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A escrita de narrativas e o desenvolvimento de práticas colaborativas para o trabalho em equipe

A escrita de narrativas e o desenvolvimento de práticas colaborativas para o trabalho em equipe

Autores:

Cláudia Maria de Oliveira,
Nildo Alves Batista,
Sylvia Helena Souza da Silva Batista,
Lúcia da Rocha Uchôa-Figueiredo

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.20 no.59 Botucatu out./dez. 2016 Epub 13-Maio-2016

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0660

RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar la narrativa como una estrategia más para el desarrollo del trabajo en equipo a través de la práctica colaborativa. El presente texto consiste en un estudio cualitativo con análisis de entrevistas aplicadas a 18 estudiantes de la Universidad Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista, de los cursos de Educación Física, Fisioterapia, Nutrición, Psicología, Trabajo Social y Terapia Ocupacional. Los resultados revelan que la escritura de narrativas sensibiliza a los estudiantes para el cuidado en equipo multidisciplinario de salud, por medio de acuerdos y del respeto de las características profesionales y personales de cada uno.

Palabras-clave: Educación Interprofesional; Educación en salud; Narrativa

Introdução

Este artigo propõe-se a desenvolver uma reflexão sobre a importância das narrativas na formação profissional e no cuidado em saúde, a partir de uma estratégia educativa utilizada no Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-BS), para formação interprofissional de assistentes sociais, educadores físicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais.

Em uma compreensão ampla, narrativa é o nome dado “a um conjunto de estruturas lingüísticas e psicológicas, transmitidas cultural e historicamente, delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo e pela combinação de técnicas sócio-comunicativas e habilidades linguísticas”1 (p. 526).

Sendo assim, as narrativas fazem parte da vivência humana, pois o ser humano passa grande parte de sua vida contando histórias. Por meio das narrativas, é possível compreender os textos e contextos mais complexos de suas experiências. Esta noção tem norteado as diversas investigações de como se organizam a memória, as histórias de vida, intenções e ideais do self que corresponde às “identidades pessoais” narrativas. A busca de atribuição de significados pode ser considerada o centro da vida do homem1 e é, também, por meio da linguagem, que ele vai significando e ressignificando sua história.

Assim, as narrativas têm papel primordial na interação do indivíduo com sua consciência, na medida em que ele pode perceber, vivenciar e julgar suas ações e o curso de sua vida, o que possibilita um movimento de estruturação e reestruturação dessa consciência2.

Hydén3 situa que o conceito de narrativa começou a aparecer, nos estudos de medicina e do adoecimento, no começo dos anos de 1980, e que essas investigações, em geral, relacionavam-se aos conceitos de identidade e self.

A partir da década de 1990, Rita Charon, entre outros estudiosos, passou a sistematizar questões relativas às narrativas de pacientes. Em 2006, ela criou o termo Narrative Medicine para referir-se a uma metodologia que aposta em uma prática médica centrada no paciente, em sua escuta com atenção e empatia. Para tanto, as práticas médicas necessitam incluir habilidades de reconhecimento, assimilação e interpretações das histórias de adoecimento dos pacientes (stories of illness), como ferramenta terapêutica e complementar à Medicina Baseada em Evidências4,5.

Essas questões mostram como as narrativas podem contribuir para o tratamento de pacientes, a partir da interpretação de suas experiências com o adoecimento, a forma como lidam com a doença e as mudanças trazidas não só para o cotidiano desses pacientes, como, também, para os que fazem parte de suas vidas4,5.

Tais estudos evidenciam que as narrativas colaboram para o desenvolvimento da empatia dos profissionais, da confiança do paciente, da compaixão pela dor e sofrimento daquele que recebe o cuidado. Esse gênero do discurso pode também promover a reflexão dos profissionais sobre suas próprias práticas, em busca de melhores diagnósticos e abordagens5.

