henriques Ferreira, demonstrando familiaridade com uma série de tratados franceses e espanhóis sobre o inseto, conduziu suas próprias e minuciosas observações sobre seu ciclo de vida e sugeriu a sua classificação adequada ( Dean, 1996 , p.148).

Ou seja, Dean mostra que a presença de um médico, com conhecimentos de história natural, possibilitou a identificação de um inseto de valor comercial, bem como, depois de conhecido seu modo de vida, a viabilização de sua criação em escala comercial. Por seu turno, os historiadores das ciências devem procurar, na história ambiental, aquilo que lhes permita compreender melhor as representações da natureza.

Fonseca e sua Viagem

Em 1872, o coronel João Severiano da Fonseca participou na condição de médico 6 da primeira expedição para demarcar as fronteiras do Brasil com a Bolívia, sob o comando de Rufino Enéas Gustavo Galvão, 7 futuro barão de Maracaju. Em 1875, para o complemento dos trabalhos, houve uma segunda expedição, dessa vez chefiada por Severiano da Fonseca, que demarcou definitivamente a linha divisória desde a baía Negra até as cabeceiras do rio Verde. No ano de 1877, como ele relata,

uma secção composta dos Srs. Major dos engenheiros Guilherme Carlos Lassance, primeiro-tenente da armada Frederico Ferreira de Oliveira, e do autor dessas linhas, que era médico da comissão, desceu estes rios Guaporé, Mamoré e Madeira, onde estabeleceu os marcos definitivos nas barras dos rios Verde e Beni, e, buscando o Amazonas, voltou à corte do Império pela maior, mais soberba e majestosa estrada fluvial do mundo ( Fonseca, 1880-1881 , p.138).

Fonseca era um homem de ciência, e é sob esse ponto de vista que realizará suas observações acerca da geografia, da geologia, da economia e da população daquele sertão de Mato Grosso. Demonstrava erudição, pois conhecia e dialogava com os relatos dos viajantes que exploraram a Amazônia e o Centro-Oeste: desde os portugueses, que chegaram ainda no período colonial, até pesquisadores contemporâneos seus. Eram homens que

Vieram explorar, reconhecer e estudar essas regiões, então, talvez as mais requestadas pela coroa bragantina. Foram os primeiros a comissão demarcadora de limites, composta dos engenheiros majores Ricardo Franco de Almeida Serra, comandante da expedição, e José Joaquim Ferreira, dos astrônomos, Drs. Francisco José de Lacerda e Almeida e Antônio Pires da Silva Pontes, cabendo ao primeiro e ao terceiro o que de mais satisfatório a ciência registrou; segue-lhe, mais tarde, o naturalista baiano, Doutor Alexandre Rodrigues Ferreira, o Humboldt brasileiro, no dizer de Ferdinand Denis, de Osculati e de outros, cujos múltiplos e preciosos trabalhos andam completamente dispersos e muitos, talvez, perdidos ( Fonseca, 1880-1881 , p.42).

Os cientistas contemporâneos a ele com os quais dialogava eram Louis Agassiz (1807-1873), Charles Frederic Hartt (1840-1878) e Orville Derby (1851-1915). Eram chamados de “perscrutadores arcanos da natureza” ( Fonseca, 1880-1881 , p.50), os quais encontraram indícios que permitem a classificação geológica da Amazônia. Porém, segundo Fonseca, para o Mato Grosso “nenhum índice positivo ainda foi encontrado” (p.50): isto é, não foram encontradas, naqueles autores, evidências que permitissem classificar com segurança os solos e rochas daquela região.

O autor procurava se diferenciar dos exploradores primitivos daqueles sertões, qualificando-os negativamente. Para ele, os desbravadores dos séculos anteriores “atravessaram muitas vezes esses sertões vastíssimos d’além Paraguai…, sempre em busca de índios, com a santa ideia de livrá-los do pecado, chamando-os ao grêmio da religião de Cristo, e a torpe tenção de escravizá-los” ( Fonseca, 1880-1881 , p.40).

