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A ECONOMIA DESUMANA: PORQUE MATA A AUSTERIDADE

A ECONOMIA DESUMANA: PORQUE MATA A AUSTERIDADE

Autores:

Leila Posenato Garcia

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.11 Rio de Janeiro nov. 2016 Epub 01-Dez-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00151116

David Stuckler é professor de Economia Política e Sociologia da Universidade de Oxford (Inglaterra). Sanjay Basu é epidemiologista e professor de Medicina na Universidade de Stanford (Estados Unidos). Conheceram-se enquanto estudavam Saúde Pública e passaram a investigar as relações entre economia e saúde. Realizaram inúmeros estudos cujos relatos foram publicados em renomados periódicos científicos. Nesses estudos, as estratégias políticas e econômicas dos países foram abordadas como "experimentos naturais", que permitiram produzir evidências sobre o efeito de intervenções distintas - o investimento social e a austeridade - sobre a saúde das populações. De forma consistente, os resultados de um grande volume de estudos demonstram que o estímulo a programas de saúde pública contribui para o crescimento econômico que, por sua vez, contribui para o pagamento da dívida dos países. Por outro lado, cortes em gastos sociais no curto prazo durante um período de recessão resultam em contração da economia e piora nos indicadores de saúde. Ou seja, a austeridade agrava a crise econômica, em vez de resolvê-la.

O livro A Economia Desumana: Porque Mata a Austeridade foi elaborado com o propósito de divulgar - para um público mais amplo e por meio de uma linguagem acessível - evidências de que escolhas políticas inteligentes podem impulsionar o crescimento e solucionar o problema da dívida dos países sem pôr em risco a saúde das populações. O livro traz, além de uma síntese de evidências de centenas de estudos, histórias reais de vidas humanas perdidas em consequência de escolhas econômicas desumanas.

O primeiro experimento natural relatado aborda as mudanças ocorridas na situação de saúde da população dos Estados Unidos no período da "grande depressão", após a queda da bolsa em 1929. Ao se debruçarem sobre os dados de mortalidade, os autores verificaram que, ao mesmo tempo em que a mortalidade por doenças infecciosas diminuía em consequência do processo de transição epidemiológica em curso, a mortalidade por suicídios e doenças não infecciosas aumentava vertiginosamente, contrabalançada pelo declínio da mortalidade por acidentes de transporte (atribuída à redução na compra de automóveis e combustíveis e do consumo do álcool). Os autores também examinaram o efeito do New Deal - acordo proposto pelo Presidente Franklin Roosevelt, que consistiu de uma série de programas voltados à geração de empregos, habitação, acesso a alimentos, saúde pública e combate à pobreza. Os estados que mais investiram nos programas do New Deal experimentaram melhorias em diversos indicadores de saúde - como redução da mortalidade infantil, por pneumonia, e por suicídio - significativamente mais acentuadas do que nos demais estados. Por isso, os autores consideram que o New Deal foi a principal política de saúde já implementada nos Estados Unidos, embora não idealizada para tal, além de ter sido fundamental para promover a recuperação econômica.

Como contraste, os autores trazem o exemplo da crise de mortalidade pós-comunista na década de 1990, quando morreram mais de 10 milhões de homens russos. Os óbitos se concentraram na faixa etária economicamente ativa, especialmente entre desempregados que passaram a sofrer com transtornos de depressão e ansiedade, uso abusivo do álcool e envolvimento em violência. O acúmulo de fatores de risco também levou ao crescimento vertiginoso da mortalidade masculina prematura por doenças cardiovasculares. Os autores compararam os dados da Rússia com aqueles de outros países do bloco soviético e observaram que o impacto sobre a saúde foi mais negativo naqueles que adotaram uma privatização rápida em comparação com os que realizaram uma transição mais lenta e que preservaram seus sistemas de proteção social.

