versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.43 no.4 São Paulo jul./ago. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000197
Segundo a Global Initiative for Obstructive Lung Disease (GOLD), a exacerbação da DPOC é definida como evento agudo caracterizado pela piora dos sintomas respiratórios em relação aos valores basais, como o aumento da hiperinsuflação pulmonar, redução do fluxo aéreo, dispneia e até mesmo a presença de hipoxemia, com necessidade de alterações na terapia medicamentosa habitual.1 Exacerbações da DPOC, apesar de frequentes durante o curso da evolução dos pacientes, devem ser prevenidas na tentativa de evitar a piora do comprometimento pulmonar e sistêmico, característicos da doença.
Os pacientes com DPOC, mediante uma exacerbação aguda da doença, frequentemente apresentam piora da função pulmonar2; diminuição da força muscular periférica3 e respiratória4; redução da atividade física na vida diária5; redução da capacidade de exercício6; aumento na taxa de mortalidade7; aumento dos gastos com saúde8,9; e piora da qualidade de vida relacionada à saúde.10 Dentre tantos prejuízos desencadeados por uma exacerbação, em conjunto com aqueles já característicos do curso natural da doença, entende-se a importante necessidade da prevenção desse evento. Atualmente, já foram demonstrados pela literatura preditores de exacerbações em pacientes com DPOC, como função pulmonar, história pregressa de exacerbações, capacidade de exercício e estado de saúde, entre outros,1,11 os quais podem auxiliar no melhor manejo clínico desses indivíduos.
Por se tratar de um teste simples, de fácil aplicação, de baixo custo e com boa responsividade,12,13 o teste de caminhada de seis minutos (TC6) é amplamente utilizado para a avaliação da capacidade funcional de exercício e, mais recentemente, para a predição de exacerbações da DPOC.14,15 A literatura científica já adotou, por exemplo, um ponto de corte para o TC6 como preditor de exacerbação, como a distância percorrida no TC6 (DTC6) < 350 m.14 Porém, sabe-se que indivíduos brasileiros apresentam uma maior DTC6 quando comparados com populações estrangeiras,16 e, por esse motivo, o valor sugerido pode não ser aplicável à população brasileira com DPOC, havendo então a necessidade da adoção de um ponto de corte específico para essa população.
Embora, até o momento, um ponto de corte específico para a população brasileira ainda não tenha sido descrito pela literatura, estudos prévios têm utilizado o ponto de corte de 80% do valor predito para a DTC6.17,18 Um ponto de corte expresso em porcentagem do valor predito poderia ser mais adequado por dois motivos: por levar em consideração as características individuais dos pacientes e também por evitar o possível viés do valor absoluto quando aplicado em diferentes populações, como, por exemplo, a brasileira, a qual, como já citado anteriormente, apresenta uma maior DTC6 em relação a outras populações.16
Nesse sentido, considera-se que indivíduos com DTC6 maior que 80% do seu predito apresentam capacidade de exercício preservada. No melhor conhecimento dos presentes autores, a capacidade de predição de exacerbações pela DTC6, especificamente em pacientes brasileiros com DPOC, não inseridos em programas de reabilitação e não internados recentemente em serviços de saúde (visto que ambos os fatores influenciam na predição de exacerbações), ainda não foi investigada. Logo, o objetivo do presente estudo foi avaliar se o desempenho no TC6 prediz a ocorrência de exacerbações agudas ao longo de 2 anos em pacientes com DPOC no Brasil. Nossa hipótese foi que, caso esses pacientes apresentassem desempenho no DTC6 abaixo de 80% do valor predito, seu risco de exacerbação aguda da DPOC no período de 2 anos seria maior do que o daqueles com desempenho acima desse ponto de corte.
