versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.34 no.2 Rio de Janeiro 2018 Epub 19-Fev-2018
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00173016
Traditionally, work accidents in Brazil have been categorized in government documents and legal and academic texts as typical work accidents and commuting accidents. Given the increase in urban violence and the increasingly precarious work conditions in recent decades, this article addresses the conceptual inadequacy of this classification and its implications for the underestimation of work accidents in the country. An alternative classification is presented as an example and a contribution to the discussion on the improvement of statistics on work-related injuries in Brazil.
Keywords: Occupational Health; Occupational Accidents; Violence; Information Systems
Tradicionalmente, los accidentes de trabajo en Brasil están siendo categorizados en documentos gubernamentales, así como en textos jurídicos y académicos, como típicos y de desplazamiento. Ante el aumento de la violencia urbana y la precarización del trabajo en las décadas recientes, se discute la inadecuación conceptual de esa clasificación y su implicación en el subdimensionamiento de los accidentes de trabajo en el país. Se presenta una clasificación alternativa, como ilustración y contribución a la discusión sobre el perfeccionamiento de las estadísticas de las lesiones asociadas al trabajo en el país.
Palabras-clave: Salud Laboral; Accidentes de Trabajo; Violencia; Sistemas de Información
“O típico acidente relacionado com o trabalho que provocou o óbito de trabalhadores residentes em Porto Alegre no ano de 1992 foi o homicídio por arma de fogo” 1 (p. 80).
Os acidentes de trabalho (AT) constituem o maior agravo à saúde dos trabalhadores brasileiros. Diferentemente do que o nome sugere, eles não são eventos acidentais ou fortuitos 2, mas sim fenômenos socialmente determinados 3, previsíveis e preveníveis.
A Lei nº 6.367, promulgada em 19 de outubro de 1976, definiu juridicamente o AT como “aquele que ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa” 4. Embora essa lei considere a possibilidade de ocorrência de AT sem vínculo estrito com a atividade de trabalho realizada pelo trabalhador no momento do ocorrido, esse cenário parece ter sido negligenciado em documentos oficiais que se seguiram.
Posteriormente, o Ministério da Previdência Social categorizou os AT como típicos e de trajeto. Os primeiros foram definidos como decorrentes da característica da atividade profissional desempenhada pelo acidentado 5. Já os de trajeto seriam os acidentes ocorridos no trajeto entre a residência e o local de trabalho 5.
De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil, dentre elas, a violência urbana, fenômeno complexo cujas raízes se aninham nas desigualdades sociais que o país criou ao longo de seu desenvolvimento. As mortes decorrentes de causas externas atingiram dois milhões de pessoas entre os anos de 1980 e 2000 no país, período em que a mortalidade por homicídios aumentou 130% 6. No início do século XXI, a mortalidade por causas externas diminuiu, passando a aumentar novamente ao fim da década de 2000, atingindo outros dois milhões de pessoas entre 2000 e 2014 (Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informações sobre Mortalidade. http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&VObj=http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10). A maioria dos atingidos era composta por homens, jovens, pretos e pardos, pobres, moradores das periferias das regiões metropolitanas brasileiras, bem como de cidades pequenas e médias da faixa de fronteira 7.
A partir dos anos 1970, a violência letal mudou substancialmente seu perfil. Tome-se, como exemplo, a cidade de São Paulo (paradigmática do que ocorreu nas grandes cidades brasileiras e para a qual a Fundação SEADE disponibiliza uma longa série histórica de dados sobre mortalidade. Ver: http://www.seade.gov.br/), onde o coeficiente de mortalidade por homicídios esteve sempre abaixo de cinco casos por 100 mil habitantes desde o início do século XX até os anos de 1960. À essa época, a maioria dos homicídios ocorria dentro das residências e decorriam, predominantemente, de questões privadas envolvendo machismo e patriarcalismo no núcleo familiar. Na década de 1970, o coeficiente de mortalidade por homicídios passou a variar entre cinco e dez por 100 mil, atingindo 65 homicídios por 100 mil habitantes em 1999. No ano 2000, 69% das vítimas foram assassinadas em vias públicas, e menos de 10%, em suas residências 8,9. A partir dos anos 1970, em São Paulo e no restante do país, cada vez mais os homicídios tornaram-se instrumento de disputa e controle territorial por meio da ação, nas periferias das regiões metropolitanas e regiões de fronteira, de grupos paramilitares de extermínio (formados por policiais civis e militares), bandos de segurança privada (“justiceiros”, muitas vezes, patrocinados por comerciantes e pequenos industriais locais) e organizações clandestinas envolvidas com o tráfico e a comercialização de drogas e armamentos (facções criminosas). Ironicamente, no início da conformação desse cenário de violência demográfica, social e espacialmente especificada, a ideologia dos grupos paramilitares e justiceiros era a da “defesa do trabalhador contra o bandido”. Para os interessados em aprofundar essa discussão, é grande o número de trabalhos, alguns dos quais são aqui citados 10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21,22.
