versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.1 São Paulo jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160011
Apesar do avanço tecnológico das últimas décadas, a morbimortalidade dos pacientes submetidos à hemodiálise ainda permanece bastante alta.1-3 Dados nacionais são escassos, Sesso et al.4 relatam que a taxa anual de mortalidade foi de 17,9% e a taxa mensal de hospitalização foi de 5,8%. Vários fatores são associados com esta alta prevalência; entre eles, destacam-se a anemia, inflamação e hipoalbuminemia.5-7
A anemia é uma complicação frequentemente observada em pacientes com doença renal crônica (DRC), especialmente naqueles submetidos à diálise. Dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia de 2012 demonstraram que 34,4% dos pacientes em hemodiálise apresentavam anemia.4 Esta condição se associa com alterações cardiovasculares e um marcado aumento do risco de hospitalização e mortalidade.5,6,8,9 Assim como a anemia, a inflamação é uma complicação frequente da DRC.10 Estudos sugerem que os níveis de citocinas próinflamatórias são de 8 a 10 vezes mais elevados em pacientes renais crônicos, quando comparados a indivíduos saudáveis.11 A proteína C-reativa (PCR) é considerada um bom marcador inflamatório nessa população e está associada à progressão da arteriosclerose e a eventos cardiovasculares, sendo um preditor independente de hospitalização e mortalidade.12,13 A albumina, por ser uma proteína que aumenta na fase aguda da inflamação, tem sido consistentemente considerada um marcador de inflamação nessa população.14 Entretanto, a diminuição da concentração da albumina pode representar uma ingestão inadequada de nutrientes, sendo também um indicador do estado nutricional.15,16
De fato, em alguns estudos, a suplementação alimentar adequada melhora hipoalbuminemia e o desfecho clínico.17 A International Society of Renal Nutrition and Metabolism considera a hipoalbuminemia, definida por um valor de albumina sérica < 3,8 g/dL, como um marcador de risco nutricional.18,19 A presença de hipoalbuminemia tem sido associada a um aumento no risco de morbidade e mortalidade em pacientes submetidos à hemodiálise.18,19
Existem poucos dados sobre populações em diálise nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, que apresentam características socioeconômicas distintas das demais regiões do país. Um recente estudo realizado com pacientes em tratamento dialítico em São Luiz do Maranhão evidenciou que a incidência de anemia e hipoalbuminemia estavam bem acima da média nacional.20 O papel dessas complicações em desfechos nas populações das regiões Norte e Nordeste ainda não foi estabelecido. Assim, o objetivo desse estudo foi avaliar o impacto da presença da anemia, inflamação e hipoalbuminemia sobre a ocorrência de hospitalização e óbito em pacientes submetidos à hemodiálise em dois centros em Maceió.
A população de estudo foi composta por uma amostra de conveniência, na qual todos os pacientes adultos (n = 275) dos programas de hemodiálise do Instituto de Nefrologia Ribamar Vaz da Santa Casa de Misericórdia de Maceió (INRV-SCMM) e do Centro de Doenças Renais do Hospital Sanatório (CDR-Sanatório) foram convidados a participar. Os critérios de inclusão foram: idade > 18 anos e estar em hemodiálise há mais de 3 meses, e os de exclusão foram: pacientes que faltaram no dia da coleta (n = 2) e aqueles que apresentavam infecção ativa na data da coleta de sangue (n = 5) ou não aceitaram participar do estudo (n = 47). Dos 221 pacientes que participaram do estudo, 11 (4,9%) estavam com cateter temporário no momento do início do estudo. O tratamento de água e a realização de reuso de capilares obedeciam aos padrões preconizados pela Legislação Brasileira, nos dois centros de diálise durante todo o período do estudo.
Neste estudo prospectivo observacional, pacientes com DRC prevalentes em programa de hemodiálise foram avaliados em um seguimento aproximado de 1 ano. Os dados clínicos, demográficos e as doses de eritropoietina e ferro intravenoso foram coletados nos prontuários dos pacientes e em entrevista médica estruturada, no início do estudo. Dados sobre a ocorrência de eventos foram avaliados mensalmente pelos registros médicos. Hospitalização foi definida como permanência em hospital por um período superior a 12 horas.
Os exames de rotina dos centros de diálise foram utilizados no estudo, coletados na segunda diálise da semana, antes da sessão. Nas amostras de sangue total foram avaliadas: hemoglobina (Hb), ferritina sérica (turbidimetria), saturação de transferrina (TSAT), Proteína-C Reativa ultrassensível (PCR, imunoquimioluminescência - Immulite, DPC - DPC-Biermann, Hessen, Germany) e albumina sérica (Imunoturbidimetria), do início do período de seguimento. Considerou-se anemia quando a Hb estava < 10 g/dL21 e hipoalbuminemia quando a albumina estava < 3,8 g/dL.19 A presença de inflamação foi analisada tanto pela presença de PCR aumentado (≥ 0.5 mg/dL)22 isoladamente, quanto acompanhada da presença de hipoalbuminemia.
