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A ética do cuidado de si como criação de possíveis no trabalho em Saúde

A ética do cuidado de si como criação de possíveis no trabalho em Saúde

Autores:

Eliane Oliveira de Andrade,
Luiz Renato Paquiela Givigi,
Ana Lúcia Abrahão

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.22 no.64 Botucatu jan./mar. 2018 Epub 19-Out-2017

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0643

ABSTRACT

The objective of this paper is to contribute to the discussion about practices in the offer of care, guided by the challenge of escaping from the hegemony of prescriptive and homogenizing references in the field of Health, specifically those references that subsume processes of experimentation of a life in to a general and abstract notion of life. This is done with the aim of fitting subjects’ experiences into truths that prescribe ways of living that are based on moralizing and undermining conceptions. Based on the work of the philosopher Michael Foucault, the focus of the paper will be on thinking about a way of being in the midst of health care work, grounded in an ethical viewpoint that supports the notion of life in its broadest sense, guided by what Foucault called the “ethics of self-care”.

Key words: Ethics; Self-care; Health care

RESUMEN

El objetivo de este artículo es contribuir con la discusión de las prácticas de producción del cuidado, regidas por el desafío de su desplazamiento de la hegemonía de los factores referenciales prescriptivos homogenizados en el campo de la Salud, es decir, de aquellos que someten los procesos de experimentación de una vida a una idea general y abstracta de la vida, buscando encuadrar la experiencia de los sujetos en verdades que dictan formas de vivir basadas en concepciones moralizantes y despotencializadoras. Nuestro esfuerzo será el de pensar, a partir de la filosofía de Michael Foucault, un modo de estar en el medio de los procesos de producción del cuidado basados en una perspectiva ética a favor de la vida en su sentido más amplio, norteados por aquello que el filósofo denominó de una “ética del cuidado de sí”.

Palabras-clave: Ética; Cuidado de sí; Cuidado en Salud

Introdução

A proposta deste trabalho é contribuir para a discussão das práticas de produção do cuidado pautadas pelo desafio de se deslocarem da hegemonia de referenciais normativos e homogeneizantes que, muitas vezes, acabam determinando as relações no campo da Saúde. Ao mesmo tempo, e uma vez que são hegemônicas, e não totalizantes, buscaremos apontar para a possibilidade sempre presente de outras formas de produzir cuidado em saúde. Para levar adiante tal objetivo, tomaremos como referencial teórico as análises do saber, do poder e da ética desenvolvidas pelo filósofo Michel Foucault a fim de se pensar outros modos de estar em meio aos processos de cuidar.

Como trabalhadores/pesquisadores inseridos nesse campo, tal empreitada visa, ainda, colocar em análise os lugares que ocupamos nas práticas de saber, poder e subjetivação, apostando naquilo que Foucault1 denominou “ética do cuidado de si” como caminho possível para um cuidado que escape aos processos de dominação da vida, produtores de padecimentos tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado.

Os paradoxos da ética na atualidade

O tema da ética, tradicionalmente circunscrito ao campo filosófico, vem ganhando cada vez mais relevo no debate contemporâneo. Assim, tanto na produção de diferentes campos do conhecimento quanto na vida cotidiana, parece existir um clamor relativo a essa questão, acompanhado de uma tendência que convoca os indivíduos a se posicionarem eticamente frente às mais diversas questões colocadas pelo contemporâneo. A análise que se costuma fazer a esse respeito é a de que vivemos uma crise de valores, fato que pode ser sobejamente observado pela quantidade de discursos pronunciados por especialistas que apontam para a necessidade de mais leis, rigor e punição relativos ao cumprimento das normas sociais. A consequência de tais análises faz-se ainda acompanhar por discursos que clamam por maiores controles que, supostamente, melhor regulariam as relações entre os indivíduos, doravante interpretadas como desordenadas.

