versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.23 no.3 Brasília jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742014000300016
In 2009, the Brazilian National Tuberculosis Program recommended changing the regimen for the treatment of sensitive tuberculosis by replacing RHZE with RHZ, involving reduced doses of isoniazid and pyrazinamide in a fixed-dose combination formulation. The process of change was made possible by the financial, political and technical support that ensured national drug provision and the training of healthcare professionals. In this analysis of the Brazilian case, we present the lessons learned with the implementation process and we formulate recommendations for the sustainability of this and other future technological innovations in the diagnosis, prevention and treatment of tuberculosis.
Key words: Fixed Dose Combination; Public Health; Tuberculosis
En 2009, el Programa Nacional de Control de la Tuberculosis recomendó el cambio de régimen para el tratamiento de la tuberculosis sensible. Los cambios consistieron en la inclusión del etambutol, la reducción de las dosis de isoniazida y pirazinamida y la modificación de la formulación de cápsula para comprimido a dosis fija combinada. El proceso de cambio fue viable por el gracias al apoyo técnico, político y financiero, que garantizó el abastecimiento interno y la capacitación de los profesionales de salud. El presente análisis del caso brasileño permitió registrar las lecciones aprendidas con el proceso y formular recomendaciones para la sustentabilidad de esta y de futuras innovaciones tecnológicas en el diagnóstico, prevención y tratamiento de la tuberculosis.
Palabras-clave: Dosis Fija Combinada; Salud Pública; Tuberculosis
Após décadas de estagnação, novas tecnologias diagnosticas, terapêuticas e preventivas para o controle da tuberculose estão em estudo, o que torna de grande importância a discussão sobre a incorporação das mesmas no Sistema Único de Saúde (SUS), em um momento em que o Brasil se comprometeu, junto à Global TB Alliance, a ser um adotador precoce das novas tecnologias, como fez com o novo teste diagnóstico Xpert MTB/Rif.
Os avanços obtidos com o SUS não impediram que a tuberculose se mantivesse como um importante problema de saúde pública, com taxas de cura e de abandono distantes das metas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).1 , 2 O Brasil é um dos 22 países com mais elevada carga da doença (90% dos casos), ocupando a 17a posição em número de casos, e a 22a em taxa de incidência, prevalência e mortalidade. 1 Apesar do aumento das taxas de resistência verificado entre os dois inquéritos realizados no país, essas se mantêm em níveis considerados baixos quando comparados a outros países, como a Índia, a China e a Federação Russa, que concentram quase 60% dos casos de tuberculose multirresistente no mundo.1 , 2 Acredita-se que o fato de a distribuição de medicamentos ser realizada somente pelos serviços públicos de saúde, segundo um fluxo controlado pelo Ministério da Saúde (MS), foi responsável por manter as baixas taxas de resistência no país.3
A principal medida para interromper a cadeia de transmissão da tuberculose é o tratamento oportuno dos casos existentes e, ao longo dos anos, o Brasil adotou vários regimes de tratamento, todos assumidos de forma criteriosa, considerando-se investigações científicas e estratégias recomendadas pela OMS e pela International Union Against Tuberculosis and Lung Diseases. Os tratamentos padronizados existem no país desde a década de 1960, e por 30 anos se usou o regime de curta duração com três fármacos - R, H e Z. Desde que se adotou este regime de tratamento, R e H foram usadas em doses fixas combinadas (DFC).4 - 6 Em 2009, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) recomendou a mudança do regime para o tratamento da tuberculose sensível. As mudanças consistiram na inclusão do etambutol, na redução das dosagens de isoniazida e pirazinamida e na modificação da formulação de cápsula para comprimido em dose fixa combinada.7 , 8 As mudanças recomendadas encontravam-se em consonância com as da OMS, datadas da década de 1990 e adotadas pelos demais países de alta carga da doença no mundo, e foram importantes subsídios para a tomada da decisão.9 , 10
O Comitê Técnico Assessor (CTA) do PNCT, reativado na atual gestão, conferiu sustentabilidade técnica para que a decisão fosse tomada, considerando para seu parecer o aumento da letalidade, da resistência e a frequência, bem como a gravidade dos efeitos adversos promovidos pelas doses da H e Z até então praticadas.8 Esperava-se que a redução do número de comprimidos promovesse maior conforto ao doente, o que poderia aumentar a adesão ao tratamento. O PNCT reconhecia ainda que este tipo de apresentação dos medicamentos simplificava a gestão farmacêutica em todos os níveis.9
As justificativas apresentadas pelo CTA se basearam na opinião dos experts ali reunidos e na revisão da literatura.8 , 11 Entretanto, naquele momento, o Brasil não tinha uma situação epidemiológica ou taxas de resistência que justificassem urgência na implementação das mudanças.12
Enquanto foi utilizado o esquema RHZ, a fabricação dos medicamentos se dava no próprio país, em quatro Laboratórios Públicos de Produção Farmacêutica (LPPF), que produziam os medicamentos utilizados para o tratamento da tuberculose sensível, incluindo o RH em DFC e, também, alguns dos medicamentos para o tratamento de formas resistentes.13
Quando o MS decidiu efetivar a mudança do esquema para a tuberculose sensível com a adoção do RHZE em DFC, a tecnologia para a produção desta formulação ainda não estava desenvolvida pelos LPPF. Para solucionar esta dificuldade, o MS buscou parceria para a transferência de tecnologia que permitirá a produção nacional, o que está previsto para acontecer em um período de cinco anos. Enquanto esta transferência não se efetiva, os medicamentos são comprados no mercado internacional utilizando os processos de pré-qualificação da OMS como um mecanismo disponível para assegurar a qualidade, a segurança e a eficácia do tratamento.13 , 14 Desta forma, a mudança do esquema terapêutico para a tuberculose levou o Brasil da posição confortável de autossuficiência à condição de dependente da compra internacional.
