versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 18-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0069
A sarcoidose é uma doença inflamatória multissistêmica crônica, caracterizada pela presença de granulomas epiteliais e granulomas de células gigantes não necrosantes. Dentre os órgãos acometidos, os pulmões são os mais prevalentes, sendo raro o acometimento renal. Quando ocorre, são comuns distúrbios do metabolismo ósseo e mineral, como a hipercalcemia e a hipercalciúria, as quais predispõem à azotemia pré-renal, necrose tubular aguda, nefrolitíase e nefrocalcinoses.1 A concomitância de lesões pulmonares é relatada em 90% dos casos de comprometimento renal. No entanto, raramente a confirmação do envolvimento renal na sarcoidose é verificada em vida.2 A incidência é maior nos países desenvolvidos, acometendo um pouco mais as mulheres, com picos de incidência em adultos jovens entre 25 e 29 anos, e um segundo pico em pessoas com idade entre 65 a 69 anos.3
No que tange à etiologia, a causa é desconhecida, porém a hipótese mais aceita é a do hospedeiro geneticamente susceptível relacionado à exposição ambiental. Alguns estudos sugerem maior risco de sarcoidose relacionado a alelos HLA.3
O diagnóstico precoce e o tratamento adequado preservam a função renal e evitam a progressão para a forma crônica, podendo desencadear doença renal crônica e até uma possível falência renal irreversível.
O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso clínico de raro acometimento mundial, a sarcoidose renal isolada, e reafirmar a importância do diagnóstico histopatológico precoce para confirmação ou exclusão da suspeita etiológica e adequada terapêutica.
Após aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Faculdade de Medicina Nova Esperança, foi realizado um estudo descritivo do tipo Relato de Caso Clínico, com abordagem quantitativa e qualitativa, sobre sarcoidose renal isolada, por meio de entrevista com a paciente, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e levantamento de dados do prontuário médico a partir de um formulário preestabelecido, com posterior discussão científica do caso em análise.
D.M.S., paciente do sexo feminino, 50 anos, caucasiana, solteira, farmacêutica, procurou inicialmente atendimento em uma emergência hospitalar referindo olhos vermelhos e dores no corpo nos últimos quinze dias como primeiras manifestações da doença, que era tratada como conjuntivite, mas sem resolubilidade. Possuía histórico de microcálculos renais por dois anos, e na ultrassonografia renal foi evidenciada uma nefropatia parenquimatosa renal bilateral por aumento da ecogenicidade medular. Logo, foram solicitados testes seriados de função e metabolismo renal, relatando-se uma anemia, com queda de hematócritos de 25,5% para 24,9% (VR: 36 - 45), e elevação progressiva de ureia de 75 mg/dL para 132 mg/dL (VR: 16-40) e de creatinina de 1,2 mg/dL para 2,5 mg/dL (VR: 0,6-1,2) em sete dias de acompanhamento, confirmando quadro de Injúria Renal Aguda (IRA).
Iniciou-se terapêutica com prednisona 2 mg/kg ao dia por 3 meses, com redução de 5 mg por semana após esse período, até suspensão completa. Nesse ínterim, foram realizadas sorologias para hepatites B e C, anti-DNA, C3 e C4, anticorpo antiestreptolisina O (ASLO) e gamaglobulina, todos com resultados negativos, além de albumina normal de 4,4 g/dL (VR: 3,5,-4,8), descartando-se diversas possíveis etiologias infecciosas e autoimunes. Contudo, verificou-se elevação persistente da Proteína C Reativa (PCR) 11 mg/L (VR: < 8), que é um marcador inflamatório, proteinúria crescente atingindo 856,3 mg/24h em 60 dias de acompanhamento (VR: até 150), hipercalcemia de 13,1 mg/dL (VR: 8,5-10,2) e hipercalciúria de 504,7 mg/24h (VR: 100-300) (Tabela 1).