Os dados foram expressos em média e desvio padrão ou mediana e interquartis. As comparações entre os grupos foram feitas pelos testes t-Student e Mann-Whitney de acordo com as características das variáveis. Testes quiquadrado ou Fischer foram utilizados para comparações de proporções, quando apropriado. Análise univariada, com o teste de correlação de Spearman, foi utilizada para avaliar relação entre PCR e albumina. O tempo livre de hospitalização e óbito foi estimado pelo método de Kaplan-Meier e comparado pelo teste long-rank. A análise de regressão de Cox foi utilizada para avaliar se a presença de anemia, inflamação e hipoalbuminemia estavam relacionadas de forma independente à hospitalização. O modelo foi ajustado para idade e presença de diabetes e as associações foram descritas por meio de Hazard Ratios e intervalo de confiança de 95%. Um valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significante. As análises foram realizadas pelo programa SPSS for Windows (Versão 18 do SPSS Inc, Chicago, IL).
As características clínicas e demográficas dos 221 pacientes estão apresentadas na Tabela 1. A maioria dos pacientes estudados eram homens de meia idade, sendo um terço diabético e o tempo médio de diálise foi de 7 anos. A população era constituída de famílias de baixa renda, sendo que 80% recebiam menos que 3 salários mínimos/mês/família e 37% recebiam menos que 1 salário mínimo/mês/família.
Tabela 1 Características demográficas, clínicas e laboratoriais dos pacientes no início do estudo
Variável | Total |
---|---|
N | 221 |
Idade (anos) | 50 (38-63) |
Sexo masculino | 130 (59%) |
Tempo de Hemodiálise (anos) | 7(4-9) |
Diabetes | 64 (29%) |
Kt/V | 1,4 (1,2-1,6) |
Ferritina (ng/dl) | 424,8 (212,5-560) |
Saturação de transferrina (%) | 29,8 ± 10,6 |
Hemoglobina (g/dl) | 10,6 ± 1,9 |
Proteína C Reativa (mg/dl) | 1,0 (0,19-1,29) |
Albumina (g/dl) | 3,6 (3,4-3,9) |
Mediana (interquartil); media ± desvio padrão.
No início do estudo, a anemia esteve presente em 36% dos pacientes, e a hipoalbuminemia em 63%. A inflamação, quando avaliada pela presença de PCR aumentado, esteve presente em 49%. Já quando avaliada pela presença dos 2 marcadores (PCR aumentado e hipoalbuminemia), estava presente em 33% dos pacientes.
Na comparação entre os pacientes com e sem anemia, observou-se que aqueles com anemia eram mais jovens [47 (34-58) vs. 52 (40-63) anos, p = 0,02] e não houve diferença entre os grupos quanto a gênero, presença de diabetes, tempo em diálise, PCR e albumina. Quando comparamos pacientes inflamados (com PCR elevada e hipoalbuminemia concomitante) e não inflamados, observou-se que aqueles com inflamação tinham idade mais elevada [57 (40-67) vs. 50 (36-61) anos, p = 0,01] e não houve diferença entre os grupos quanto a gênero, presença de diabetes, tempo em diálise e Hb. Comparados os pacientes com e sem PCR aumentado, aqueles com PCR ≥ 0.5 mg/dl eram mais velhos [54 (42-65) vs. 46 (34-57) anos, p < 0,001], não havendo outras diferenças entre os grupos. Não houve diferença entre os pacientes com albumina normal e com hipoalbuminemia quanto à idade, gênero, presença de DM, tempo de diálise e PCR. Não houve correlação entre as concentrações de PCR e albumina (r = -0,1, p = 0,14).
As doses de eritropoetina foram maiores nos pacientes com anemia, quando comparados com aqueles sem anemia [12.000 Unidades/semana (12.000-12.000) vs. 8.000 Unidades/semana (0-12.000), p < 0,00], enquanto as doses de ferro não diferiram [200 mg/mês (0-800) vs. 200 mg/mês (0-800), p = 0,73]. As doses de eritropoetina e ferro não foram diferentes nos pacientes com e sem PCR aumentado [12.000 unidades/semana (0-12.000) vs. 8000 unidades/semana (0-12000), p = 0,25 ]; e [200 mg/mês(0-800) vs. 200 mg/mês (0-800), p = 0,97], respectivamente, e nos pacientes com e sem hipoalbuminemia, [8.000 unidades/semana (0-12.000) vs. 8.000 unidades/semana (0-12.000), p = 0,72]; e 200 mg/mês (0-800) vs. 200 mg/mês (0-800), p = 0,14], respectivamente.