Na formação de futuros profissionais de saúde, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação6, aprovadas entre 2001 e 2004, traçam o perfil de um formando egresso/profissional com formação “generalista, humanista, crítica e reflexiva”, considerando não só as dimensões biológicas e tecnicistas da formação desses profissionais, mas, também, aspectos psicossociais de seres humanos “historicamente situados”. Contemplam, além dos conteúdos específicos e técnicos, aqueles provenientes das Ciências Sociais e Humanas para o desenvolvimento pleno desses profissionais.

Levando-se em consideração que algumas questões no atendimento em saúde não podem ser objetivadas, existe a necessidade de se apostar em uma formação voltada para criação de vínculo entre profissional da saúde e paciente, para a empatia, o sentimento de confiança entre ambos e maior adesão do paciente ao tratamento.

As narrativas ganham relevância, no âmbito da formação profissional, como uma prática capaz de promover a escuta sensível, a observação, o estabelecimento de vínculo, a problematização, a autonomia, o questionamento, a articulação entre teoria e prática, e o conhecimento de um cenário de prática7.

Uma das vantagens em trabalhar com as habilidades narrativas na formação em saúde diz respeito ao desenvolvimento de um profissional mais atento aos pacientes e às suas experiências. Além disso, esses profissionais tornam-se precisos na interpretação das histórias de vida de seus pacientes5.

Em busca da promoção de mudanças nos perfis dos profissionais em formação, algumas experiências vêm sendo desenvolvidas em instituições de Ensino Superior brasileiras, como é o caso do Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-BS), que tem buscado romper com o modelo de formação tradicional, centrado nas disciplinas e na formação específica de determinado perfil profissional.

Esse Campus apresenta uma proposta pedagógica centrada na formação interprofissional e interdisciplinar em saúde, comprometida com um futuro profissional que esteja apto para o trabalho em equipe8.

A Educação Interprofissional (EIP) tem como característica o trabalho em equipe que, segundo Peduzzi9, “consiste numa modalidade de trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as intervenções técnicas e a interação dos agentes” (p. 103). Esta estratégia prepara os profissionais de saúde para a prática colaborativa, reconhecida, em 2010, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) pelo documento Marco para Ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa. Este documento tem por objetivo propor estratégias e ideias que auxiliem tanto a EIP quanto a prática colaborativa, reconhecendo a fragmentação e a dificuldade dos diversos sistemas de saúde mundiais para administrar as demandas de saúde não atendidas10.

A concretização da EIP na graduação em saúde ficou mais explícita nas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina, promulgadas em 2014, que privilegiam, entre outros aspectos, um cuidado no qual prevaleça o trabalho interprofissional, em equipe11.

De acordo com o Projeto Político-Pedagógico do Campus Baixada Santista8, a organização curricular é direcionada por quatro eixos: 1 Trabalho em saúde; 2 O ser humano em sua dimensão biológica; 3 O ser humano e sua inserção social; e 4 Aproximação a uma prática específica em saúde.

Essa estruturação permite que os alunos aprendam sobre a sua área de formação específica e, ao mesmo tempo, conheçam a área de formação dos demais estudantes, levando-se em consideração outras dimensões do adoecimento dos indivíduos, além de seus aspectos biológicos8.

As atividades de ensino-aprendizagem são organizadas em módulos semestrais, ministrados, nos três primeiros anos da graduação, por docentes de diferentes áreas profissionais, em turmas mistas.

No eixo Trabalho em Saúde (TS), tanto alunos quanto docentes são expostos a experiências que visam ao questionamento às teorias fechadas e refratárias ao concreto da vida, sendo chamados a exercitarem o raciocínio clínico e a lidarem com dimensões clínicas/éticas/políticas, envolvidas no trabalho em saúde12.