Tabela 1 Acompanhamento laboratorial
Admissão | 7 dias | 30 dias | 2 meses | 6 meses | 9 meses | |
---|---|---|---|---|---|---|
Creatinina (mg/dL) | 1.5 | 2.5 | 3.04 | 1.1 | ||
Ureia (mg/dL) | 75 | 132 | ||||
Clearence de Cr* (mL/min./1,73m2) | 69.3 | 29.11 | ||||
Calcemia (mg/dL) | 8.9 | 13.1 | 10.2 | 12.7 |
*Cr Clearance: creatinine clearance
Logo, devido ao quadro agudo de lesão renal associado à hipercalcemia e à hipercalciúria possuir indicação de biópsia renal, foi realizado exame histopatológico, que evidenciou reações granulomatosas inflamatórias no interstício renal, um achado que não é incomum em casos de lesão tubular com rotura e exposição do conteúdo para o interstício, tornando o diagnóstico de Sarcoidose Renal uma sugestão da histopatologia. Contudo, somando-se tal achado aos dados clínicos e laboratoriais da paciente, por exclusão de demais causas, e após avaliação por oftalmologista e por pneumologista, relatando ausência de demais manifestações, foi confirmado diagnóstico de Sarcoidose Renal Isolada.
A terapêutica com corticoesteroides em altas doses foi finalizada e bem-sucedida, e a paciente referiu melhora do quadro clínico e estabilidade laboratorial.
A sintomatologia da sarcoidose é muito ampla, podendo variar desde indivíduos assintomáticos ou com sintomas inespecíficos, como febre, emagrecimento, sudorese noturna e fadiga, até o comprometimento pulmonar, ocular, cutâneo, musculoesquelética e linfonodomegalia, a depender do órgão acometido. Sintomas neurológicos e cardíacos são raros, assim como as manifestações renais,3,4 que ocorrem em menos de 5% dos pacientes, dentre os quais cerca de 1% a 2% podem desenvolver Injúria Renal Aguda (IRA).3 O presente caso revelou apenas manifestações renais, confirmadas após avaliação de outros especialistas, e que evoluiu para IRA, evidenciada pelo aumento expressivo da ureia e da creatinina, em apenas sete dias de acompanhamento, inserindo-se dentro do seleto grupo mundial de pacientes com sarcoidose exclusivamente renal.
Geralmente, a manifestação renal aparece após o diagnóstico em outros órgãos ou de forma concomitante.5 As formas mais comuns de apresentação da sarcoidose renal estão relacionadas às alterações no metabolismo do cálcio, principalmente hipercalcemia, hipercalciúria, uropatia obstrutiva, doenças tubulointersticiais e doenças glomerulares.5 D.M.S. apresentou significativa hipercalcemia e hipercalciúria, e os microcálculos renais, havia 2 anos referidos na história da paciente, podem já ter sido provenientes da sarcoidose, visto que a hipercalciúria é a grande responsável pelas alterações agudas da função do rim, podendo provocar defeitos na concentração urinária, nefrocalcinose, acidose tubular renal e litíase renal, dificultando o diagnóstico.6
Os quadros de hipercalcemia prolongada que se desenvolvem na sarcoidose induzem vasoconstrição intrarrenal que, com a evolução da doença e com o retardo no diagnóstico e tratamento, acarreta isquemia persistente, podendo ocasionar diminuição da filtração glomerular e necrose tubular aguda isquêmica. A hipercalcemia é um achado comum na sarcoidose, chegando a ser encontrada em 10% a 20% dos pacientes, e decorre do aumento da absorção intestinal de cálcio e da reabsorção óssea, secundárias à elevação dos níveis da vitamina D ativa (calcitriol). Os macrófagos ativados presentes nos granulomas são os responsáveis pelo aumento do calcitriol.6
Apesar de a anemia ter origem multifatorial, nessa paciente pode ter tido origem a partir da doença renal, visto que a progressão da doença é acompanhada por uma diminuição da eritropoietina, que gera hipoproliferação das hemácias, ocasionando anemia normocrômica e normocítica. A anemia geralmente se desenvolve quando o clearance de creatinina é inferior a uma dosagem entre 35 e 45 ml/min.8 Além disso, há produção de enzima conversora de angiotensina pelos granulomas, e sua dosagem pode estar elevada em 60% dos casos.7