A referência à crise de valores aqui é um tanto quanto irônica e visa fazer uma crítica a esse modo de interpretação do campo social. Na verdade, pensamos que tais discursos são em si mesmos produtores de maneiras de se relacionar com o mundo, implicadas com a própria produção da sensação de crise subjetiva e de sua consequente captura pelas agências produtoras de verdades. Suely Rolnik2 denomina esse sentimento de “síndrome da carência-e-captura”, que, grosso modo, e no que concerne ao campo em questão, significa a produção de um profissional de saúde que se quer apto a responder às mais variadas situações, demandando por sua vez um constante aprimoramento pelo consumo de capacitações que supostamente conteriam a verdade e a solução dos problemas.

Confundindo a instabilidade própria das relações contemporâneas com a noção de desordem, o atual apelo à ética se fará então por um apelo ao retorno de regras mais rígidas, supostamente capazes de produzir uma maior moralização do tecido social. Aqui, a referência à ética será facilmente identificada como uma espécie de moralização das relações, isto é, como fechamento da possibilidade de se pensar outras formas de estar no mundo, uma vez que, em vez de afirmar a crise dos códigos endurecidos como possibilidade de invenção de novas maneiras de ser e estar com o outro, demandam por mais limites e contenções. Basta abrirmos o jornal ou ligarmos a televisão para observarmos esse reiterado olhar negativo dirigido às relações humanas. Frente a qualquer situação de conflito, as saídas apontadas costumam ser as mesmas, ora indicando a ausência de leis mais rigorosas, ora assinalando a falta de fiscalização e cumprimento das que já existem.

No âmbito do cuidado em Saúde tal produção não é diferente, uma vez que a referência à ética aponta para o respeito aos códigos que prescrevem as condutas das respectivas profissões, nas quais as faltas são atribuídas ao cumprimento ou não dessas normativas, descrito por códigos de “ética” que, na verdade, dizem respeito a parâmetros legais que definem aquilo que se deve ou não fazer, bem como suas punições. Uma vez que se supõe que as verdades estão contidas nesses códigos, as soluções propostas em vista da constatação de sua fragilidade em dar conta dos tensionamentos e da complexidade das situações serão buscadas no apontamento de culpados(d), na falta de fiscalização ou na produção de mais códigos, portarias, legislações e regulamentos.

Diferente disso, e aliados a Foucault3, para quem a ética está relacionada a uma atitude de crise e de crítica, queremos pensar a ética – e nesse sentido também o cuidado – como um exercício de experimentação em meio a processos sempre singulares, isto é, em meio a relações sempre inéditas que interrogam os códigos em sua abstração homogeneizante. Queremos pensar uma ética identificada àquelas situações em que as certezas anteriormente garantidas pelas verdades dos códigos fracassam, exigindo dos sujeitos uma atitude de reinvenção dos modos de relacionamento consigo, com os outros e com as próprias verdades estabelecidas.

Assim, diferente de uma posição que busca negar a crise, afirmamos a ética como acolhida dos tensionamentos inerentes às relações de poder entre os sujeitos envolvidos nos processos de cuidado e de vida. Para além do bem e do mal, pensamos as desestabilizações não como algo a ser consertado. A desestabilização não é um defeito, mas a condição, ou melhor, o espaço-tempo oportuno para a construção da ética, para fazer proliferar as múltiplas possibilidades de pensar e agir, de inventar novas maneiras de estar com o outro, de cuidar-se e de cuidar.

Ainda quanto aos paradoxos em torno da ética no contemporâneo, vale ressaltar que um dos equívocos bastante comuns em nossas formas de pensar aquilo que Foucault4 chamou de doenças do poder, que são a “dominação e o fascismo”(e), é o de pensar que tais patologias se encontram em regimes extremamente violentos ou de dominação absoluta, como foram o nazismo na Europa e as ditaduras na América Latina. Todavia, a partir da perspectiva que aqui adotamos, pensamos que é justamente no momento em que se passa a afirmar uma crise de valores, de ausência de controle ou de uma suposta exacerbação das liberdades é que devemos tomar cuidado, pois se é certo que este momento constitui-se em uma oportunidade para o exercício das práticas éticas, é certo também que ele porta toda uma tentativa de imposição de verdades fundamentais que se aproveitam do desespero de muitos. Em suma, pensamos que as relações entre os seres humanos, quais quer que sejam, devem ser cuidadas com práticas de liberdade, que é a própria condição da ética, e não com práticas de controle e rebaixamento da autonomia do outro e de nós mesmos.