Outro experimento natural é o caso países do leste da Ásia, conhecidos como "Tigres Asiáticos" que após um período de expansão econômica, o "Milagre Asiático", enfrentaram uma importante crise no final da década de 1990. Esses países, frente à crise gerada pela especulação econômica e imobiliária, recorreram ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que prescreveu medidas de austeridade, com a imposição de cortes de gastos, sobretudo na área da saúde. Indonésia e Tailândia sofreram consequências desastrosas, com aumento expressivo da mortalidade infantil e por AIDS. A Malásia seguiu uma via diferente, incrementou os gastos em saúde e auxílios para os mais pobres. Esse país não apresentou impacto grave à saúde pública e foi o primeiro a mostrar recuperação econômica.

Ao abordarem a grande recessão, os autores comparam a situação da Islândia e da Grécia, países que tomaram caminhos opostos. A Islândia, fortemente atingida pela crise em 2008, buscou o FMI, que condicionou a ajuda a severas imposições de austeridade. Contrariando pressões internacionais, o governo resolveu consultar a população. No referendo, realizado em 2010, os islandeses escolheram não pagar pelos erros dos banqueiros e investir na reconstrução da economia, em vez de arcar com dívida dos bancos privados e reduzir os gastos sociais. Após o "não" à austeridade, o país incrementou o gasto social e, como resultado, reduziu as desigualdades sociais e o desemprego, não sofreu consequências adversas à saúde pública, e ainda apresentou rápida recuperação econômica. Por sua vez, a Grécia aceitou a ajuda e as imposições do FMI e realizou severos cortes nos gastos sociais. Nesse ponto, os autores destacam que a austeridade aplicada na Grécia foi do pior tipo, pois priorizou os cortes na saúde, área que além de criar postos de trabalho, promove inovação tecnológica e tem potencial para propiciar um impulso à economia mais forte do que qualquer outro tipo de gasto público. A "tragédia grega" mostrou que a austeridade desencadeou uma espiral negativa - com aumento do desemprego, diminuição do consumo e da confiança dos investidores - que impulsionada pelos cortes dos gastos sociais, particularmente na área da saúde, resultou em uma situação calamitosa na saúde pública.

Na parte final do livro, são apresentadas e discutidas opções de diferentes países diante da crise econômica mais recente. A adoção de programas para reingresso no mercado de trabalho e de políticas de habitação revelou resultados positivos, de forma consistente. Por outro lado, as políticas de austeridade que restringiram o acesso à habitação estiveram relacionadas a epidemias e mortes, causadas, por exemplo, pelo vírus do Nilo Ocidental na Califórnia (Estados Unidos), pela tuberculose em Londres (Inglaterra) e pelo HIV em Atenas (Grécia). Por fim, os autores propõem princípios para a "cura do corpo econômico", com base nas evidências apresentadas, destacando o papel fundamental do investimento em saúde pública, especialmente em momentos de crise.

Em suma, o livro traz uma compilação de evidências irrefutáveis de que as políticas de austeridade são responsáveis por um massacre à saúde das populações e também resultam em consequências econômicas desastrosas. A principal ameaça para a saúde pública não é a recessão, mas sim a austeridade. É possível solucionar o problema da dívida sem pôr em risco a saúde, por meio do financiamento de políticas públicas adequadas. Cabe aos governos tomar as decisões políticas sobre o rumo da economia e arcar com as consequências de suas escolhas.

Seguindo o raciocínio dos autores, o Brasil faz parte de um "experimento natural" em curso. No momento em que a austeridade ameaça o Sistema Único de Saúde (SUS) 1, podemos escolher aplicar as lições aprendidas com a experiência de outros países, ou seguir um caminho distinto que pode levar o País a se tornar mais um exemplo de como mata a austeridade. A leitura dessa obra é altamente recomendada a todos os interessados em saúde pública e no futuro de nosso Brasil.

REFERÊNCIAS

1. Doniec K, Dall'Alba R, King L. Austerity threatens universal health coverage in Brazil. Lancet 2016; 388:867-8.