versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.3 São Paulo maio/jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2014.01.001
A polipose sinonasal (PSN), ou rinossinusite crônica com pólipos nasais, é uma doença inflamatória crônica das cavidades nasais e paranasais,1 , 2 afetando 1-4% da população e exibindo nítida associação com asma, sensibilidade à aspirina e fibrose cística.3
Caracteristicamente, pacientes com PSN se apresentam com obstrução nasal, rinorreia, hiposmia e redução na qualidade de vida.3 , 4 Embora os pólipos pareçam ser uma manifestação da inflamação crônica da mucosa dos seios nasais/paranasais tanto em indivíduos alérgicos como não alérgicos, a patogênese da polipose nasal permanece desconhecida.5 , 6 Provavelmente trata-se de uma doença multifatorial com diversos fatores etiológicos, e a inflamação persistente crônica seja, indubitavelmente, um importante fator, independentemente da etiologia.5 A inflamação crônica da mucosa representa um desafio para o otorrinolaringologista.
O diagnóstico de PSN é confirmado por endoscopia nasal ou por estudo de tomografia computadorizada (TC).1 Apesar do importante impacto na qualidade de vida,7 na literatura tem sido dada pouca atenção com respeito aos biomarcadores envolvidos na patogênese dos pólipos nasais e suas possíveis contribuições para o prognóstico de PSN.
HLA-G é uma molécula MHC classe I não clássica caracterizada por uma limitada expressão nos tecidos (citotrofoblasto, células epiteliais amnióticas do timo, pâncreas e na matriz ungueal proximal), por um baixo polimorfismo e também por suas sete isoformas (HLA G1-G7).8 , 9 A expressão de HLA-G é induzida pela interleucina-10 ou pelo gama interferon, exercendo um efeito imunorregulador negativo, por inibir a proliferação dos linfócitos T alogênicos, células natural killer e linfócitos T citotóxicos antígeno-específicos. Devido a seus efeitos no sistema imune, essa expressão pode ter consequências benéficas e maléficas para o organismo.9 , 10
Pouca atenção tem sido dada ao papel do HLA-G em transtornos inflamatórios crônicos e autoimunes, mas evidências demonstram que a expressão de HLA-G em doenças cutâneas inflamatórias, inclusive a psoríase e a dermatite atópica,11 está associada a um curso clínico mais promissor para a doença.3 , 9 Outro estudo sugere que HLA-G sérico pode ser considerado um biomarcador para pacientes asmáticos atópicos.12 No câncer, a expressão de HLA-G foi associada à ocorrência de metástases.13
Considerando a pouca compreensão do mecanismo que deflagra a inflamação e que prejudica o desenvolvimento de novos tratamentos para essa doença, e tendo em vista a importância da caracterização dos mediadores inflamatórios envolvidos na patogênese da PSN, o objetivo desse estudo foi investigar a expressão de HLA-G na PSN em pacientes atópicos e não atópicos. Não foram ainda publicados estudos acerca da expressão in situ de HLA-G nas lesões de PSN.
Trata-se de uma coorte histórica com um estudo transversal, em que foram avaliados 25 pacientes que se apresentaram com polipose sinonasal, submetidos à cirurgia para ressecção de pólipos. Também foram avaliadas cinco amostras de mucosa normal proveniente do meato médio de pacientes assintomáticos quanto à atopia que haviam sido submetidos à rinosseptoplastia. Todos os pacientes passaram por uma avaliação otorrinolaringológica clínica com endoscopia nasal, tomografia computadorizada (TC), prova de função pulmonar (espirometria) e um teste cutâneo antes da cirurgia. Os estudos de TC no pré-operatório foram classificados de acordo com a classificação de Kennedy, para a avaliação da extensão de pacientes com PSN,10 e todos foram investigados para presença de alergia e história positiva para asma. Os participantes foram divididos em dois grupos: pacientes atópicos (teste cutâneo positivo) e não atópicos (teste cutâneo negativo). O teste cutâneo foi realizado com 10 extratos: histamina (controle positivo), solução salina (controle negativo), D. pteronyssinus, D. farinae, Blomia tropicalis, Felix domesticus, Canis familiaris, P. Americana, Aspergillus fumigatus e Alternaria alternate. A resposta foi considerada positiva quando se formava um halo 3 mm maior do que o do controle negativo.