Refere-se claramente aos missionários jesuítas e aos bandeirantes, respectivamente. Chamava os últimos de “esses aventureiros, [que eram] guiados pela cobiça e pela ganância infrene” (p.40).

Os cientistas dos séculos anteriores, entretanto, não se enquadravam nessa categoria, porque, em seus nobres ideais, “eram levados pelo cumprimento do dever e pelo estímulo da glória” (p.42). Vieram para explorar, reconhecer e estudar essas regiões. Também com a finalidade de demarcar suas fronteiras e garantir a posse do território, primeiro para a Metrópole portuguesa, depois para o Império do Brasil, e verificar suas potencialidades econômicas. Como é sabido, a Coroa portuguesa organizou várias dessas expedições, não só ao Brasil, mas também às suas vastas possessões na Ásia e na África entre 1755 e 1808. 8

No Império brasileiro, as primeiras iniciativas com essa finalidade foram a Comissão de Exploração das Províncias do Norte (1859-1861); a Comissão Geológica do Império 9 (1875-1878), encarregada de mapear nosso território; e as diversas Comissões de Limites constituídas naquele período para resolver problemas de fronteiras, que posteriormente tiveram continuidade na nascente República brasileira, que pelejou contra a Inglaterra, no caso das Guianas, e contra a Bolívia, na questão do Acre, pela definição das divisas com esses países. Sem falar nas Comissões Geográficas e Geológicas estaduais, sobretudo a paulista e a mineira, que se debateram também em disputas territoriais internas.

Então, pode-se dizer que Fonseca se inseria, além de sua tarefa prática de demarcação de limites, num contexto mais amplo que visava ao conhecimento do território, e que seu olhar era direcionado pelo ponto de vista científico. Seu olhar naturalista se deve à sua formação em medicina. Os médicos naquela época possuíam grande conhecimento sobre a natureza, posto que não existia ainda a indústria farmacêutica, e os remédios eram extraídos, sobretudo, do reino vegetal. Grandes jardins de plantas medicinais eram cultivados na Europa. No Brasil, foram notáveis as experiências realizadas para estabelecer o cultivo da poaia no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX. 10 Foi com esse olhar de naturalista que Fonseca descreveu a natureza no Mato Grosso.

O olhar de Fonseca sobre a natureza era orientado também pela noção de utilitarismo, 11 ou seja, ele observava as potencialidades econômicas da região, pois em boa parte de seu relato se ocupa de verificar a descoberta de riquezas que poderiam ser exportadas para outras províncias ou para o estrangeiro. Embora escrevendo numa perspectiva mercantilista, tinha também por parâmetro a Exposição Universal da Filadélfia de 1876, 12 na qual o Brasil teve participação destacada. Ele apostava na industrialização, que traria consigo o progresso e a civilização, a ter como exemplo a grande nação americana que passara de colônia a nação industrializada:

As exposições não só instruem e corrigem, como criam e inventam: melhor que tudo, desenvolvem e aperfeiçoam a civilização e o bem-estar dos povos, que se aproximam, estreitam-se e tendem a unificar-se nesses convívios de inteligência, nessa permuta do gênio e do esforço pessoal ( Fonseca, 1880-188 1, p.156).

O autor defende que a importância das minas de ferro e carvão é maior que as de ouro e diamantes. As segundas trazem aventureiros, o crime, e acabam por beneficiar apenas alguns e são efêmeras, enquanto as primeiras trazem trabalho: “aquelas [trazem] os industriais e trabalhadores, que buscam obtê-las à custa do labor, explorando não o acaso, mas a realidade” ( Fonseca, 1880-1881 , p.146). Acredita na descoberta de grandes jazidas metálicas na região – o eterno sonho do Eldorado 13 –, devido às características do solo, pois

sendo imensos os depósitos sedimentários desse solo, também imensos devem ser os seus repositórios de riqueza; se a terra oculta, hoje, seus ótimos recursos, todos sabem o que ela possui de ouro e de ferro, prata, paládio e platina, chumbo e outros metais; como sabem todos quão ricas são certas comarcas do seu território em diamantes e outras gemas ( Fonseca, 1880-1881 , p.146).