Os pacientes foram seguidos por aproximadamente 13 meses (389 ± 35 dias). Ocorreram 71 hospitalizações nesse período: 25 (35,2%) por causa cardiovascular; 23 (32,4%) por infecção e 23 (32,4%) por outras causas. O tempo médio de hospitalização foi de 4 (2-8) dias. Durante o estudo, ocorreram 7 óbitos, todos em pacientes hospitalizados, sendo 1 (14,3%) por causa cardiovascular, 4 (57,1%) por infecção e 2 (28,6%) de outras causas. No decorrer do estudo, 4 pacientes transplantaram e 3 foram transferidos para outro centro de diálise.
A ocorrência de hospitalização e óbito entre os pacientes quanto à presença ou não de anemia, PCR aumentado e hipoalbuminemia estão apresentados na Tabela 2. A hospitalização foi significativamente maior nos pacientes com hipoalbuminemia, mas não houve diferença entre os pacientes com anemia ou com PCR aumentado. Não existiu diferença na mortalidade em relação à presença de anemia, PCR aumentado ou hipoalbuminemia. Vale ressaltar que as doses de eritropoetina e ferro não diferiram quando comparados os pacientes que hospitalizaram aos que não hospitalizaram, [12.000 unidades/semana (0-12.000) vs. 8.000 unidades/semana (0-12.000), p = 0,32]; e [200 mg/mês (0-800) vs. 200 mg/mês (0-800), p = 0,97], respectivamente, como também não houve divergência entre os pacientes que morreram ou não [12.000 unidades/semana (8.000-12.000) vs. 8.000 unidades/semana (0-12.000), p = 0,85 ]; e [200 mg/ mês (100-800) vs. 200 mg/mês(0-800), p = 0,92], respectivamente.
Tabela 2 Ocorrência de hospitalização e óbito nos grupos de pacientes com e sem anemia, inflamação e hipoalbuminemia
Anemia | Hb < 10 g/dL N = 80 | Hb > 10 g/dL N = 141 | p |
---|---|---|---|
Hospitalização | 29 (36%) | 42 (30%) | 0,32 |
Óbito | 4 (5%) | 3 (2%) | 0,24 |
Inflamação | PCR ≥ 5mg/dL N = 108 | PCR < 5mg/dL N = 113 | p |
Hospitalização | 41 (38%) | 30 (26,5%) | 0,10 |
Óbito | 5 (4,6%) | 2 (1,8%) | 0,24 |
Hipoalbuminemia | Alb < 3,8g/dL N = 139 | Alb ≥ 3,8 g/dL N = 82 | p |
Hospitalização | 54 (39%) | 17 (21%) | < 0,001 |
Óbito | 5 (3,6%) | 2 (2,4%) | 0,63 |
Os pacientes com albumina < 3,8 g/dL apresentaram um menor tempo livre de hospitalização (p = 0,01), houve tendência de menor tempo livre de hospitalização entre os pacientes com PCR aumentado (p = 0,08). Anemia não se relacionou com o tempo livre de hospitalização (Figura 1). Não houve diferença na sobrevida em relação à presença de anemia, PCR aumentado e hipoalbuminemia (Figura 2).
Figura 1 Tempo livre de hospitalização em paciente com e sem anemia (A), inflamação (B) e hipoalbuminemia (C).
Figura 2 Comparação sobrevida entre pacientes com e sem anemia (A), inflamação (B) e hipoalbuminemia(C).
A análise de Cox apontou apenas a hipoalbuminemia como fator independente relacionado à hospitalização, mesmo após ajustes para idade, presença de diabete, anemia e inflamação (Tabela 3). Na análise de regressão de Cox, anemia, PCR aumentando e hipoalbuminemia não foram determinantes de óbito.
Tabela 3 Análise de regressão de cox para fatores associados à hospitalização
Hazard Ratio | Intervalo de confiança (95%) | p | |
---|---|---|---|
Albumina < 3,8 g/dl | 2,10 | 1,21 - 3,63 | 0,01 |
Idade (anos) | 1,00 | 0,99 - 1,02 | 0,43 |
Diabete | 1,35 | 0,78 - 2,33 | 0,28 |
Hb > 10 g/dl | 1,37 | 0,84 - 2,23 | 0,20 |
PCR ≥ 0,5 mg/dl | 1,44 | 0,88 - 2,34 | 0,14 |
No presente estudo, no qual uma população de pacientes com DRC submetida à hemodiálise em Maceió foi avaliada, observou-se que a hipoalbuminemia, e não a anemia ou a inflamação, foi um fator independente associado à hospitalização em seguimento de um ano. A ocorrência de óbito não se relacionou à presença de anemia, inflamação ou hipoalbuminemia.