Do lugar do especialista nas práticas de verdade e poder

Em meados da década de 1970, Michel Foucault coloca o problema da ética nos chamando a atenção para uma série de modulações nas formas de exercício do poder que caracterizam nossa sociedade. Nesse sentido, ele afirma que na modernidade há uma modulação da série tradicional do governo político em que o poder era exercido pela exterioridade de um soberano. Tal afirmação se dá com base na inversão provocada pelo conceito de “governamentalidade” adotado por Foucault5 a fim de analisar o surgimento dos novos diagramas de poder que darão sustentação ao surgimento dos grandes Estados territoriais, que, por sua vez, darão ensejo a práticas de governo que assumem um caráter cada vez mais cotidiano.

O termo governo aqui diz respeito ao seu significado amplo.

Devemos deixar para este termo a significação bastante ampla que tinha no séc. XVI. Ele não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados; mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes [...] Governar, nesse sentido, é estruturar o campo de ação dos outros.5 (p. 244)

O desenvolvimento de tais práticas, denominadas por Foucault de “artes de governar” – em oposição aos discursos sobre o governo pautados no modelo do príncipe de Maquiavel – produz uma modulação nos modo de pensar o poder como possuindo um centro fixo, fazendo com que o Estado e suas instituições, ou as classes ditas dominantes, percam suas características de centro emanador do poder. O poder, não sendo mais entendido como domínio de uma classe, passa então a ser pensado como exercício nas relações entre os seres humanos, relações de poder cotidianas, condução de conduta perpassada por todo um campo de gestos, “respostas, reações, efeitos e invenções possíveis”4 (p. 243).

Paradoxalmente, o que esta nova organização dos mecanismos de exercício do poder quer demonstrar não é um menos de controle, mas um mais de governo. O que está em jogo, portanto, é o caráter multivetorializado dos exercícios de poder, não havendo uma evidente separação entre quem exerce e quem o sofre. “O poder é coextensivo a toda relação social”4 (p. 247).

Trata-se, desse modo, de um desbloqueio das práticas de governo antes restringidas ao modelo jurídico do soberano cuja preocupação avança para além das relações deste com seu território, passando para um regime interessado em governar também as “coisas”, “problemática geral do governo em geral”5. Daí o uso de expressões como “microfísica do poder” ou mesmo “biopoder”, esta última utilizada para caracterizar um regime de poder que incide sobre a vida não apenas para fazê-la cessar, como era o caso do modelo da soberania, mas sobretudo para investi-la positivamente.

A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer [...] o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no como da vida [...]6. (p. 294-5)

De um ponto de vista histórico, a preocupação com esta incrementação positiva do viver com seus desvios e acidentes a serem controlados pode ser designada como sociedade de normalização. Segundo Foucault6, as sociedades de normalização surgem no fim do século XIX para dar conta da patente inoperância do modelo jurídico do soberano em reger econômica e politicamente uma sociedade em vias de expansão demográfica e de industrialização.

Com efeito, será para abarcar tais fenômenos que veremos surgir o que Foucault denominou sociedade de normalização. Segundo o autor, sua novidade consiste em ter conseguido conjugar dois mecanismos de poder distintos: os mecanismos do poder disciplinar (século XVII e início do XVIII) e os mecanismos de um poder regulamentador (fim do século XVIII). Em outros termos, um poder exercido como anátomo-política do corpo-organismo a partir de instituições disciplinares e, por outro lado, uma biopolítica da população por meio de mecanismos regulamentadores do viver.