Os pacientes com PSN foram classificados como tendo história positiva ou negativa para asma, o que foi confirmado pela espirometria. Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Pesquisas, protocolo 0711/11, em 6 de fevereiro de 2011. Todos os pacientes assinaram um termo de consentimento informado para participação no estudo. O suporte financeiro para a realização deste estudo obtido através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação para Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).
Depois da cirurgia de ressecção, os pólipos foram submetidos à técnica de imunoistoquímica. Secções com a espessura de 4 µm foram obtidas de amostras incluídas em parafina. Foi utilizado o sistema de detecção Universal HRP-Polymer MACH 4 (Biocare Medical, Concord, CA, EUA). Resumidamente, depois da lavagem das secções em salina-fosfato tamponada com saponina 0,1%, as peroxidases endógenas foram inibidas com o uso de H2O2. Inicialmente, as amostras foram incubadas com anticorpos específicos ou irrelevantes durante 1 hora à temperatura ambiente, e subsequentemente com uma solução contendo MACH 4 Mouse Probe durante 15 minutos. Utilizou-se diaminobenzidina juntamente com um cromógeno-substrato para obtenção da fixação dos anticorpos. Os anticorpos monoclonais específicos MEM-G/2 (Exbio, Praha, República Checa) reconhecem a cadeia pesada livre de todas as isoformas de HLA-G. Um anticorpo anti-desmina isótipo IgG1 idêntico, que foi corrido simultaneamente com cada amostra, foi utilizado como controle negativo.
As amostras de pólipos incluídas em parafina foram coradas com hematoxilina-eosina-safranina para exame histológico. O percentual de infiltrado inflamatório eosinofílico recebeu a seguinte pontuação: 0, sem células inflamatórias; 1 < 25% de células inflamatórias; e 2, ≥ 25% de células inflamatórias.
A análise imunoistoquímica foi realizada em tecido de pólipo. A imunorreatividade foi pontuada por um método semiquantitativo de pontuação, segundo o percentual de células positivas. Os escores de virada para determinação da positividade de HLA-G detectada por imunoistoquímica foram obtidos pela análise da curva receiver operating characteristic (ROC). A análise da curva ROC foi efetuada para a expressão de HLA-G. Este foi o primeiro estudo a demonstrar a expressão de HLA-G na polipose nasossinusal. Não existem referências na literatura acerca do valor a ser considerado como positivo e negativo na curva ROC. Mas como já foi devidamente estabelecido em estudos sobre diversos tipos de cânceres, qualquer percentual de expressão dessa molécula tem consequências no microambiente tumoral, inclusive na imunomodulação. O objetivo foi calcular a curva ROC; dessa forma, utilizou-se testes estatísticos de rotina para o estabelecimento do ponto de virada para a geração de maior sensibilidade e especificidade, embora se saiba que mesmo uma expressão inferior a 20% de células tem o potencial de promover efeitos imunomoduladores.
Todas as secções foram analisadas sem o conhecimento do examinador, utilizando um microscópio óptico com campos de grande ampliação (×400). Foram escolhidos dez campos aleatórios. Não foi observada a marcação das células e de outras estruturas, bem como de algumas das células epiteliais e células inflamatórias. Para estabelecimento do percentual de células positivas, considerou-se a média de células positivas para HLA-G entre as células epiteliais totais por campo. Em seguida, calculou-se a média das células positivas para HLA-G nos dez campos analisados, para obtenção do valor final.
A curva ROC de desempenho da coloração para determinação da expressão de virada de HLA-G foi então traçada. Os escores de imunocoloração foram comparados com o teste U de Mann-Whitney, e as correlações dos escores de imunocoloração foram testados com a análise de correlação de Spearman. Foram efetuadas análises comparativas entre os grupos pelo teste exato de Fisher bilateral. O valor de p inferior a 0,05 foi considerado significante. Todas as análises estatísticas foram efetuadas com o programa GraphPadInstat (versão 5.0).