Em uma dessas atividades, os estudantes são orientados a construir narrativas clínicas, em duplas interprofissionais, a partir da escuta da história de vida de munícipes residentes em regiões de maior “vulnerabilidade” social, da cidade de Santos/SP. A relevância do trabalho com as narrativas é justificada pela possibilidade de aproximação entre alunos, serviços de saúde e a realidade do contexto de vida e de saúde dos usuários desses serviços.

Este artigo tem como objetivo analisar o potencial da narrativa como estratégia para o desenvolvimento do trabalho em equipe e da consequente prática colaborativa13.

Método

O presente artigo origina-se da pesquisa de mestrado “A formação interprofissional em saúde e o processo de produção de narrativas: construindo caminhos de aprendizagem”14. Esse estudo teve como objetivo geral descrever e analisar o percurso feito pelos estudantes do 2º ano de graduação dos cursos de Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional, da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista, para produzirem narrativas de histórias de vida, em duplas interprofissionais de estudantes, com munícipes residentes em regiões de maior vulnerabilidade social da cidade de Santos/São Paulo: Centro, Morro e Zona Noroeste.

Para a pesquisa de mestrado, utilizou-se uma abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, em 5/04/2013.

Foram utilizados dois instrumentos de coleta de dados: questionário de múltipla escolha, aplicado a 146 estudantes matriculados no módulo investigado, e entrevistas semiestruturadas realizadas com 18 destes, as quais foram gravadas, transcritas e analisadas, de acordo com a técnica de análise de conteúdo, modalidade análise temática15.

O questionário foi composto por nove perguntas fechadas, abordando questões sobre o comportamento dos graduandos em função de seus hábitos de escrita e leitura, com a finalidade de caracterizá-los descritivamente.

Para a produção de maior profundidade possível de informações sobre o processo de escrita das narrativas, as entrevistas foram realizadas ao longo do semestre letivo, em três etapas: a primeira, ao início do módulo, com o objetivo de coletar dados sobre conhecimentos prévios de narrativas em saúde e sobre as dificuldades que os estudantes pressupunham encontrar para a escrita desse gênero textual. A segunda, após a supervisão feita em sala de aula com os docentes, no sentido de obter informações sobre o processo de escrita e as dificuldades e facilidades encontradas na prática. A terceira, ao final da elaboração da narrativa, para obter informações sobre a contribuição dessa produção textual para a vida dos estudantes.

A análise temática foi feita a partir de três grandes temas: 1 Dificuldades e facilidades encontradas no processo de produção de narrativas; 2 A produção de narrativas no contexto interprofissional; 3 Impactos da experiência de produção de narrativas para os estudantes.

Para atender ao objetivo deste artigo, os resultados e as discussões apresentados estão centrados na categoria 2.

Por razões éticas, os estudantes foram identificados por seus cursos: FIS (Fisioterapia), NUT (Nutrição), EF (Educação Física) e PSI (Psicologia); e pelas etapas da pesquisa: F1 (Fase 1), F2 (Fase 2) e F3 (Fase 3).

Resultados e discussões

Os resultados encontrados nas três etapas das entrevistas foram convergentes, tendo em vista que muitos elementos tidos como pressupostos facilitadores e/ou dificultadores para a escrita conjunta de narrativas, indicados em F1, se confirmam em F2 e F3. Neste artigo, são trazidas, mais especificamente, as questões relacionadas ao trabalho em equipe e às práticas colaborativas.

Uma característica marcante que emergiu das entrevistas foi a narrativa como potencial para a promoção do trabalho em equipe, na medida em que essa atividade, em duplas de estudantes de cursos diferentes, proporciona o desenvolvimento de habilidades essenciais para essa modalidade de trabalho, tais como: saber escutar, negociar, dialogar, tomar decisões, considerar os limites de cada profissão e respeitar as diferenças.

Inicialmente, buscavam-se investigar os pontos facilitadores e dificultadores encontrados pelos estudantes para escrever narrativas, do ponto de vista da produção textual, como, por exemplo: escolha de foco narrativo, organização do texto, entre outros.