Temos, portanto, desde o século XVII (ou em todo caso desde o fim do século XVII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem cronológica e que são sobrepostas. Uma técnica que é, pois disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população6. (p. 297)

Assim, a mudança nas relações de forças que dão ensejo à entrada da vida nos mecanismos da produção trará toda uma preocupação com a higiene e com a performance do corpo mediante o jogo duplo de um poder individualizante e totalizante, corpo do indivíduo e corpo da população cujo saber médico será seu representante mais importante. Isso porque, segundo o autor, o saber-poder da medicina possui precisamente a característica de incidir sobre o corpo e sobre a população ao mesmo tempo. Daí a importância em se analisar quais forças estão em jogo quando exercitamos nosso fazer em saúde, uma vez que, ao fazer circular esses saberes, corremos o risco de assumir um lugar de autoridade sobre a vida do outro.

O próprio advento do hospital como dispositivo terapêutico – outrora lugar de acolhida dos desassistidos no momento de sua morte – demonstra esta passagem. Como afirma Foucault5, não foi a partir de uma técnica médica que se deu a reordenação do hospital como dispositivo de produção de saúde, mas sim por uma tecnologia política, isto é, pelo aperfeiçoamento da disciplina como técnica de gestão dos seres humanos. Distribuição espacial dos indivíduos, classificação, hierarquização das relações e das atividades, supervisão constante dos gestos e não propriamente dos resultados, vigilância e registro vão permitir que o hospital se medicalize, isto é, vão permitir que o médico assuma a autoridade sobre o processo de saúde e doença, em detrimento do pessoal e religioso, cujo saber passa a ser desqualificado.

Todavia, segundo Foucault6, se esse poder é confiado ao médico é porque, nessa época, algo também se modula na formação do médico.

No sistema epistêmico ou epistemológico da medicina do século XVIII, o grande modelo de inteligibilidade da doença é a botânica, a classificação de Lineu. Isso significa a exigência da doença ser compreendida como fenômeno natural [...] O indivíduo sadio, quando submetido a certas ações do meio, é o suporte da doença, fenômeno limite da natureza. A água, o ar, a alimentação, o regime geral constituem o solo sobre o qual se desenvolvem em um indivíduo as diferentes espécies de doença. De modo que a cura é, nessa perspectiva, dirigida por uma intervenção médica que se endereça, não mais à doença propriamente dita, como na medicina de crise, mas ao que a circunda.6 (p. 107)

A dupla hipótese do nascimento do hospital, disciplinarização do espaço e deslocamento da intervenção médica para o ambiente permite ao saber médico um acúmulo de informação e de legitimidade que não se restringe à regulamentação do ambiente hospitalar, mas ao meio ambiente como um todo, concedendo à medicina o poder de regulamentar também a vida em sociedade. “O indivíduo e a população são dados simultaneamente como objeto de saber e alvos de intervenção da medicina, graças à tecnologia hospitalar”6 (p. 111).

Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra.6 (p. 302)

Podemos dizer que hoje em dia a ubiquidade desse poder de normalização se intensificou ainda mais, sobretudo no que diz respeito à função de produção de modos de vida sujeitados ao saber médico, em que pastores da salvação mundana se multiplicam e fazem multiplicar toda uma lógica do bem-estar, da saúde, da segurança, da proteção contra acidentes, da higiene, entre outras(f). São programações inteiras de rádio e televisão com sua legião de especialistas prontos a veicular aquilo que seria a última novidade em defesa da qualidade e extensão da vida. Toda uma discursividade que, travestida de uma suposta neutralidade científica, arroga para si o direito de falar pelo outro e de ditar modelos gerais de conduta quase sempre implicados com a produção de uma vida rebaixada.

Assim, tendo em vista que o tema das biopolíticas não mais se restringe às análises pautadas em termos de ideologias dominantes e de governantes que estão lá, transcendentes a nós mesmos, mas sim relacionadas com nossas práticas de cuidado e governo sempre implicadas com a sujeição do outro a partir de prescrições calcadas em saberes estabelecidos, cabe-nos então colocar em análise os lugares de saber-poder que ocupamos nestas relações de verdade. E é esse lugar da verdade, ou melhor, daquele que se habilita e é habilitado a fazer circular discursos verdadeiros no campo da saúde, que buscaremos pôr em questão nesse momento a partir do que Foucault indicou como um ethos nas relações de saber-poder.