Trata-se de um estudo retrospectivo e observacional em uma amostra de conveniência, com dados de avaliações realizadas no período entre 2010 e 2013 em pacientes com DPOC convidados a participar de um programa de reabilitação que, por motivos diversos (como dificuldades com transporte e indisponibilidade de tempo), realizaram apenas a avaliação inicial, não iniciando então o treinamento físico. Os critérios de inclusão para o presente estudo foram: pacientes com diagnóstico de DPOC de acordo com a estratégia GOLD1; estabilidade clínica, ou seja, ausência de exacerbações nos últimos 3 meses; ausência de comorbidades que pudessem interferir na realização dos testes; e sem participação em nenhum programa de treinamento físico no ano anterior ao de inclusão no estudo. Foram excluídos do estudo os pacientes cujos dados de prontuários não estavam disponíveis, aqueles cujo contato telefônico (com o próprio paciente ou familiar próximo) não fosse possível; e aqueles cujos resultados do TC6 e da função pulmonar os classificassem como outliers (± 2 dp em relação à média da amostra).
O estudo foi realizado no Laboratório de Pesquisa em Fisioterapia Pulmonar da Universidade Estadual de Londrina e no Centro de Pesquisa em Ciências da Saúde da Universidade Norte do Paraná, sendo aprovado pelo comitê de ética em pesquisa envolvendo seres humanos da primeira instituição (Processo no. 123/09). Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
A avaliação espirométrica foi realizada utilizando-se o espirômetro Pony® (Cosmed, Roma, Itália). A técnica foi realizada de acordo com as diretrizes da American Thoracic Society e European Respiratory Society,19 e valores após o uso de broncodilatador foram utilizados. Os valores de referência utilizados para a população brasileira foram os de Pereira et al.20
O TC6 foi realizado de acordo com diretrizes internacionais por avaliadores treinados.12 Os pacientes foram instruídos a percorrer um corredor de 30 m de comprimento, durante 6 min com incentivos padronizados durante o teste. Foram realizados 2 testes, com um intervalo mínimo de 30 min entre eles, e a maior distância percorrida foi utilizada para as análises. Medidas de pressão arterial, FC e SpO2, assim como dispneia e fadiga (avaliadas pela escala de Borg modificada) foram realizadas antes e após cada teste.
Para a realização das análises, os indivíduos foram separados em dois grupos: aqueles que percorreram > 80% da DTC6 predita de acordo com a fórmula proposta por Britto et al. (equação 1),21 e aqueles que percorreram ≤ 80% da DTC6 predita.17,18
A investigação do histórico de ocorrência de exacerbações no período de 2 anos após a avaliação da capacidade de exercício pelo TC6 foi realizada por meio de análise de prontuários da instituição e por ligações telefônicas. Foi analisada a ocorrência ou não de exacerbações agudas da DPOC, independentemente do número de eventos ocorridos no período, sendo consideradas como exacerbações apenas aquelas que cumprissem os critérios determinados pelo GOLD,1 a saber: piora dos sintomas respiratórios que vão além das variações normais do dia a dia, com necessidade de mudança na prescrição medicamentosa, mas sem necessidade obrigatória de internação hospitalar.
Para a análise estatística foi utilizado o pacote estatístico IBM SPSS Statistics, versão 20.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA). A normalidade dos dados foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk, e os resultados foram descritos em média e desvio-padrão. Para as comparações entre os grupos separados de acordo com a capacidade de exercício foi utilizado o teste t não pareado. Para a comparação dos grupos em relação à ocorrência de exacerbações, foram utilizados o teste log-rank e curva de Kaplan-Meier. Para verificar se o ponto de corte de 80% do predito na DTC6 foi capaz de predizer exacerbações nos 2 anos de seguimento foi utilizada a regressão de Cox com ajuste para as variáveis de confusão disponíveis - gênero, índice de massa corpórea (IMC) e função pulmonar. A significância estatística adotada foi de p < 0,05.
Foram incluídos 67 pacientes, em uma amostra de conveniência; porém 9 pacientes foram excluídos devido à falta de acesso às informações durante o estudo, e 8 pacientes foram excluídos por serem considerados outliers em relação aos resultados de função pulmonar e/ou TC6. Dentre os 50 pacientes que permaneceram (Tabela 1), 5 pacientes foram a óbito ( 4 por pneumonia e 1 por infarto agudo do miocárdio), e 25 exacerbaram dentro dos 2 anos de seguimento. Em relação à capacidade funcional de exercício, a média da DTC6 foi de 469 ± 60 m (86 ± 10% do predito).