Porém, no decorrer das entrevistas, emergiram, também, aspectos que envolviam, mais especificamente, as facilidades e dificuldades do saber escrever e trabalhar em duplas interprofissionais, a partir de atitudes consensuais.

Observou-se a necessidade de que os estudantes de cada dupla fizessem acordos entre si, apontando a importância do diálogo e da articulação, na busca de solução de problemas e dissolução de conflitos, a partir de atitudes comuns e consensuais. A análise das entrevistas indica que essas competências perpassam as três fases da pesquisa, conforme destacado pelos estudantes.

Em uma tentativa de preencher a lacuna existente para se classificarem as competências necessárias às práticas colaborativas, Barr13 define-as em três tipos (tradução livre): comuns (competências comuns a todas as profissões); complementares (competências específicas de cada área profissional e que podem complementar as demais); e colaborativas (aquelas em que ocorre a colaboração com profissionais da mesma área de atuação, com profissões distintas, com não profissionais, dentro das organizações, entre as organizações, com os pacientes e seus cuidadores, com voluntários e com grupos comunitários).

Em relação às competências comuns, identificou-se que a escrita da narrativa ajuda a despertar a consciência de que características individuais, necessárias a todos os profissionais da saúde – como saber escutar, ser tolerante, estar aberto às opiniões dos demais profissionais e saber ceder –são essenciais para que o estudante encontre, no colega de dupla, um parceiro, no momento da construção do conhecimento. Ao tomarem consciência disso, os graduandos já vão aprendendo a lidar, inclusive, com o sentimento de competição e com as diferenças pessoais e profissionais:

“[...] você tem que assim... estar aberto... sabe? pra opinião da dupla, né? [...] estar aberto a... opiniões e... tentar achar um ponto comum... sabe? que às vezes você tem uma ideia a pessoa tem outra... mas se tiver paciência parar... escutar... dá pra achar um ponto comum que fica bom para as duas pessoas [...]”. (NUTF3)

Em suas falas, os próprios alunos demonstram ter superado as diferenças existentes entre os componentes das duplas, havendo respeito mútuo:

“[...] eu percebo que eu e a minha dupla, a gente tinha um pouco de diferença nisso... assim... na hora de escrever... que ele escrevia muito formal e eu mais informal... tal... e aí... na hora de escrever a narrativa... a gente foi juntando as informações... acabou que a linguagem ficou um pouco da dele... mas a gente também tentou falar um pouco do meu jeito [...]”. (NUTF3)

“[...] eu acho que o contato com outra pessoa... com o indivíduo foi o que mais mexeu comigo... porque é uma realidade totalmente diferente da minha... a que a munícipe vivia... até a idade também... porque ela é bem idosa...os valores que ela tinha são diferentes dos meus [...] no começo... foi meio estranho eu conviver com essas diferenças [...] tanto eu quanto meu outro parceiro também a gente tinha diferenças e aí eu achei importante porque no futuro, como profissional... a gente tem que saber entender essas diferenças e compreender todos os aspectos sociais...culturais e políticos pra juntar com aspectos biológicos do paciente... né? do indivíduo que a gente vai trabalhar [...]”. (EFF3)

De fato, constituir dupla com um amigo facilita o trabalho a ser desenvolvido, mas, quando isso não acontece, os estudantes entrevistados aprendem a lidar com as dificuldades interacionais. Dessa forma, a escrita das narrativas em duplas também promove o respeito às diferenças, pois os estudantes aprenderam a considerar a opinião do outro em prol de um interesse em comum, os munícipes.