Acreditamos que trazer para a discussão esse lugar assumido pelo intelectual nas análises foucaultianas pode nos fornecer uma primeira forma de aproximação com um modo ético de operar o saber no campo da produção do cuidado, interrogando assim nossos especialismos e seus efeitos de verdade e poder, que são muitas vezes negligenciados em seus efeitos de objetificação do outro e de nós mesmos no cotidiano de nossas práticas de trabalho e de vida.

Perguntado sobre o papel do intelectual e sobre como introduzir as problemáticas levantadas em suas pesquisas nas lutas cotidianas, que em todo caso são as nossas, Foucault5 vai nos falar de uma mudança no estatuto desse intelectual. Habitando setores específicos do campo social em suas relações de trabalho e de vida, e, portanto, sofrendo, ainda que de maneira diversificada, os mesmos efeitos de poder do cidadão comum, este será chamado a responder a questões bem mais concretas e específicas, deixando de ser o portador do direito de tomar a palavra para revelar a verdade e a justiça, representante da consciência universal de todos. “O intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la: consciência e eloquência”5 (p. 71).

Ainda de acordo com este, o estabelecimento de uma nova articulação entre teoria e prática possibilitará que cada vez menos se demande ao intelectual o desempenho deste papel. Chamado a responder questões cada vez mais condizentes com o lugar que ocupa, ou seja, questões cada vez mais específicas e locais, este será denominado por Foucault5 de “intelectual específico”, em oposição ao que reconhece como “intelectual universal”. Em consequência disso, o que vamos ter é uma espécie de deslocamento do lugar do saber e da ação política, deixando de ser estes um privilégio do grande “intelectual escritor”, passando a ser operadas cada vez mais por especialistas em saúde, educação, esporte, comportamento, nutrição, direito, entre outros.

Na medida em que as disputas no campo da verdade passam a se dar cada vez mais no âmbito técnico-científico, maior será a relevância dada à assunção desse seu novo papel. Ao contrário daqueles que optam por aderir ao cortejo fúnebre que se segue à “morte” do grande intelectual, Foucault5 nos chamará a atenção para as vicissitudes de sua nova modalidade, deixando entender assim que sua importância não deve ser subestimada.

Seria perigoso desqualificá-lo em sua relação específica com um saber local, sob pretexto de que se trata de um problema de especialistas que não interessa às massas (o que é duplamente falso, pois não só elas têm consciência deles como também neles estão implicados) ou de que ele serve aos interesses do Capital e do Estado (o que é verdade, mas mostra, ao mesmo tempo, o lugar estratégico que ele ocupa) ou ainda de que ele veicula uma ideologia cientificista (o que nem sempre é verdade e tem apenas uma importância secundária com relação ao que é primordial: os efeitos específicos dos discursos verdadeiros)5. (p. 12)

Ao chamar a atenção para o papel estratégico que este intelectual é convocado a assumir, Foucault procura apontar para as implicações decorrentes dessa modulação. Ora, a partir do descobrimento do lugar que ocupa nas tramas cotidianas do poder, tendo em vista que este não se exerce apenas ao nível das grandes estruturas repressivas como o Estado, ele terá de realizar uma crítica do próprio lugar de saber que ocupa, a partir de uma crítica de seu ser histórico, dos efeitos de seu discurso verdadeiro e de si mesmo.

O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso5. (p. 71)

Como podemos observar, tal análise constitui-se em uma atitude que interroga as implicações do lugar que ocupamos na ordem do saber/poder, e, neste caso, do saber/poder que se opera no campo das práticas em saúde. Todavia, de acordo com Foucault5, esta é uma empreitada que possui um caráter paradoxal, uma vez que aquilo que visa pôr em questão não são somente os lugares que ocupamos, mas, sobretudo, nós mesmos.