Características | DTC6 ≤ 80% predito (n = 17) | DTC6 > 80% predito (n = 33) | Amostra total (n = 50) |
---|---|---|---|
Gênero (M/F) | 10/7 | 16/17 | 26/24 |
Idade, anos | 70 ± 7 | 66 ± 7 | 67 ± 7 |
IMC, kg/m2 GOLD, I/II/III/IV |
22 ± 5 0/3/5/9 |
25 ± 4 1/11/16/5 |
24 ± 5 1/14/21/14 |
VEF1 , % predito | 37 ± 19 | 43 ± 13 | 41 ± 15 |
VEF1/CVF, % DTC6, m DTC6, % preditoa |
52 ± 11 374 ± 73 73 ± 13 |
52 ± 9 495 ± 55* 95 ± 12* |
52 ± 10 454 ± 84 84 ± 15 |
Borg Dispneia pré-TC6 Borg Dispneia pós-TC6 Borg Fadiga pré TC6 Borg Fadiga pós-TC6 FC pré-TC6, bpm FC pós-TC6, bpm SpO2 pré-TC6, % SpO2 pós-TC6, % |
1 ± 1 3 ± 2 1 ± 2 3 ± 2 85 ± 17 106 ± 15 92 ± 3 92 ± 3 |
1 ± 1 3 ± 2 1 ± 1 3 ± 2 84 ± 17 115 ± 13 94 ± 2 92 ± 3 |
1 ± 1 3 ± 2 1 ± 1 3 ± 2 84 ± 17 112 ± 14 94 ± 3 92 ± 3 |
TC6: teste de caminhada de seis minutos; DTC6: distância percorrida no TC6; M: masculino; F: feminino; IMC: índice de massa corpórea; GOLD: Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease; e Borg: escala de Borg modificada. aValor predito de acordo com a fórmula de Britto et al.21) *p < 0,05 vs. DTC6 < 80% predito.
Ao compararem-se os grupos divididos de acordo com a capacidade funcional de exercício pelo ponto de corte > 80% (n = 33) e ≤ 80% (n = 17) do valor predito, não houve diferenças estatisticamente significantes entre eles em relação à idade, gênero, altura, peso, IMC e função pulmonar.
A curva de Kaplan-Meier (Figura 1) mostrou uma diferença estatisticamente significante (p = 0,01) em relação à ocorrência ou não de exacerbações, sendo que aqueles com desempenho ≤ 80% do predito na DTC6 apresentaram exacerbações mais frequentemente do que aqueles com DTC6 > 80% do predito. É possível ainda observar que essa diferença foi mais pronunciada a partir do décimo mês após a avaliação.
O modelo de regressão de Cox mostrou que os pacientes com desempenho ≤ 80% do predito na DTC6 têm 2,6 (IC95%: 1,1-5,8; p = 0,02) mais chances de exacerbar em 2 anos quando comparados aos pacientes que tiveram desempenho > 80% do predito, mesmo quando se faz o ajuste para as variáveis de confusão.
Os resultados do presente estudo demonstraram que pacientes brasileiros com DPOC e DTC6 < 80% do valor predito apresentam mais que o dobro de chances de exacerbarem nos 2 anos subsequentes à avaliação quando comparados com aqueles que apresentam sua capacidade de exercício preservada.
Pacientes com DPOC apresentam prejuízos decorrentes do curso natural da doença que, somados a episódios de exacerbação, necessitam de pelo menos 90 dias para retornarem ao estado de saúde basal, sendo que algumas vezes nem após esse período a recuperação completa pode ser alcançada.22 Em se tratando de uma doença com altas taxas de morbidade e mortalidade, é de suma importância tanto a prevenção quanto a predição de exacerbações agudas, seja para evitar a perda de funcionalidade do paciente, seja para evitar os altos custos envolvidos no tratamento da exacerbação da DPOC.