Nas palavras de Batista16:

a EIP se compromete com uma formação para o interprofissionalismo, no qual o trabalho de equipe, a discussão de papéis profissionais, o compromisso na solução de problemas e a negociação na tomada de decisão são características marcantes. Para isso, a valorização da história de diferentes áreas profissionais, a consideração do outro como parceiro legítimo na construção de conhecimentos, com respeito pelas diferenças num movimento de busca, diálogo, desafio, comprometimento e responsabilidade são componentes essenciais. (p. 61)

As competências colaborativas foram evidenciadas nos relatos dos graduandos, desde a primeira etapa das entrevistas (F1), ou seja, antes do início do trabalho de campo:

“[...] eu acho que vai ser um desafio [...] na hora da gente conversar... e decidir o que a gente vai pôr, a gente vai ter que ter toda uma discussão [...] a gente quer uma coisa... mas a nossa parceira quer outra e que as duas visões podem se completar então... eu tenho que entender o que ela tá tentando me dizer e ela tem que entender o que eu tô querendo dizer pra ela [...] quando... é individual... você vai decidir o que você quer colocar e você coloca... ninguém vai falar “ah... não tá legal”... e quando você faz em dupla ou até em grupo... é diferente porque você tem... várias cabeças pensando junto e tem várias ideias... então a gente tem que elaborar e escolher [...]”. (NUTF1)

Na segunda etapa da entrevista, durante o processo da escrita, o diálogo é identificado como um dos aspectos fundamentais para a superação do desafio do trabalho conjunto, a fim de se estabelecer o consenso entre os alunos:

“[...] depois das visitas, sempre se reunia e conversava [...] no diário de campo a gente sempre coloca muita coisa, então ajudou bastante na hora de fazer a narrativa porque eu tinha uma visão ela tinha outra, mas na hora que a gente conversava a gente entendia que era aquilo que era importante colocar [...]”. (NUTF2)

O depoimento do estudante de Terapia Ocupacional, por exemplo, na terceira fase das entrevistas, revela o reconhecimento dos limites próprios de atuação profissional, logo no início da graduação, e a possibilidade de aprendizagem conjunta, como facilitadora da troca de saberes e da agregação de novos conhecimentos: o que vai ao encontro das competências complementares:

“[...] creio que quando eu sair da faculdade eu não vou trabalhar sozinha... então eu preciso ter esse contato com os outros cursos... outras pessoas [...] porque muitas vezes as duplas são formadas não com pessoas do nosso cotidiano assim... eu não converso tanto com a pessoa... mas na sala de aula ela é a minha dupla... então a gente vai aprendendo a respeitar o espaço do outro... saber mesmo no que atua... porque muitas vezes a gente pensa ‘Ah... Nutrição...é só passar cardápio e acabou’ e não é assim... entendeu? [...]”. (TOF3)

Conforme discutido por Batista16, a necessidade de integração profissional no cuidado, a partir das novas interações no trabalho em equipe, na qual ocorram trocas de saberes e experiências pautadas pelo respeito à diversidade, possibilita a cooperação para o desenvolvimento de práticas de saúde transformadoras, para parcerias na construção de projetos e para que se estabeleça o diálogo permanente.

Nesse sentido, Aguilar-da-Silva et al.17 enfatizam que “a competência de cada profissional, isoladamente, não dá conta da complexidade do atendimento das necessidades de saúde, portanto, é necessário flexibilidade nos limites das competências para proporcionar uma ação integral” (p. 175).

Quando os graduandos compreendem que limitados à sua área de formação profissional não poderão atuar sem a ajuda das demais áreas, mostram-se abertos para a futura atuação em equipe e para o cuidado em saúde de forma integral.

O fato de o estudante conhecer e respeitar a atuação do colega de dupla pode fortalecer seu próprio reconhecimento como parte integrante de uma equipe. Nesse contexto, cada profissional toma decisões utilizando habilidades profissionais específicas, em busca de um objetivo comum9,18.

A ideia de agrupamento pode intensificar a noção do cuidado da doença, dentro de um modelo biológico do adoecimento e de uma visão fragmentada do paciente. A proposta do trabalho em equipe, por outro lado, adota uma concepção do cuidado voltada para o atendimento integral do ser humano e para as reais demandas de saúde da população, dentro do modelo biopsicossocial9,18.