A prevalência de anemia descrita no censo de 2012 pela Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) foi de 34% nos pacientes em diálise, considerando-se Hb < 11 g/dL na definição da anemia. No presente estudo, uma prevalência semelhante foi descrita, mas a anemia foi considerada somente quando a Hb < 10 g/dL. Utilizando o mesmo critério acima, essa prevalência seria de 54%, maior que a média nacional, e mais próxima do que foi encontrado em recente estudo realizado em outra capital do Nordeste (63,6%).20 De maneira intrigante, os pacientes com anemia eram mais jovens, fato esse que pode explicar parcialmente a falta de associação entre a presença de anemia e hospitalização ou óbito observada neste estudo. Este resultado difere de dados nacionais e internacionais,5,6,8,9,23 e não foi possível encontrar uma justificativa para esse achado.
Inflamação esteve presente em cerca de 50% da população estudada, prevalência semelhante à descrita em estudos nacionais que apontam PCR aumentado em 38-59% dos pacientes sob hemodiálise.7,10 Vale ressaltar que ainda não existe um consenso sobre a concentração de PCR a partir da qual se define inflamação em pacientes urêmicos.21 Wanner et al.24 sugeriram que um PCR > 0,5 mg/L deveria ser considerado alterado nesta população. Além disso, as concentrações de PCR flutuam de forma significativa ao longo do tempo em um mesmo paciente, e coletas seriadas parecem ser mais efetivas que amostras isoladas na identificação de uma população inflamada.22 A presença de inflamação tem sido associada a piores desfechos em vários estudos.12,13,25 No presente estudo, houve tendência a menor tempo livre de hospitalização no grupo de pacientes com PCR aumentado. A baixa ocorrência de óbito e a mensuração única de PCR podem ser possíveis explicações para não termos observado uma relação entre inflamação e mortalidade nessa população.
A prevalência de hipoalbuminemia em pacientes em hemodiálise no Brasil varia de 15 a 85,3%. Essa grande variabilidade pode ser parcialmente explicada pelo valor utilizado para definir hipoalbuminemia e pelas características das populações estudadas. No censo de 2012 da SBN, a incidência de hipoalbuminemia em pacientes em hemodiálise foi de 15,2%, considerando um valor de albumina sérica < 3,5 g/dL.4 Em estudo realizado em outra capital do nordeste brasileiro, com a maioria dos pacientes (87%) pertencentes às classes socioeconômicas C, D e E, observou-se que 85,3% dos pacientes apresentavam albumina < 4,0 g/dL.20 No presente estudo a ocorrência foi elevada, 63% considerando albumina sérica < 3,8 g/dL e seria de 33% (dado não apresentado), caso fosse considerada albumina < 3,5 g/dL. Essa alta incidência, maior que a média nacional, pode ser associada à baixa renda da população estudada e pelo tempo prolongado em tratamento dialítico.
A hipoalbuminemia foi o único fator associado a hospitalização no presente estudo. Apesar de a albumina ser uma proteína da fase aguda da inflamação, não observamos relação entre as concentrações da albumina e PCR, o que pode sugerir que, nesta população, a hipoalbuminemia esteja refletindo uma condição nutricional desfavorável. Infelizmente outros parâmetros nutricionais não estavam disponíveis para permitir um diagnóstico preciso do estado nutricional dessa população. Em um recente estudo, pacientes com albumina < 3,8 g/dL que receberam intervenção nutricional precoce apresentaram um tempo livre de hospitalização maior.17 Porém, a intervenção nutricional não teve influência sobre a mortalidade.17 O aumento do risco de mortalidade parece estar associado a níveis de albumina sérica mais baixos (< 2,5 g/dL).26
Apesar da amostra relativamente pequena, o período de seguimento curto e um terço das causas de hospitalização não estarem relacionadas à infecção ou a doença cardiovascular, esse estudo foi capaz de identificar a hipoalbuminemia como um marcador de morbidade em uma população característica do Nordeste do Brasil. Uma melhor caracterização de parâmetros nutricionais e dosagem seriada de PCR ou ainda mensuração de outros marcadores de inflamação possibilitariam entender melhor o significado clínico da albumina sérica baixa nesta população.
O presente estudo evidenciou a hipoalbuminemia, e não anemia ou PCR aumentado, como um marcador independente de risco para hospitalização em pacientes submetidos à hemodiálise.