Estudos prévios14,15 já demonstraram que a DTC6 é capaz de predizer exacerbações em pacientes com DPOC. No estudo de Andrianopoulos et al.,15 sugere-se um ponto de corte da DTC6 de 375 m para a predição de maior risco de exacerbação em pacientes com DPOC em 3 anos de seguimento. No entanto, o ponto de corte proposto pode não ser adequado para a população brasileira, considerando que essa apresenta melhor desempenho no TC6 do que outras populações internacionais.
Outro estudo brasileiro23 utilizou-se de índices multidimensionais para a predição de exacerbações em pacientes com DPOC, como o índice denominado BODE (Body mass index, airflow Obstruction, Dyspnea, and Exercise capacity),24 que se trata de uma medida mais abrangente do que a DTC6 isoladamente. Por avaliar diferentes desfechos (IMC, VEF1 e avaliação da dispneia pela escala modificada do Medical Research Council, além da própria DTC6), o índice BODE requer maior complexidade logística e tempo para ser calculado, o que pode dificultar a sua aplicabilidade na prática clínica. O presente estudo mostrou que, em pacientes com DPOC brasileiros, o desempenho na DTC6 isoladamente também pode predizer exacerbações agudas da doença. Casanova et al.16 mostraram que brasileiros saudáveis apresentam uma maior DTC6 em relação a indivíduos de outros países, enquanto Pitta et al.25 mostraram que pacientes brasileiros com DPOC apresentam maior nível de atividade física na vida diária quando comparados com uma população europeia. Considerando que o nível de atividade física na vida diária na população brasileira correlaciona-se, mesmo que moderadamente, com a capacidade funcional de exercício,26 reforça-se a necessidade da adoção de índices específicos para diferentes populações.
Na análise da curva de Kaplan-Meier do presente estudo, em concordância com a literatura,15 a diferença entre a taxa de exacerbações em pacientes com desempenho acima e abaixo de 80% do predito na DTC6 foi estatisticamente significante e parece se tornar mais pronunciável após o décimo mês de seguimento.
No melhor conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo a avaliar a predição de exacerbações pelo desempenho no TC6 em pacientes brasileiros com DPOC não inseridos em programas de reabilitação. Marino et al.27 demonstraram que a DTC6, juntamente a covariáveis dependentes (IMC e massa magra), está associada ao risco de exacerbação; porém, aquele estudo foi realizado em pacientes brasileiros inseridos em um programa de fisioterapia, sendo essa uma limitação, já que a atividade física é um fator preventivo à ocorrência de exacerbações.1
Zanoria et al.14 adotaram o ponto de corte para a DTC6 < 350 m, descrita previamente, para a predição de mortalidade em pacientes com DPOC.28 Aqueles autores mostraram que pacientes com desempenho < 350 m no TC6 têm 8,4 mais chances de exacerbação da doença em 1 ano. O presente estudo propõe um novo ponto de corte (≤ 80% do predito) para o uso da DTC6 na predição de risco de exacerbação na população de pacientes brasileiros.
A metodologia de levantamento dos dados sobre as exacerbações, assim como o poder da regressão de Cox, podem ser considerados limitações do presente estudo, embora o máximo cuidado tenha sido tomado na exploração desses dados para que se atingissem as informações mais acuradas possíveis. Assume-se também como limitação o fato de o estudo possuir caráter retrospectivo com uma amostra de conveniência, e o fato de que não foi investigada a frequência de exacerbações, mas apenas se houve exacerbação da doença ou não durante o período. Sugere-se que estudos prospectivos e com amostras maiores na mesma linha de investigação possam colaborar com a literatura científica e a prática clínica.
Em conclusão, o desempenho no TC6 é capaz de predizer exacerbações em pacientes brasileiros com DPOC ao longo de 2 anos. Pacientes com DTC6 ≤ 80% do valor predito apresentam mais que o dobro de chances de exacerbarem em 2 anos.