Nesse sentido, a narrativa oferece a oportunidade de aprendizagem voltada para o cuidado integral, na medida em que cada estudante precisa estar atento e entregue à escuta da história de vida dos munícipes, considerando que cada detalhe pode ser revelador para a adequação do tratamento.

Outro aspecto emergente nas entrevistas foi o da narrativa em um contexto interprofissional como um facilitador para a atividade de escrita.

De maneira geral, os resultados encontrados indicaram que os alunos reconhecem aspectos positivos quanto ao trabalho em duplas interprofissionais, antes mesmo de iniciarem as atividades do módulo, na primeira etapa das entrevistas. A fala do estudante do curso de Nutrição indica que o auxílio de um colega de sala de aula contribuiu para a organização de ideias: “[...] quando você está com outra pessoa... é mais fácil você ...organizar as ideias [...] duas pessoas pensando juntas fica mais [...] fácil na hora de... fazer um texto mais completo... assim, mais coerente...quando tem duas opiniões [...]” (NUTF1).

A escrita em duplas emerge, então, como elemento facilitador, pois quando os graduandos têm a oportunidade de compartilhar entre si a “amarração” das palavras, o trabalho de escrita pode parecer-lhes mais leve. Seus relatos denotam que o encontro com um colega de área de formação diferente, com o qual se faz necessário formar um vínculo, para o sucesso da escrita da história de vida de um (ou mais) personagem (personagens), facilita não só o trabalho de escrita da narrativa, mas, também, favorece a aprendizagem no que diz respeito à área de formação do colega com quem escreve.

“[...] a maneira que a gente escreve... não é tão diferente... então eu acho que facilitou...então... cada um vai despertando no outro uma forma... e a gente com isso vai entendendo, né? porque a gente tem uma boa relação... não é cada um faz... não... a gente faz junto... [...] eu achei muito legal esse negócio de... cada um ser de uma área diferente porque teve coisas na TO que eu achei super assim... legais..., e eu falei ‘nossa, que legal vocês estão fazendo isso’...”. (FISF1)

“[...] acho que facilita a questão de ser em dupla [...] em relação a ser de outro curso [...] eu acho que isso pode agregar na narrativa pelo fato de ter... outros conhecimentos... outras aulas específicas [...] porque tem coisas de fisioterapia que eu não tenho ideia né? e ela pode trazer essas informações da área dela... mais facilmente do que se eu fosse procurar pesquisar [...]”. (PSIF1)

A atividade de escrita em duplas é citada, ainda, em diversas falas, como um trabalho muito tranquilo. Não é novidade que a responsabilidade de elaboração de diversas atividades em duplas ou grupos, desde o Ensino Fundamental e Médio, pode acabar recaindo sobre um ou outro componente do grupo/dupla. Porém, no caso das narrativas elaboradas pelos estudantes entrevistados, ainda que, de modo geral, tenham sido escritas metade por um dos estudantes da dupla e, depois, finalizadas pelo outro, com base nos diários de campo de cada um, elas sempre estiveram mediadas pelo acordo e pela aprovação de ambos os componentes dessa dupla.

“ela transcreveu muito literal... então um discurso muito cortado... frases curtas... palavras muito... assim... todo um vocabulário do dia a dia... e aí a gente conversou sobre isso... eu mostrei alguns trechos... falei ‘olha isso aqui... por exemplo... é um discurso um pouco mais elaborado... para uma pessoa que leia... isso aqui tá parecendo mais uma conversa informal... você não acha melhor a gente transformar essas partes’ ... e ela ‘ah... tem razão... ficou sem sentido’, então também é muito legal aceitar esse tipo de crítica e aí refez e ficou muito legal... parece um texto único... redigido por uma só pessoa... porque ela que sugeriu fazer em primeira pessoa... eu comprei a ideia e aí depois... quando precisei sugerir que ela fizesse essa alteração... ela super aceitou de boa... então teve um entrosamento legal... a gente trabalhou bem [...] então a gente adaptou a gíria ... erro gramatical... erro de português... né?”. (PSIF3)

Esse depoimento mostra, também, a importância da escrita individual do diário de campo e do relatório final, como forma de corresponsabilidade de ambos os alunos, pela escrita das narrativas.