A referida exposição o estimulava a olhar cientificamente a natureza como parte de um processo civilizador e de progresso econômico:

Cada produto se liga a uma arte ou uma ciência de que é subsidiário, a que se liga e o enobrece. O curioso expositor de armas, utensis [ sic ] e objetos do costume dos índios, é um colecionador que trabalha em bem da etnografia e da antropologia; o colecionador de borboletas e besouros, o entomólogo, é um benemérito da história natural; o expositor de madeiras de construção, de medicinas e minerais, é um obreiro do progresso que trabalha para o bem do país, pelo bem da sociedade, descortinando aos olhos do mundo as riquezas que aquele possui. Os objetos, os mais insignificantes na aparência, pode ter um imenso valor real. Que coisa mais sem apreço, à primeira vista, do que a terra que pisamos; e, entretanto, quanto não vale ela aos olhos do sábio industrial? ( Fonseca, 1880-1881 , p.160).

A palavra “indústria” é usada por Fonseca no sentido comum do século XIX, quando era aplicada a qualquer atividade produtiva, mas em seu relato há uma ambiguidade, pois acrescenta a palavra “fábrica”, imaginando talvez um desenvolvimento industrial devido à sua grande expectativa em relação aos minérios de Mato Grosso (ouro, ferro, prata, paládio e platina, chumbo e outros metais), e era um entusiasta da Exposição Universal de Filadélfia, nos EUA em 1876.

Para Lylia da Silva Guedes Galetti (2012) , o Mato Grosso, desde a independência, quando haviam acabado o ouro e os diamantes, até a Guerra do Paraguai, em 1870, “era um território deserto, desconhecido e abandonado à sua própria sorte” (p.88), mas que se revestia de importância por ser uma região de fronteira, pois

o povoamento e a colonização de Mato Grosso se definirão como um importante capítulo da grande epopeia fundadora da ‘base física da nacionalidade’ levada a cabo pelos bandeirantes paulistas: a conquista dos sertões do Oeste e a demarcação das fronteiras coloniais que teriam garantido ao Brasil sua dimensão continental (p.88; destaques no original).

Interpretação essa, cabe ressaltar, consolidada na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no decorrer do século XIX.

No período subsequente à Guerra do Paraguai, torna-se urgente o povoamento e a ocupação econômica desse território, integrando-o à economia do Império. A ênfase dada pelos viajantes que lá estiveram nesse período, segundo a autora, recai na necessidade de implantação da agricultura, expressa “na exaltação da fertilidade da terra que era um dos principais itens do inventário dos recursos naturais” ( Galetti, 2012 , p.112), da qual também faz parte a construção de redes de transportes e o incentivo à imigração.

As possibilidades de incremento do extrativismo também fascinavam esses autores:

Outro aspecto essencial das representações da abundância das terras mato-grossenses era a enorme variedade de espécies vegetais que aí se reproduziam. A lista desses produtos é infindável … Na verdade, alguns desses produtos já tinham comprovada aceitação no mercado, como a poaia desde meados do século XIX e ocorreria um pouco mais tarde com o mate e a borracha extraídos das matas nativas ( Galetti, 2012 , p.114).

E, finalmente, a esperança de encontrar minérios também era frequente no relato dos viajantes, pois “lendas e os antecedentes históricos da economia mineradora atestavam, ambos, a existência de grandes quantidades de ouro e diamantes na região, além de minérios como cobre e ferro, tão cobiçados pela indústria europeia” ( Galetti, 2012 , p.117).