Diante disso, o padrão ouro para o diagnóstico da sarcoidose é a histopatologia por biópsia renal, especialmente na ausência de outros sinais extrarrenais. A sua realização é valiosa na determinação do diagnóstico e do prognóstico, e no planejamento do tratamento em curto prazo da insuficiência renal intrínseca aguda, bem como da própria sarcoidose renal e suas complicações metabólicas. O envolvimento renal parenquimatoso mais frequente (79%) é a NGTI (nefrite tubulointersticial granulomatosa não caseosa), geralmente um comprometimento agudo da função renal, quando sintomático.8
Conjuntamente, na microscopia, os tecidos acometidos pela sarcoidose desenvolvem granulomas não caseificantes constituídos por células epitelioides densamente arranjadas, com tubérculos bem individualizados,9 o que é condizente com o exame histopatológico de D.M.S., que possuiu ainda focos intersticiais de células inflamatórias histiocitárias em arranjo nodular ao redor de túbulos e entremeadas por células gigantes multinucleadas. A paciente apresentou também atrofia tubular multifocal com fibrose intersticial moderada, nefrite tubulointersticial crônica com focos granulomatosos de padrão tuberculoide (Figuras 1, 2 e 3). Porém, esse achado não é incomum em casos de outras lesões tubulares com rotura e exposição do conteúdo para o interstício, a partir de causas medicamentosas, infecciosas e inflamatórias (Tabela 2), o que tornou o diagnóstico de Sarcoidose Renal uma sugestão da análise histopatológica.
Figura 1 Atrofia tubular com fibrose intersticial, edema e infiltrado inflamatório de células linfoides (H&E - 100x). Colaboração do médico patologista Dr. Luiz A. Moura.
Figura 2 Túbulo com arquitetura alterada e circundado por reação inflamatória granulomatosa de padrão tuberculoide (seta) (PAS - 100x). Colaboração do médico patologista Dr. Luiz Moura.
Figura 3 Área de processo inflamatório em padrão granulomatoso, com célula gigante multinucleada (seta), entremeado por focos de calcificação distrófica, disposto ao redor de estrutura tubular (H&E - 100x). Colaboração do médico patologista Dr. Luiz Moura.
Tabela 2 Causas de nefrite intersticial inflamatória
Medicamentosas | Omeprazol, furosemida, alopurinol, captopril, paracetamol, AINEs, penicilinas, quinolonas, aciclovir, vancomicina, rifampicina. |
---|---|
Infecciosas | Tuberculose, hanseníase, toxoplasmose, candidíase, criptococose. |
Inflamatórias | Granulomatose com poliangeíte, granulomatose eosinofílica com poliangeíte, sarcoidose. |
Miscelânea | Pigmento de ácido úrico, heroína, nefrite tubulointersticial com uveíte (TINU). |
O tratamento foi realizado com altas doses de corticoesteroide, visto que melhora a função renal de forma rápida, porém muitos pacientes não se recuperam completamente.10 A paciente apresentou resposta satisfatória à terapêutica instituída, com melhora do quadro clínico e laboratorial completo. Corticoterapia é a base do tratamento, com utilização de 20 a 40 mg de prednisona/dia durante 6 a 12 semanas, com posterior redução da dose. Se houver falha terapêutica ou se existirem contraindicações, podem ser usados agentes imunossupressores, como azatioprina e micofenolato mofetil, ou ainda o antagonista de TNF-alfa infliximab, em crescente uso nos últimos anos e com boa resposta nos casos refratários.11
Constata-se a raridade do diagnóstico da sarcoidose puramente renal, uma vez que a doença afeta um pequeno contingente populacional e dificilmente é detectada, variando de quadro assintomático a Doença Renal Crônica. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado preservam a função renal e evitam progressão para a forma crônica secundária. Logo, é necessária a decteção rápida da queda da função renal por meio de testes de função renal, bem como realização da biópsia do órgão a partir da indicação para exame histopatológico, de forma a ratificar o quadro clínico apresentado pelo paciente e, a partir disso, iniciar o tratamento precoce e eficiente.
Neste estudo de caso, os achados clínicos, laboratoriais, radiológico e histopatológico somados confirmaram, por exclusão de demais causas, o diagnóstico de Sarcoidose Renal Isolada, instituindo-se a corticoterapia prevista com melhora clínica e laboratorial completa do quadro.