Na etapa final do estudo, um aluno de Fisioterapia informou não ter encontrado problemas para a elaboração de narrativas em duplas, pelo fato de ter familiaridade com a colega:

“[...] foi muito fácil... eu tinha uma afinidade MUITO grande com a pessoa que eu fiz... então isso ajudou muito mesmo... a gente não brigou nenhuma vez...a gente foi muito companheiro um do outro... meio que um completava o outro de verdade... então foi um trabalho bem legal de se fazer [...]”. (FISF3)

Capozzolo et al.12 alertam para a necessidade de se questionar quanto “as diferenças e vizinhanças entre o coletivo de convivência e a equipe profissional” (p. 130) não têm sido discutidas na formação, sob o risco de “transformar o trabalho em equipe profissional em recurso possível na condição idealizada de poder ser constituída por amigos” (p. 132).

A produção de narrativas permite reconhecer, enfim, que a atividade de escrita em duplas reforça aspectos do trabalho em equipe interprofissional. Para isso, a criação de espaços de discussão do processo que envolve a elaboração das narrativas, com ênfase nos sentimentos experimentados, também ganha relevância para a administração de conflitos pessoais.

Considerações finais

A atividade de escrita de narrativas em duplas na formação interprofissional em saúde mostrou-se uma experiência criativa, crítica, reflexiva e inovadora para o ensino das Ciências da Saúde, fazendo parte do curriculum do segundo ano da graduação do Campus Baixada Santista - Unifesp. Com efeito, essa metodologia ativa de ensino pode ser utilizada como uma ferramenta facilitadora a mais para o desenvolvimento de competências consideradas fundamentais às práticas colaborativas.

Os relatos dos estudantes evidenciaram que as competências comuns, as complementares e as colaborativas permeiam as etapas da produção textual conjunta.

A escolha metodológica pela análise do percurso feito pelos estudantes, para a escrita de narrativas em três etapas, trouxe ganhos significativos para a pesquisa, na medida em que possibilitou desvelar o processo do trabalho de escrita conjunta de forma ampliada e aprofundada.

É importante ressaltar que a metodologia utilizada mudou os rumos do estudo, o qual possibilitou o conhecimento de questões que transcendiam o objetivo inicial da pesquisa de mestrado, ou seja, investigar, sobretudo, as dificuldades e facilidades textuais que envolviam a escrita da narrativa, antes do início das atividades (F1); no processo, ou seja, durante a prática (F2); até a conclusão da atividade (F3). Essas questões envolviam, também, os desafios que a atividade em duplas interprofissionais trazia aos alunos, tendo em vista que esta atividade ocorre em um contexto de formação interprofissional e interdisciplinar, e está permeada pelas interações entre: alunos, docentes, profissionais, usuários, comunidade e serviços de saúde.

O estudo mostrou-se um contributo bastante válido para a formação em saúde e para a prática profissional, na medida em que analisa criticamente os resultados de uma experiência inovadora, na qual os futuros profissionais desenvolvem habilidades fundamentais para o trabalho em equipe, como: estar aberto à escuta, à negociação, ao diálogo, à tomada de decisões, à compreensão dos limites próprios de cada profissão, ao respeito mútuo e às diferenças.

Outro aspecto a ser destacado é o de que o estudo aborda uma atividade que traz as experiências com o adoecimento para o centro do cuidado, com foco na pessoa e nos aspectos psicossociais de seu adoecimento, a fim de se oferecerem práticas de atenção à saúde mais humanizadas.

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