Em termos econômicos, o tratamento da tuberculose não representa um problema para o MS, já que os gastos com estes medicamentos têm permanecido relativamente estáveis ao longo dos anos e são bem menos significativos do que os recursos destinados aos tratamentos de outros agravos, como, por exemplo, a aids. Em 2011, a previsão orçamentária do MS foi de 1 R$ bilhão para o programa de DST/Aids e R$15.781.101,63 para o programa de tuberculose.15
Entretanto, o Brasil e outros países de alta carga que se encontram em situação de dependência tecnológica para o abastecimento dos tuberculostáticos, em quaisquer uma das etapas do processo produtivo, estão suscetíveis a problemas burocráticos internos, que podem interferir nos processos de compra dos medicamentos. Além disto, convivem com um risco de desabastecimento motivado por questões econômicas, já que os ingredientes farmacêuticos ativos (IFA) e os produtos finais têm baixo valor monetário e baixa demanda, ou seja, têm pouco interesse para o mercado de fármacos. Uma saída apontada para esta limitação é a parceria com agências de cooperação internacional, que atuam na busca da ampliação do acesso a medicamentos essenciais, entre estes, os tuberculostáticos.13 Desta forma, o alinhamento com a OMS assegura as possibilidades de parceria e possíveis benefícios advindos das pesquisas e produção dos medicamentos, decorrentes de transações não comerciais.
Considerando a situação epidemiológica da tuberculose e as estratégias e meios para o seu enfrentamento no país, poder-se-ia supor que o processo de mudança do tratamento pudesse esperar pelos devidos ajustes. Além de o país não estar pronto para a produção dos medicamentos, não se encontravam previamente implantados sistemas para o controle de qualidade e de farmacovigilância. Todos os mecanismos de monitoramento e avaliação do tratamento estão sendo criados posteriormente à decisão sobre a mudança efetivada.
Ponderando-se que ações como as de adequação dos LPPF e a obtenção dos respectivos registros nos órgãos competentes demandam o envolvimento de inúmeras e distintas instâncias técnicas e políticas, que se correlacionam e são interdependentes, não seria possível precisar o tempo que cada uma das etapas levaria para ser concretizada. E no compasso desta espera, a oportunidade e o cenário favorável às mudanças do tratamento para a tuberculose poderiam deixar de existir.
Desta forma, o que se evidenciou neste processo foi um estilo de gestão: criar o fato de forma responsável, com apoio de uma base política formada por gestores, profissionais de saúde, academia, movimentos sociais, parlamentares e agências internacionais, que angariou o apoio do governo e, a partir de então, provocar e criar a demanda dos ajustes que passaram a se fazer necessários e que foram daí decorrentes.
A novidade relacionada à mudança do esquema de tratamento e a existência de um novo manual de recomendações contribuiu para mobilizar os profissionais, já acostumados às rotinas anteriores, levando-os a participarem de Seminários de Manejo Clínico da Tuberculose. Os seminários realizados, que utilizaram uma metodologia interativa e participativa, foram muito bem avaliados e encontraram uma demanda de participação muito superior à inicialmente prevista. Estas atividades trouxeram o debate para próximo dos profissionais, que se sentiram valorizados e tiveram a oportunidade de romper com o isolamento em que se encontravam.16
Foi promovida, também, a articulação com outras políticas governamentais, pois, a fim de se implementar o novo esquema terapêutico, várias áreas técnicas do governo estiveram envolvidas para tratar de aspectos legais, éticos, orçamentários e políticos. Tanto nos meios políticos, como nos acadêmicos, profissionais e na sociedade civil, tornou-se possível pautar a tuberculose como uma doença que necessitava de debates e de atualizações, trazendo à cena atores que até então se encontravam ausentes.
Assim, o processo de mudança do regime de tratamento da tuberculose sensível no Brasil teve um percurso cheio de desafios, que envolveu articulações políticas, a consideração de diferentes saberes, e necessitou da conjugação de tecnologias duras com tecnologias leves para obter sucesso. Caberá dentro de um futuro próximo avaliar como se deu a transferência de tecnologia para a produção nacional e as fragilidades existentes em relação à necessidade de importação dos IFAs, as consequências de implantação de mecanismos de controle de qualidade e de farmacovigilância a posteriori e os indicadores epidemiológicos e operacionais. Na verdade, o controle da tuberculose, como acontece com outros agravos, requer medidas relacionadas ao estabelecimento de vínculos entre os profissionais de saúde e os usuários do sistema de saúde, fazendo com que o manejo do tratamento vá além das provas diagnósticas e dos medicamentos disponíveis.