Esta atitude para consigo ou este ethos problematizador de si que caminha na direção da produção de modos de vida não assujeitados pode também ser denominado cuidado de si. E é aqui que se situa o tema da ética e, ao mesmo tempo, a novidade do discurso foucaultiano.

Foucault e a ética do cuidado de si

Após estudar as relações entre o sujeito e os jogos de verdade, seja a partir de “práticas coercitivas – como no caso da psiquiatria e do sistema penitenciário – seja nas formas de jogos teóricos ou científicos como a análise das riquezas, da linguagem e do ser vivo”, Foucault1 se propõe a pensar os jogos de verdade sob a perspectiva das práticas de transformação empreendidas pelo indivíduo a fim de atingir um modo de ser, para se autogovernar ou, enfim, para cuidar de si mesmo.

Acompanhando um pouco mais o pensamento de Foucault1, veremos que ele define a ética como uma atitude de cuidado entendida como “a elaboração de uma forma de relação consigo, que permite ao indivíduo constituir-se como sujeito de uma conduta moral” (p. 219).

Pela própria definição, podemos perceber que em Foucault não existe uma relação de exterioridade entre ética e moral. Não se trata então de estabelecer a priori uma dicotomia entre estas duas noções, nem tampouco de se livrar da moral em favor da utopia de uma relação puramente ética. A constituição de relações ativas a partir de um cuidado consigo e com o outro se dá em meio a um campo de práticas morais e de relações de poder, daí afirmarmos a ética como exercício constante em meio a essas práticas, e não como um estado a ser atingido, ou seja, como uma libertação finalizada.

Para explicitarmos melhor essa relação, devemos retomar o sentido atribuído por Foucault às relações de poder.

Quando se fala em poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política, em um governo, em uma classe social dominante, no senhor diante do escravo, etc. Não é absolutamente o que penso quando falo das relações de poder. Quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam elas [...], o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas1. (p. 276)

Assim, Foucault parte da ambiguidade de sentidos do termo moral para extrair deste um sentido preciso. São três os aspectos a serem destacados. O primeiro deles é o entendimento da moral como “um conjunto de valores e de regras de conduta que são propostos aos indivíduos e aos grupos por meio de diversos aparelhos prescritivos, como podem ser a família, as instituições educativas, as igrejas, etc”1 (p. 211). Esse conjunto de regras, formulado implícita ou explicitamente, é chamado “código moral”.

Em segundo lugar, entende-se também por moral o comportamento real dos indivíduos em relação a estas regras que lhes são propostas, isto é, o modo como os indivíduos se conduzem frente ao código, respeitando, negligenciando parte dele ou mesmo desobedecendo. Esse nível será designado pelo autor de “moralidade dos comportamentos”.

Por último, e é aqui que Foucault1 situará a ética para além do código e dos comportamentos diante deste, devemos levar em conta as diferentes maneiras pelas quais o indivíduo deve conduzir-se a si mesmo, “diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação” (p. 211). Isso quer dizer que, dado um código moral, interessa-nos a maneira inventiva como o indivíduo, a partir de uma relação consigo, de um trabalho ético realizado sobre si mesmo, se conhecendo, pondo-se à prova, aperfeiçoando-se e transformando-se, pode criar para si uma constituição moral que não se encontra necessariamente na dependência dos códigos.

Entendida em um sentido tradicional, moral vem de mores e se refere a hábitos, costumes que são consenso em um grupo social. Tratam-se de prescrições gerais das condutas de um ser humano abstrato e universal. Assim, em uma concepção clássica, a moral prescinde da participação de sujeitos ativos; trata-se apenas de obedecer, uma vez que o pensamento e as singularidades encontram-se submetidas à validade universal de seus preceitos.

Dado esse sentido geral, o que Foucault nos chama a atenção neste terceiro nível é que não existe constituição de um sujeito moral sem a participação ativa dos próprios sujeitos. Há, nesse sentido, diversas maneiras de se constituir, de se modificar, de resistir, enfim, de se relacionar com os preceitos morais de modo a dar uma forma à nossa existência.

