versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.19 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312014000200009
A aquisição da linguagem é um processo complexo e gradual, que exige alta demanda cognitiva. Quando aspectos específicos da linguagem (especialmente os sintáticos e lexicais) ainda estão em desenvolvimento, há maior chance de ocorrência de rupturas durante a emissão da fala(1,2).
Durante o desenvolvimento linguístico, as disfluências são aceitáveis, uma vez que podem refletir as incertezas da criança durante o planejamento da sentença. Sendo assim, propiciam um ganho de tempo para elaboração do enunciado e tendem a diminuir gradualmente, com a maturidade do sistema linguístico(2). Crianças com distúrbio específico de linguagem (DEL) não costumam apresentar essa diminuição, pois possuem dificuldades morfossintáticas que as levam a cometer mais disfluências, se comparadas à população em desenvolvimento típico de linguagem(3,4).
Dentre as rupturas gagas, a pausa silente pode ser utilizada como estratégia de ganho de tempo para formulação do enunciado, sem adição de palavras ou sons(2). Seu uso também é referido quando há uma sobrecarga de informações relacionadas ao processamento linguístico(5,6).
Como a ocorrência de rupturas está associada aos elementos linguísticos, há estudos recentes que buscam compreender as relações entre as diferentes classes de palavras e os eventos disfluentes(7,8). Devido às diferenças de aquisição e complexidade, estudos relataram maior número de rupturas em palavras de classe fechada (como artigos e preposições), que são adquiridas posteriormente e utilizadas como elementos de ligação entre palavras e frases sendo, portanto, mais abstratas(9-11). Já as palavras de classe aberta (como substantivos e verbos), são adquiridas anteriormente e apresentam referenciais mais concretos, sendo mais facilmente relacionadas ao contexto e, portanto, há menos evidência de disfluência nessa classe de palavra(9,10). Alguns autores utilizaram exames eletrofisiológicos para estudar o comportamento cerebral durante a utilização de palavras de classe aberta e fechada e concluíram que o seu processamento ocorre de forma distinta, em razão de suas diferentes funções e relações linguísticas(12,13).
Dando continuidade à investigação da relação entre a classe gramatical e a pausa silente, este estudo teve por objetivo verificar se o tempo médio das pausas silentes difere para a classe das palavras (aberta ou fechada) e se há diferença entre esse tempo para crianças em desenvolvimento típico de linguagem e crianças com distúrbio específico de linguagem (DEL), em cada tipo de palavra.
O projeto foi aprovado pela Comissão de Análises de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (USP), sob parecer número 1150/09. Os responsáveis pelas crianças que atenderam aos critérios de inclusão neste estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O estudo contou com 60 sujeitos falantes do Português, com idade variando entre 7 e 10 anos. O pareamento dos grupos considerou a faixa etária e, para cada sujeito com DEL, havia dois sujeitos sem alteração de linguagem. O grupo com DEL (GDEL) foi composto por 20 crianças, sendo 14 do gênero masculino. O grupo em desenvolvimento típico de linguagem (GDTL) foi composto por 40 crianças, sendo 18 do gênero masculino.
Os critérios de inclusão do GDEL foram: apresentar desempenho em tarefas de inteligência não verbal dentro dos limites de normalidade; ter produção de fala inteligível; ter diagnóstico de distúrbio específico de linguagem, confirmado pelo desempenho abaixo do esperado em, pelo menos, dois dos seguintes testes padronizados de linguagem: vocabulário, fonologia e pragmática do ABFW(14) e extensão média do enunciado(15).
A seleção dos sujeitos do GDTL foi realizada em uma escola estadual da zona oeste da cidade de São Paulo. Os critérios de inclusão foram: não apresentar processos fonológicos produtivos na avaliação da fonologia(16); ter desempenho adequado em tarefas que envolvem consciência fonológica, leitura e escrita(17); apresentar rendimento acadêmico compatível com a faixa etária e série que frequenta, confirmado pela ficha escolar.
Cada sujeito produziu 15 narrativas baseadas em histórias, representadas por uma sequência de quatro figuras(18). Durante a coleta de dados, foi explicado aos participantes que a sequência de quatro figuras compunha uma história. A criança era solicitada a organizar as figuras e narrar a respectiva história, que era registrada em gravador digital. Para eliminar possíveis variáveis, como déficit de memória de curto prazo, as figuras ficaram visíveis para a criança durante todo o tempo de sua narração.
O arquivo com a gravação de cada história foi analisado acusticamente no software Audacity (1.3 Beta), que permitiu a marcação da duração de cada palavra enunciada pela criança e das pausas entre elas (transcrição da amostra). Todas as palavras foram classificadas como de classe aberta (substantivo, adjetivo, verbo, advérbio e numeral), ou fechada (artigo, preposição, pronome, conjunção e interjeição).