Os resultados envolveram 25 pacientes com polipose sinonasal avaliados por endoscopia nasal e TC para confirmação da doença. O grupo de pacientes consistiu de 13 (52%) homens e 12 (48%) mulheres com idades entre 35 e 83 (média: 48,8) anos. Os pacientes foram divididos em dois grupos: o grupo com teste cutâneo negativo (grupo não atópico) consistiu de 13 pacientes; e o outro grupo consistiu de 12 pacientes com teste cutâneo positivo (grupo atópico). Dentre eles, 17 eram asmáticos.
Utilizando a avaliação por TC, os pacientes foram classificados de acordo com os critérios de Kennedy et al. para avaliar a extensão da PSN. Quase todos os pacientes foram classificados como grau II.
Em seguida ao exame histológico, foi observada coloração de HLA-G em células epiteliais e inflamatórias em amostras de PSN (fig. 1). HLA-G não foi observado em amostras de mucosa normal.
Figura 1 Biópsias de PSN para detecção da proteína HLA-G. Microfotografia revelando diferentes categorias de intensidade de immunolabeling. A, Coloração intensa pelas células epiteliais; B, Coloração moderada e C, coloração fraca; D, Expressão de HLA-G por células imune-inflamatórias; E, Amostra de paciente PSN-positivo para expressão de HLA-G e F, controle isotípico (anticorpo irrelevante); G, Amostra negativa para expressão de HLA-G. Ampliação original, 10× (B,C e F), 20× (A) e 40× (D e G).
Na análise da curva ROC, o ponto de virada para resultados positivos foi ≥ 20% (área sob a curva [ASC] = 0,750; p = 0,011; IC de 95%, 0,516-0,910). Dessa forma, foi possível detectar moléculas de HLA-G em nove das 25 amostras avaliadas (36%).
A expressão de HLA-G em amostras de PSN foi associada com atopia, asma e presença de eosinofilia nos pólipos.
A coloração imunoistoquímica demonstrou expressão mais alta da molécula de HLA-G em amostras de pacientes não atópicos, em comparação com pacientes atópicos (p = 0,028). Entre as amostras positivas para HLA-G, apenas dois pacientes exibiram atopia (p = 0,0154; RR = 0,2727; IC de 95%, 0,07606-0,9779).
A expressão de HLA-G foi significativamente maior no grupo de pacientes não asmáticos (p = 0,005 e IC de 95%, 0,01304-0,6791). Apenas um dos nove pacientes HLA-G+ apresentou asma.
Os pacientes com teste cutâneo positivo tiveram percentual mais baixo de células HLA-G+, em comparação com pacientes cujo teste cutâneo foi negativo (p = 0,03) (fig. 2).
Figura 2 Expressão de HLA-G e positividade no teste cutâneo. Pacientes com teste positivo apresentaram percentual mais baixo de células positivas para HLA-G, quando comparados com pacientes cujo teste cutâneo tinha sido negativo (p = 0,03).
Finalmente, comparando a expressão de HLA-G com a eosinofilia observada na SN, os pacientes positivos para HLA-G apresentaram eosinofilia mais baixa (fig. 3).
PSN é uma condição inflamatória crônica associada a um substancial comprometimento da qualidade de vida, redução da produtividade no trabalho e consideráveis despesas com tratamento médico.7 , 14 Apesar de evidências oriundas de pesquisas recentes, que colaboram para uma compreensão mais apurada da fisiopatologia dessa condição crônica das vias respiratórias, a patogênese da SNP continua ainda obscura, sendo aparentemente multifatorial e associada a diversas condições clínicas como atopia, asma, fibrose cística, sensibilidade à aspirina e rinossinusite crônica.15 - 17
Um espectro diversificado de alterações envolvendo padrões de linfócitos T, perfis de citocinas, produção de IgE, microrganismos e disfunções do sistema imune deve estar associado à patogênese da PSN.9 , 10 Nesse contexto, o presente estudo avaliou pela primeira vez a expressão de HLA-G em lesões de PSN.