Sendo assim, a ética não pode ser pensada como obediência ou não aos códigos preexistentes, mas sim como forma de interrogá-los, propondo então novas maneiras de nos conduzirmos moralmente. É nesse sentido que a ética vai ser entendida como uma atitude crítica permanente de reinvenção de si mesmo nas relações. Isso porque o código moral é segundo em relação às práticas de si. Como afirma o próprio Foucault, “o cuidado de si é ontologicamente primeiro”1 (p. 271), sendo as verdades e os códigos a formalização e estratificação deste. Isso significa que as formas fixadas e endurecidas de assujeitamento de si mesmo e do outro na forma de verdades científicas, morais ou jurídicas representam formas de captura das relações consigo e com o outro. Daí também a possibilidade sempre presente da resistência e da inventividade frente a estes códigos, possibilidade imanente ao próprio instituir da vida nas relações, nunca suprimível completamente.

Em um de seus cursos no Collège de France, destinado a tratar desta questão, Foucault7 chama a atenção para o estabelecimento de uma nova relação do sujeito com a verdade, ou seja, da possibilidade da aquisição de uma verdade sem a participação ativa dos sujeitos. A aquisição da verdade, cujo método cartesiano é um exemplo, passa a ser pensada a partir de regras extrínsecas ao sujeito, não exigindo assim uma implicação profunda de seu ser como condição do acesso à verdade. A advertência feita aqui aponta para o desprivilégio do cuidado de si na formação do indivíduo moderno, na qual o sujeito, na busca de aquisição da verdade, já não é afetado pelo objeto de conhecimento. O conhecimento passa então a ser concebido como uma técnica capaz de transformar o objeto, mas não mais o sujeito que conhece.

No âmbito do cuidado em saúde tal atitude já é nossa velha conhecida, em que o objeto de conhecimento da clínica, ou o outro da clínica, é objetificado por discursos e práticas que se pretendem neutros e veiculadores de um conhecimento estritamente técnico-científico, capazes de dizer a verdade sobre o funcionamento do outro, porém, carentes de acolhimento para aquilo que ele traz. Prova disso é que, a despeito de todo o acúmulo de saberes e de normativas de cuidado nesse campo, não nos parece lícito afirmar que estamos mais aptos a nos cuidar. Bem ao contrário, a proliferação de modelos de conduta parece denunciar justamente nossa dificuldade em acolher as singularidades das situações naquilo que elas nos convocam o pensar e o agir. Aqui, a sugestão do autor é a de que, caso queiramos nos deslocar desses movimentos de despotencialização da vida, precisamos inventar outra ética que não esta baseada na apreensão de verdades científicas.

Em um texto de 1976, Foucault recolocará este problema dizendo que as questões a se colocarem neste caso não dizem respeito à cientificidade ou não dos saberes, mas sim aos problema de seus efeitos de assujeitamento: “que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem ‘é uma ciência’? Que tipo de sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem ‘menorizar’?”5 (p. 170). Essas verdades, segundo o autor, seriam justamente aquelas responsáveis pela desqualificação dos saberes comuns, das pessoas, “do psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do delinquente, etc.”(5) (p. 170).

É por isso que não podemos avaliar a ética de um comportamento a partir da adequação ou não aos códigos prescritivos ou aos jogos de verdade que universalizam e normalizam a experiência concreta dos sujeitos. Dada uma situação, devemos nos perguntar se houve espaço para o estabelecimento de relações singulares perante eles, se houve lugar para a transformação de si mesmo, para a crítica dos valores envolvidos, para a possível invenção de outros modos de estar nesses processos, enfim, para o cuidado de si.

Pode parecer estranho ao leitor, em um texto que trata do cuidado, entendido como cuidar do outro, estarmos falando de “cuidado de si”. Todavia, a esse respeito Foucault é taxativo: “não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si. O cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo é primária”1 (p. 271).