O arquivo foi, então, processado em um software, desenvolvido especificamente para calcular a duração das pausas silentes (em milissegundos), imediatamente anteriores a cada palavra. Esse software gerou um relatório para cada uma das 15 narrativas produzidas por cada sujeito, resultando no levantamento do tempo médio (em milissegundos) das pausas silentes anteriores a substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, numerais, artigos, preposições, pronomes, conjunções e interjeições desta amostra. É importante ressaltar que, de acordo com os critérios adotados, consideramos como pausa silente todos os episódios de silêncio entre as palavras.
Foi realizada análise estatística descritiva e inferencial para responder aos objetivos deste estudo. O teste não paramétrico de Mann-Whitney foi utilizado para comparar o tempo médio das pausas silentes entre os grupos e o teste não paramétrico de Wilcoxon foi utilizado para a comparação entre as classes de palavras. Essa análise foi realizada no software SPSS versão 18 e o nível de significância adotado foi de 5%.
A comparação entre as classes de palavras indicou que a pausa silente foi mais longa quando precedia as palavras de classe fechada, tanto para o GDTL (z=-5,471, p<0,001), quanto para o GDEL (z=-3,435, p=0,001) (Figura 1).
Figura 1 Tempo médio (em milissegundos) das pausas silentes anteriores a palavras de classe aberta e fechada em ambos os grupos
Dentre as palavras de classe aberta, as pausas silentes foram mais longas para o grupo com DEL, com exceção do numeral (Tabela 1).
Tabela 1 Comparação do tempo médio (em milissegundos) das pausas silentes anteriores a palavras de classe aberta
Classe de palavra | Grupo | Média | Desvio-padrão | Mediana | Intervalo de confiança
|
U | Z | Valor de p | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
limite inferior | limite superior | ||||||||
Substantivo | DTL | 25,70 | 19,25 | 21,69 | 19,54 | 31,85 | 71,0 | -5,159 | <0,001* |
DEL | 67,22 | 37,22 | 55,91 | 49,80 | 84,64 | ||||
| |||||||||
Adjetivo | DTL | 52,76 | 85,44 | 20,84 | 25,44 | 80,09 | 255,5 | -2,267 | 0,023* |
DEL | 190,74 | 301,31 | 112,61 | 49,72 | 331,76 | ||||
| |||||||||
Verbo | DTL | 89,05 | 45,91 | 76,06 | 74,36 | 103,73 | 144,0 | -4,014 | <0,001* |
DEL | 185,71 | 94,90 | 172,96 | 141,30 | 230,12 | ||||
| |||||||||
Advérbio | DTL | 99,48 | 100,80 | 70,59 | 67,24 | 131,72 | 215,0 | -2,901 | 0,004* |
DEL | 182,52 | 142,70 | 136,79 | 115,73 | 249,30 | ||||
| |||||||||
Numeral | DTL | 39,33 | 134,43 | 0,00 | -3,66 | 82,32 | 328,0 | -1,393 | 0,164 |
DEL | 67,55 | 133,77 | 0,00 | 4,95 | 130,16 | ||||
| |||||||||
Aberta geral | DTL | 306,32 | 210,38 | 230,52 | 239,03 | 373,60 | 146,0 | -3,983 | <0,001* |
DEL | 693,73 | 464,34 | 586,83 | 476,41 | 911,05 |
* Valores significativos (p≤0,05) – Teste de Mann-Whitney
Legenda: DTL = crianças em desenvolvimento típico de linguagem (n=40); DEL = crianças com distúrbio específico de linguagem (n=20), U = estatística do teste de Mann-Whitney; Z = escore z
Já dentre as palavras de classe fechada, o grupo com DEL teve pausas mais longas, com exceção da interjeição (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação do tempo médio (em milissegundos) das pausas silentes anteriores a palavras de classe fechada
Classe de palavra | Grupo | Média | Desvio-padrão | Mediana | Intervalo de confiança
|
U | Z | Valor de p | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
limite inferior | limite superior | ||||||||
Artigo | DTL | 97,86 | 70,85 | 76,52 | 75,20 | 120,52 | 81,0 | -5,002 | <0,001* |
DEL | 244,79 | 118,99 | 212,56 | 189,10 | 300,48 | ||||
| |||||||||
Preposição | DTL | 75,76 | 72,26 | 56,96 | 52,65 | 98,87 | 124,0 | -4,328 | <0,001* |
DEL | 169,40 | 100,38 | 136,74 | 122,42 | 216,38 | ||||
| |||||||||
Pronome | DTL | 179,49 | 245,50 | 94,88 | 100,98 | 258,01 | 271,0 | -2,023 | 0,043* |
DEL | 283,29 | 271,01 | 214,76 | 156,46 | 410,13 | ||||
| |||||||||
Conjunção | DTL | 309,45 | 213,52 | 261,41 | 241,16 | 377,73 | 232,0 | -2,634 | 0,008* |
DEL | 478,09 | 269,55 | 425,85 | 351,94 | 604,24 | ||||
| |||||||||
Interjeição | DTL | 473,49 | 578,62 | 351,68 | 288,44 | 658,54 | 369,5 | -,479 | 0,632 |
DEL | 477,80 | 379,28 | 366,30 | 300,29 | 655,31 | ||||
| |||||||||