Todavia, não foram mencionadas pelos autores relacionados por Galetti propostas de industrialização stricto sensu . A autora não se deteve sobre o livro Viagem ao redor do Brasil 1875-1878 ( Fonseca, 1880-1881 ), reservando a ele poucas palavras.

O relato de Fonseca oscila entre os modos aristocráticos em relação ao trato com a natureza, que privilegia o agradável, com seu deleite diante das belezas naturais – o que é típico do Romantismo – e a noção de utilitarismo. O autor se mostra preocupado com o aproveitamento econômico dos recursos naturais, de modo semelhante a tantos outros desde a Ilustração, como Domingos Vandelli e José Bonifácio, cujas pesquisas se encontravam dentro de uma lógica mercantilista, mas acrescidas de influências difusas do capitalismo industrial, a ter como exemplo os EUA.

Desde a fundação da Royal Society de Londres, os centros de interesse dos cientistas se voltaram para a noção de “utilidade social”, “isto é, para a transformação dos novos saberes em máquinas e aparelhos de fácil utilização disponíveis no mercado (como as bombas e máquinas a vapor)” ( Pestre, 1996 , p.36). Aos poucos, foi se criando a noção de que a produção científica e tecnológica, para ser legítima, não precisaria passar pelo crivo da aristocracia, a qual era movida pela curiosidade intelectual, mas tornar-se-ia útil na geração de dinheiro aos investidores. Os cientistas dos países industrializados conseguiam apoio para suas pesquisas indicando para seus financiadores, os capitalistas, a probabilidade de auferir lucros com suas descobertas.

Em outras palavras, a noção de utilitarismo legitimava práticas científicas. Fonseca, nesse sentido, estava sintonizado em relação aos conhecimentos de seu tempo e, a exemplo dos cientistas europeus, propunha a industrialização e, sobretudo, um melhor aproveitamento de seus recursos naturais (madeiras, minérios, plantas medicinais, frutos e animais). Fonseca queria uma ciência empenhada na produção de riquezas, que fizesse pesquisas de utilidade econômica.

Aqui, é oportuno citar Pádua (2002 , p.13), a lembrar que os pensadores do século XIX, de maneira geral,

não defenderam o ambiente natural com base em sentimentos de simpatia pelo seu valor intrínseco, seja em sentido estético, ético ou espiritual, mas sim devido à sua importância para a construção nacional. Os recursos naturais constituíam o grande trunfo para o progresso futuro do país, devendo ser utilizados de forma inteligente e cuidadosa. A destruição e o desperdício dos mesmos eram considerados uma espécie de crime histórico, que deveria ser duramente combatido.

Em consonância com Pádua, pode-se afirmar que havia, sim, em Viagem ao redor do Brasil , uma preocupação ambiental, e que sua lógica era pautada pelo utilitarismo. Fonseca era contra o desperdício de recursos naturais, porém não defendia os recursos naturais por sentimentos em relação à natureza nem por necessidade da preservação da biodiversidade e dos recursos naturais como condição para a manutenção da vida na terra.

Embora sua concepção acerca da natureza seja explicitamente utilitarista, convive com ela a presença do Romantismo: 14 há um êxtase, um deleite diante das belezas naturais, como por exemplo, na descrição do rio Alegre, que fazia jus ao seu nome tal a quantidade de passarinhos cantores em suas margens. Seus habitantes (tracajás, botos e lontras) juntamente com suas beiradas enfeitadas por copiosas florestas o tornavam ainda mais alegre.

Outro exemplo, aliás, bem típico da visão romântica da natureza, é sua descrição da gruta do Inferno, próxima ao forte Coimbra, que visitou com cerca de quarenta homens. Depois de mirar as estalagmites e estalactites, sob a luz de archotes, Fonseca (1880-1881 , p.276) não economizou elogios:

Não fantasio, nem se julgue que minhas comparações sejam frutos da imaginação ajoviada pelas maravilhas que vê: são verdadeiros simulacros de cascatas, são cortinas, colunas, coxins e rendilhados esses processos calcários. Causam admiração e prazer vê-los; e vendo-os o espírito é obrigado ao recolhimento e à reflexão. Está-se, numa dessas ocasiões em que na frase de Vitor Hugo, qualquer que seja a posição do homem, a alma está de joelhos.