Segundo Foucault, para além da desconsideração do cuidado de si na elaboração dos saberes modernos, como dissemos anteriormente, houve historicamente um desprivilégio do cuidado de si sob a acusação de amor excessivo a si mesmo, como um egoísmo, poderíamos dizer. Tal tendência diz respeito a um movimento de renúncia a si mesmo, renúncia às coisas terrenas e aos desejos, movimento que será inclusive reapropriado com bastante vigor pelo cristianismo, gerando preconceitos de todo tipo. Será “quando o amor a si se tornar suspeito e for percebido como uma das possíveis origens das diferentes faltas morais”. O mal-entendido com relação ao cuidado de si decorreria dessa inversão, ou seja, de um momento em que o cuidado de si tornou-se renúncia a si e passou a ser visto em contradição com o cuidado que se deve ter com os outros.

No entanto, as práticas de si reveladas aqui não fazem oposição ao cuidado com o outro. Bem ao contrário, aqui é o cuidado de si que vai regular as relações com o outro. “O risco de dominar os outros e de exercer sobre eles um poder indevido decorre precisamente do fato de não ter cuidado de si mesmo e de ter se tornado escravos de seus desejos”1 (p. 271). Como vemos, cuidar de si implica necessariamente cuidar do outro, porém, o cuidado de si não pode ser problematizado, ou seja, pensado, como cuidado com o outro. O cuidado de si é, de certa forma, ético em si mesmo, uma vez que para conduzir-se adequadamente é preciso saber governar seus filhos, sua casa, seu parceiro, saber ouvir a lição de um mestre ou de um amigo, saber discernir aquilo que é alimento ou um veneno para o corpo e para a alma. Implica, dessa forma, relações complexas e necessárias também com o governo do outro e com aquilo que vem de fora. Além disso, conhecer seus próprios afetos, seus apetites, os efeitos de poder dos lugares que ocupa, as verdades de que é portador, os valores que fazem com que nos reconheçamos como indivíduos, as prescrições que embasam nossa conduta, os modelos de humano que reproduzimos e as concepções de vida e saúde em jogo nessa reprodução são atividades indispensáveis ao cuidado de si.

Dessa forma, administrar bem os espaços de poder presentes nas relações significa então pelo menos duas coisas: não se tornar escravo do que se é, já que o cuidado refere-se a uma reinvenção de si, e não abusar do poder sobre os outros. Significa, portanto, evitar ao máximo aquilo que Foucault chama de estados de dominação, “nos quais as relações de poder, em vez de serem móveis e permitirem aos diferentes parceiros uma estratégia que os modifique, se encontram bloqueadas e cristalizadas”1 (p. 266), impedindo a reversibilidade do movimento e reduzindo as saídas possíveis à expansão dos envolvidos.

Conclusão

A partir das discussões empreendidas e do pondo de vista de uma ética foucaultiana, podemos dizer que temos aqui pelo menos dois direcionamentos para se pensar o cuidado. Um que pressupõe o assujeitamento dos indivíduos a códigos preestabelecidos, cujo paradigma é a produção de verdades que engessam as relações entre trabalhadores e usuários. O outro é aquele cujo paradigma pressupõe uma autonomia que coloca em jogo a possibilidade de nos conduzirmos, de cuidarmos de si, de inventarmos outras políticas da existência a partir de práticas não assujeitadoras.

O cuidado que queremos afirmar no campo da produção de saúde aponta para esta última opção, isto é, para a possibilidade de uma produção singular da/na existência que se abra para diferentes modos de ver, ouvir, pensar, sentir e cuidar. De um cuidado que provoque, nas relações com o outro, possibilidades de deslocamentos, de transformações seja no trabalhador, seja no usuário, de modo que o que vai nortear o cuidado será menos o protocolo, a norma e a regra, e mais a possibilidade de criação que se abre no fazer em saúde a partir de cada encontro.

REFERÊNCIAS

1. Foucault M. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2004. Ditos e Escritos; V.
2. Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; 2007.
3. Foucault M. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Ditos e Escritos II. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2013.
4. Foucault M. O Sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabino P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2005.
5. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979.
6. Foucault M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 2000.
7. Foucault M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes; 2010.