Fechada geral | DTL | 1136,05 | 797,03 | 928,95 | 881,15 | 1390,96 | 221,0 | -2,807 | 0,005* |
DEL | 1653,37 | 808,90 | 1435,62 | 1274,80 | 2031,94 |
* Valores significativos (p≤0,05) – Teste de Mann-Whitney
Legenda: DTL = crianças em desenvolvimento típico de linguagem (n=40); DEL = crianças com distúrbio específico de linguagem (n=20), U = estatística do teste de Mann-Whitney; Z = escore z
Verificamos que a duração da pausa silente foi menor quando precedia palavras de classe aberta, em ambos os grupos. Por serem frequentes na fala materna e anteriormente adquiridas, as palavras de classe aberta são utilizadas com mais constância e por mais tempo no cotidiano das crianças(2). Esse contato contínuo e precoce propicia a solidificação do conceito, da semântica e da fonologia dessas palavras, o que leva ao acesso lexical mais rápido e preciso(19,20).
Conforme amplia-se o vocabulário, a extensão do enunciado das crianças tende a aumentar concomitantemente e, desta forma, a introdução de palavras de classe fechada no enunciado torna-se necessária para que ocorra a conexão entre as palavras da sentença e entre as próprias sentenças. Sendo assim, por não possuírem referencial concreto e serem adquiridas posteriormente, é compreensível que o tempo médio das pausas silentes seja maior quando precede as palavras de classe fechada(21).
Quanto à duração dessas pausas, que também foi maior para crianças com DEL nas duas classes de palavras, ressalta-se que, como essas crianças usualmente apresentam prejuízo na memória e aquisição lexical mais lenta, que pode estar relacionada tanto a uma dificuldade simbólica (prejudicando a categorização dos traços semânticos desses vocábulos), quanto a uma desorganização do sistema fonológico (dificultando a representação fonológica das mesmas), o acesso lexical pode ser mais impreciso. Porém, apesar desse padrão, as palavras de classe aberta continuam a compor a categoria gramatical mais facilmente adquirida e utilizada por esses sujeitos, devido a sua grande carga de representação concreta(15,22).
Com relação às palavras de classe fechada, é sabido que essa população, que já apresenta déficits em outras etapas do processamento da linguagem, tem mais dificuldade para compreender a necessidade e o contexto correto da sua utilização. Assim, apresentam falhas na formação das regras gramaticais da língua e produzem sentenças curtas e sem refinamento sintático, necessitando de maior tempo para processar essas palavras conectoras, o que evidencia a razão pela qual as pausas que as precedem sejam maiores(21).
O fato de a população com DEL ter evidenciado o uso de pausas silentes mais longas do que as crianças em desenvolvimento típico, em todas as classes gramaticais estudadas, com exceção do numeral e da interjeição, reflete a dificuldade de aquisição lexical dessa população e reflete também, claramente, as incertezas desses sujeitos quanto à formulação linguística em atividade discursiva(2,21). Possivelmente, a ausência de diferença estatística em relação ao numeral e à interjeição ocorreu devido ao fato do estímulo eliciador das narrativas não ter favorecido a produção desse tipo de palavra em nenhum dos grupos, o que interferiu na análise dos dados relativos a essas classes de palavras.
A partir desses dados, verificou-se intrínseca relação entre a aquisição e utilização das classes gramaticais e seu impacto na fluência da fala em crianças em idade escolar, tendo sido possível verificar a diferença entre o nível de domínio linguístico em cada uma das populações estudadas.
Os resultados contribuem para a avaliação diagnóstica, ao indicarem que um discurso com pausas longas entre as palavras seja indicativo de comprometimento nas habilidades de elaboração discursiva. Portanto, o processo de intervenção terapêutica de crianças com alteração do desenvolvimento da linguagem deve considerar a necessidade de aprimorar o discurso desses sujeitos, permitindo que sejam capazes de transmitir sua mensagem com maior clareza e de uma forma mais elaborada.
A duração da pausa silente varia conforme a classe gramatical da palavra que será enunciada, sendo menor quando precede palavras de classe aberta. Além disso, o fato de os indivíduos com DEL apresentarem pausas silentes mais longas que seus pares, confirma a menor velocidade de seu processamento linguístico.