Talvez o escritor francês Vitor Hugo seja a principal inspiração literária de Severiano da Fonseca.

Momentos depois, encantados, extasiados, mas ainda não satisfeitos, acenderam uma “tijelinha de sinais”, versão primitiva dos sinalizadores usados hoje na navegação:

Quando, além das tochas, foi acesa uma ‘tijelinha de sinais’ … cuja luz brilhantíssima, patenteou-nos, sob novos prismas, esse quadro assombroso … O clarão das luzes dava um tom irizado indescritível à atmosfera da gruta, variando desde o deslumbrante escarlate do fogo, até o violate e o azul-marinho. Parecia que nas paredes treluziam constelações de rutilantes gemas. Miríades de estrelas de cambiante fulgor caíam em chuvas de fogo, reproduzindo de uma maneira fascinante, e em maravilhosa escala esse fenômeno celeste, tão comum nas nossas noites de verão, das estrelas cadentes; ou antes, parecia que invisíveis fadas abriam inesgotáveis escrínios e despejavam a nossos pés diamantes, rubis, safiras, esmeraldas. Tudo brilhava… e ainda as poças e veios d’água que tínhamos aos pés, e umectavam as pedras do chão, reproduziam e estrelavam os mil fulgores que enchiam os ares ( Fonseca, 1880-1881 , p.278).

Porém, o sinalizador – aliás, o único que traziam – apagou-se rapidamente, e o “espetáculo sobrenatural e indizível desse palácio de fadas” (p.278) ficará apenas como lembrança. 15Pádua (2005 , p.70) afirma que os “ecologistas brasileiros … não costumam citar antigos autores e artistas românticos para embasar suas reflexões e propostas” e defende que os românticos deveriam ser mais valorizados, pois “ajudaram a construir uma imagem positiva do mundo natural, mesmo que idealizada e abstrata, ao transformar em símbolos de identidade nacional os céus, as águas e as magníficas florestas” brasileiras.

Segundo Galetti (2012 , p.107), os viajantes estrangeiros que percorreram Mato Grosso na segunda metade do século XIX, influenciados por Humboldt, “procuram fundir a ciência e a estética na descrição da natureza, [querem] transmitir conhecimento e beleza”. Daí a ênfase na descrição minuciosa de paisagens deslumbrantes com arroubos extáticos. Essa autora considera a descrição entusiasmada um traço comum a todos os cientistas que percorreram Mato Grosso naquela época. Mostra que, caso a observação

fosse feita das margens de um rio, de uma picada na floresta ou do alto de uma serra, a descrição demora-se em interjeições e adjetivos: opulenta, exuberante, embriagadora, gigantesca, fabulosa, admirável, luxuriante, primitiva, grandiosa, selvagem, prodigiosa, infernal, espetacular, fascinante, esplendida, colossal… ( Galetti, 2012 , p.105).

Esses cientistas, além de expressar seus sentimentos, desejavam também impressionar os leitores. O médico, antropólogo e etnólogo alemão Karl von der Steinen (1855-1929), que percorreu o Mato Grosso em meados da década de 1880, também teve arroubos poéticos e êxtases estéticos diante da natureza, que foram relatados por Galetti (2012 , p.107). O mesmo também sucedia com João Severiano da Fonseca, o que, aliás, era comum aos literatos influenciados pelo Romantismo.