Esta análise demonstrou expressão de HLA-G em nove pacientes com PSN. Não houve expressão de HLA-G na mucosa normal. Curiosamente, a expressão de HLA-G tendia a ser significativamente mais frequente em pacientes com teste cutâneo negativo; ou seja, em pacientes não atópicos (p = 0,028). Contrastando com esses resultados, Ciprandi et al. demonstraram que a quantidade de moléculas de HLA-G no soro (s-HLA-G) se encontra significativamente aumentado em pacientes com rinite alérgica, mas esses autores realizaram seu estudo com adultos e crianças alérgicas sem polipose, e trabalharam com a expressão sérica.18 , 19 Mais recentemente, foi ainda uma vez demonstrado que HLA-G tem sua expressão aumentada em diversas doenças imunológicas, inclusive asma e rinite alérgica.20 Com base nos resultados contrastantes desse estudo, podemos especular que a expressão de HLA-G na PSN pode contribuir para a diminuição da sensibilidade à atopia em um quadro de PSN - um fator que agrava a doença.
Também foi observada uma associação significativa entre a expressão de HLA-G e a ausência de asma, o que pode reforçar a tese de que a sua presença poderia ser um marcador para um melhor prognóstico da PSN. Embora tenha sido proposta a hipótese de que HLA-G esteja associado à patogênese da asma, esses resultados permanecem controversos. Zhen et al. sugeriram que sHLA-G poderia ser considerado um biomarcador para pacientes asmáticos atópicos; esses autores demonstraram que um aumento de sHLA-G com diminuição dos níveis de IL-10 pode ter implicações para a patogênese da asma atópica.20 , 21 Mas os autores do presente estudoverificaram que pacientes não asmáticos e não atópicos apresentaram uma expressão significativamente mais alta de HLA-G . Deve-se levar em conta que os grupos eram muito diferentes, uma vez que todos os pacientes no estudo apresentavam PSN, e a presença ou não de atopia e asma são fatores adjuvantes que podem agravar a doença.
Um papel para HLA-G na patogênese da asma foi ainda sugerido pela demonstração da expressão de uma isoforma solúvel de HLA-G, sHLA-G5, em células epiteliais das vias aéreas.22 A localização de HLA-G no epitélio das vias aéreas sugere que sua desregulação poderia contribuir para a inflamação das vias aéreas em casos de asma crônica. Os resultados do presente estudo são consistentes com relatos precedentes de Rizzo et al. sobre a produção defeituosa de moléculas de HLA-G solúvel pelos monócitos do sangue periférico em pacientes com asma.23 HLA-G poderia regular a atividade inflamatória das células inflamatórias encontradas nas vias aéreas asmáticas, influenciando a sensibilidade à asma através de vias atópicas.
Em termos histológicos, os pólipos nasais podem ser classificados como eosinofílicos e não eosinofílicos. PSN eosinofílica representa 80-90% dos casos de PSN,23 , 24 caracterizando-se por edema intenso e pelo acúmulo de eosinófilos.25 Aparentemente, a abundância de eosinófilos nos pólipos nasais seria explicada pela maior migração de eosinófilos para os tecidos e pelo aumento da sobrevida dessas células,26 mas o mecanismo patológico pelo qual eles contribuem para a lesão dos tecidos, para o processo inflamatório e para a formação de pólipos ainda não foi devidamente esclarecido.27
Os eosinófilos podem contribuir para a formação e crescimento dos pólipos nasais, não só através da inflamação, mas também por exercer seus efeitos na matriz extracelular, inclusive com a estimulação da síntese de colágeno. Dentro desse mesmo raciocínio, outro achado interessante do atual estudo foi a relação inversa entre eosinofilia e expressão de HLA-G.28 , 29 Pólipos positivos para HLA-G exibiram eosinofilia menos expressiva, quando comparados com pólipos negativos para HLA-G. Esse achado sugere que HLA-G possui propriedades anti-inflamatórias.
Resumidamente, esse estudo demonstrou, pela primeira vez, a expressão de HLA-G em PSN. Ela foi significativamente mais elevada em pacientes não atópicos e não asmáticos, sugerindo que HLA-G pode inibir a resposta inflamatória em casos de PSN.
Futuras investigações permitirão um aprofundamento nos nossos conhecimentos acerca do papel desempenhado pela expressão de HLA-G na patogênese da PSN.
Os resultados indicaram que HLA-G pode desempenhar um papel importante na patologia da polipose sinonasal. Uma vez consideradas as propriedades anti-inflamatórias de HLA-G, os autores sugerem que HLA-G poderia diminuir a suscetibilidade à atopia e à asma em casos de PSN.