Há uma constante tensão no Viagem ao redor do Brasil entre o útil e o agradável, inclusive quando se refere a outros temas. Veja-se sua opinião sobre a Exposição da Filadélfia de 1876:

Não é o fim dessas indústrias coroar somente os raros estados de espírito, os inventos e os descobrimentos: animam também, acoroçoam e protegem a atividade e a perseverança em trabalhos que, parecendo materiais, pressupõem o estudo. Ao lado de máquinas inteligentes, que substituem o braço do homem, dos livros de alta ensinança, dos inventos utilíssimos, são premiadas as matérias brutas de que se pode obter artefatos necessários; os produtos de fantasia que deleitam apenas os sentidos; o útil como o agradável ( Fonseca, 1880-1881 , p.159).

Como se pode perceber, suas afirmações são complexas e, numa leitura apressada, parecem um pouco confusas: há uma sutil oposição entre as duas visões de ciência, a burguesa e a aristocrática. Para a burguesia, o interesse está em aprimorar a produção e obter matérias-primas que garantam o funcionamento de seus negócios. Para a aristocracia, em engrandecer o espírito. André Rebouças (1938 , p.245), monarquista, por exemplo, teve a oportunidade de visitar a Exposição de Viena, que não o entusiasmou por ser apenas um grande evento comercial e por não ter “caráter algum civilizador”. Chamava-a de “grande bazar”, expressão também empregada por Fonseca, mas que, ao contrário de Rebouças, via isso positivamente, pois permitia entrever a possibilidade de bons negócios.

Fonseca percebia nessa exposição, portanto, duas possibilidades: a de crescimento individual, tanto intelectual quanto espiritual, e o surgimento de boas oportunidades econômicas com o incremento das exportações. Daí apontar para a necessidade de estudos científicos do território: as probabilidades de bons negócios o justificavam.

João Severiano da Fonseca era irmão de Hermes Ernesto da Fonseca, que governou a província do Mato Grosso entre 1875 e 1878. Ao mencionar o grande desmatamento naquela região, ao tecer críticas ao próprio irmão e ao propor uma legislação de proteção ambiental, talvez divisasse a possibilidade de interferir nos destinos da província ou mesmo da nação:

À beira do Paraguai, apesar da ignara devastação dos lenhadores, a custo se avista um ou outro jacarandá, guatambu ou vinhático, que o mais já têm desaparecido para converter-se em combustível para os vapores que sulcam o rio: precioso material que só de longe em longe deixa ver um ou outro exemplar, que de julho a setembro, na estação das flores, tornam tão belas as matas, esmaltecendo-lhes o verde escuro com as altivas grimpas transmutadas em ramalhetes enormes e formosíssimos, brancos, amarelos róseos, escarlates e violetes. Se ainda abundam e avultam os ipês, peiúvas na província, não é porque sejam pior combustível, mas por embotarem os machados e cansarem o braço dos lenhadores. Quanto mais escasso for o outro material de carvão, quebracho, quebra machado dos espanhóis, será derrubado em tanta cópia quanta se apresente; só a preguiça os têm poupado até agora ( Fonseca, 1880-1881 , p.152).

Ou seja, a devastação florestal no Mato Grosso era intensa, muitas espécies já não mais existiam na região ribeirinha e só eram avistadas ao longe: 16 isto é, distante das margens do rio Paraguai e apenas na época da floração, quando se tornam visíveis por se distinguirem na paisagem pelo colorido de suas flores, sendo dessa forma possível identificá-las. O autor considerava que nem aquelas localizadas mais ao interior, mesmo as de madeiras ordinárias, escapariam da destruição. Profetizava: “Tempo virá, e não longe, que os vapores, já não encontrando madeiras de lei para queimar, recorram às outras; e quando tudo estiver completamente devastado, tudo consumido, buscarão outro recurso no carvão de pedra. ( Fonseca, 1880-1881 , p.154).

A crise econômica do final do século XIX impedia que o carvão mineral fosse importado, devido a seu alto preço. A profecia de Fonseca parece guardar certa semelhança com o vaticínio de José Bonifácio de Andrada e Silva em seu relato Viagem mineralógica na Província de São Paulo (citado em Pádua, 2002 , p.144), que previa que as terras paulistas, devido às práticas agrícolas predadoras – a agricultura tradicional brasileira, calcada no uso do fogo, da mão de obra escrava e no nomadismo –, transformar-se-iam num deserto:

Todas as antigas matas foram barbaramente destruídas com fogo e machado, e esta falta acabou em muitas partes com os engenhos. Se o governo não tomar enérgicas medidas contra aquela raiva de destruição, sem a qual não se sabe cultivar, depressa se acabarão todas as madeiras e lenhas, os engenhos serão abandonados, as fazendas se esterilizarão, a população emigrará para outros lugares, a civilização atrasar-se-á, e a apuração da justiça e a punição dos crimes experimentará cada vez maiores dificuldades no meio dos desertos.

Segundo Pádua (2002 , p.137), Bonifácio, desde 1815, fazia uso da expressão “desertos da Líbia” ao comentar o “crescimento dos areais nas zonas costeiras de Portugal” decorrentes do desmatamento. Previa, em 1823, que o Brasil se transformaria num deserto igual ao da Líbia, numa imagem de forte impacto, muito provavelmente inspirado em suas excursões ao interior paulista.

No Mato Grosso, desmatava-se visando à produção de lenha combustível para os barcos a vapor da Marinha Mercante que, finda a Guerra do Paraguai, começaram a transitar livremente pelos rios platinos, e, embora a frota ainda fosse pequena, o estrago que faziam já era grande e tenderia a crescer. Provavelmente, também havia contrabando dessas madeiras extraídas das margens do rio para as repúblicas platinas, de onde talvez fossem reexportadas para a Europa. Em São Paulo, todavia, o corte das florestas visava à plantação de lavouras de café e, a partir do “encilhamento” 17 (1890), ao uso da lenha como combustível das locomotivas das vias férreas. 18

Fonseca (1880-1881 , p.153) nomeava claramente os sujeitos da destruição ambiental no Mato Grosso e estranhava abertamente a indiferença da província mato-grossense perante a devastação ambiental: “E, já que há ocasião para falar nessas derrubadas, nessa devastação sem limites, verdadeira depredação do Estado, seja lícito estranhar-se a indiferença com que a província vê arderem essas riquezas tão fácil de ser aproveitadas”.

Estava a reivindicar, portanto, de maneira incisiva, uma intervenção mais ampla do Estado 19 em favor da natureza, cobrando uma legislação que protegesse a mata, considerada por ele um recurso econômico valioso não para ser queimado como lenha, mas sim para ser vendido como madeira nobre a um preço compensador:

Mais vale tarde do que nunca; faça-se agora o que a desídia e a ganância não têm querido fazer; salve-se o que ainda resta dessa preciosa vegetação ribeirinha; e os jacarandás, o pau-santo, os cedros, o vinhático, o guatambu, etc., em vez de serem reduzidos a achas para alimentar as caldeiras, descerão como cargas desses mesmos vapores, para serem vendidos a preços décuplos ou serem usados em artefato de subido valor. A navegação desse modo que é feita hoje na província prejudica mais do que favorece-a… (Fonseca, 1880-1881, p.154).

Estavam a queimar algo que poderia ser vendido (exportado), isto é, descer o rio Paraguai por um valor dez vezes maior (o décuplo) do seu preço, ou ser usado no país mesmo, mas em obras ou artefatos de grande valor. Pode-se ver com clareza sua concepção utilitarista de natureza, pois a devastação é entendida como “depredação”, devido a seu mau aproveitamento econômico: queimavam-se madeiras de espécies nobres de alto valor, que poderiam ser mais bem utilizadas, gerando lucros aos proprietários e ao Estado, que cobraria mais impostos. A natureza era vista como recurso natural, 20 ou seja, como riqueza a ser explorada pelo seu proprietário para dela auferir ganhos, e não para ser desperdiçada ao queimar nas caldeiras.

Em São Paulo, até onde se sabe, o primeiro protesto contra o desmatamento, a indicar a ferrovia como agente devastador, apareceu em artigo assinado por Luiz de Queiroz, o fundador da Escola Agrícola de Piracicaba (atual Esalq), no número 7 da Revista Agrícola:

Mas destruir matas ou capoeiras só para tirar duas ou três colheitas, atear fogo em quase um distrito inteiro, para fazer verde a algumas cabeças de gado, ‘queimar imensos campos e matas pela locomotiva de estrada de ferro mal dirigida’, 21 ou arrasar florestas de íngremes morros, de profundas barrocas, de nascentes d’água ou de beira-rio, ou inutilizar as matas junto a centros populosos só para aproveitá-las como carvão ou lenha, é simplesmente procedimento de bugres ou de vândalos e o governo ou mesmos as Câmaras Municipais deveriam com leis as mais severas pôr um paradeiro a tão insensato, quão imprudente procedimento ( Queiroz, nov. 1895 , p.112; destaque nosso). 22

Para ele, as ferrovias eram mal dirigidas e queimadas, eram coisas de “bugre” ou “vândalos”, sendo tal estado de coisas, portanto, incompatível com o orgulho paulista e com a imagem do estado de São Paulo civilizado e progressista que pretendiam construir.

Fonseca, em seu relato de viagem, comenta os estudos que Agassiz, Hartt e Derby fizeram sobre a geologia do Mato Grosso e a paleontologia na Amazônia (Fonseca, 1880-1881, p.50), sobre os quais, no decorrer da obra, teceu vários comentários, nem sempre elogiosos. Hartt, no seu livro Geology and physical geography of Brazil , publicado em 1878, chamava a atenção para o efeito nefasto das queimadas: “O resultado dessa prática seria, já no século passado, o grande estreitamento da faixa arborizada” (Hartt citado em Santana, 2001 , p.117). Embora as queimadas não fossem a causa da destruição ambiental no Mato Grosso, os resultados eram semelhantes. Fonseca pode ter se inspirado nele.

Considerações finais

Concluindo, esperamos ter mostrado ao leitor que: (a) o corte das florestas para uso como combustível era uma preocupação ambiental do século XIX, que vinha desde o período colonial. Severiano da Fonseca, ao relatar os desmatamentos feitos nas margens do rio Paraguai e ao analisar os seus efeitos década de 1870, reclamava por medidas protecionistas ou preservacionistas, pois estavam a queimar madeiras nobres que poderiam ser mais bem aproveitadas futuramente quando o progresso econômico chegasse à região; (b) as exposições internacionais do século XIX criaram amplas possibilidades de negócios com matérias-primas para atender à grande demanda dos países industrializados, e a província de Mato Grosso mostrou na exposição de Filadélfia apenas produtos que exigiam pouco trabalho na sua elaboração. Essas exposições, especialmente a de Filadélfia, em 1876, criaram uma perspectiva de industrialização interna, apontando, portanto, no sentido do progresso econômico e civilizador. Nesse contexto, queimar madeiras nobres nas caldeiras dos navios era desperdício econômico, pois elas, num futuro distante, poderiam contribuir com o desenvolvimento industrial da província. Esse desenvolvimento ganhou impulso no início do século XX, com a construção das ferrovias Madeira-Mamoré e Noroeste do Brasil, que, aliás, também queimavam em seu lume lenha das florestas.

No Mato Grosso, assim como nas outras regiões do país, havia vozes protestando contra a destruição ambiental. Compete aos historiadores ambientais um levantamento dos paladinos mato-grossenses da preservação ambiental de outras épocas. E, aos historiadores das ciências, estudar com profundidade a produção científica das diversas comissões, de demarcação de limites ou de outra natureza, o que, aliás, já vem sendo feito por historiadores da região e de outras partes do país.

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