Também a década de 1970 marcou o início de importantes transformações no mundo do trabalho. Nas economias centrais, e depois migrando para as regiões industrializadas e dependentes dos países ditos em desenvolvimento, inicia-se um quadro de crise estrutural do capitalismo 23,24. Entre muitas repercussões, essa crise fez com que o capital implementasse um importante processo de reestruturação visando recuperar seu ciclo produtivo, o que afetou fortemente o mundo do trabalho 25. A organização da produção passa a se dar cada vez menos utilizando o trabalho estável e cada vez mais às custas de diversificadas formas de trabalho precarizadas. A relação empregatícia padrão, caracterizada por emprego por um patrão, em tempo integral, baseado nas premissas do empregador, de longo prazo e com benefícios e seguridades contratuais, declina no mercado de trabalho 26,27. As novas unidades de produção utilizam cada vez mais horas extras, trabalhadores temporários, em tempo parcial e subcontratados. Criou-se, de um lado, em escala minoritária, o trabalhador “polivalente e multifuncional” da era informacional, sob maior demanda e pressão das empresas 24. De outro lado, expandiu-se um grande contingente de trabalhadores com baixa qualificação ocupacional e baixa remuneração, exemplificados, entre outros, por trabalhadores ambulantes como faxineiros, entregadores, mensageiros, motoboys, vigilantes, vendedores, prestadores de serviços fazendo as mais diversas tarefas pontuais (“bicos”), adolescentes lavando carros, entretendo motoristas de automóveis particulares, limpando sapatos ou mesmo trabalhando na prostituição e no comércio de drogas ilícitas 28,29. A questão espacial assume importante papel na crise estrutural mencionada 30. Dentre tantos reflexos, trabalhadores informais tendem a ter maior mobilidade espacial durante o exercício de suas atividades. Nesse novo contexto, os limites dos ambientes de trabalho se tornaram mais e mais tênues. Alterou-se a topografia do risco. Os tradicionais ambientes fabris, que em décadas anteriores concentravam a maioria das ocorrências dos agravos à saúde dos trabalhadores, passaram cada vez mais a ceder lugar para o “espaço da rua” como sede de acidentes do trabalho 31,32,33.
Obviamente, o grande aumento da violência como instrumento de controle territorial e a ocupação das ruas por enorme contingente de trabalhadores precarizados tiveram seu impacto no mundo do trabalho, contribuindo, de maneira importante, para a conformação do perfil de morbimortalidade dos trabalhadores brasileiros nas últimas décadas.
Entretanto, a classificação dos acidentes de trabalho acima referida não evoluiu nesse período. Os conceitos de AT típico e AT de trajeto criados nos anos 1970 estão consagrados nos meios governamentais, jurídicos e também, deve-se ressaltar, entre os estudiosos do campo da Saúde do Trabalhador. Nos Cadernos de Saúde Pública, bem como em outras revistas de circulação nacional do campo da Saúde Coletiva, são inúmeros os trabalhos que utilizam essa classificação. Fazendo-se uma busca rápida no portal regional da Biblioteca Virtual de Saúde (BIREME; http://brasil.bvs.br/), são encontradas 16 publicações nacionais indexadas pelos termos AT típico e AT de trajeto nos últimos cinco anos.
Gostaria de argumentar contra a continuidade da utilização dessa nomenclatura. Esses termos induzem, pelo menos no senso comum, a uma concepção desatualizada, e mesmo equivocada. Os bons dicionários da língua portuguesa definem típico como aquilo que normalmente acontece, que é característico, que serve de modelo. O AT não pode ser aceito como típico. Além disso, admitir que o AT decorre (apenas) da característica da atividade profissional desempenhada pelo acidentado, como define o Ministério da Previdência Social, naturaliza o AT, limitando seu reconhecimento, e mesmo atribuindo-o, a situações mais ou menos esperadas e restritas ao desempenho de funções laborais.
Se considerarmos - como deve ser - que o AT é qualquer agressão pontual, seja ela fortuita ou intencional; seja ela decorrente da ação de terceiros, de animais, de fenômenos naturais, de máquinas ou objetos, ou mesmo de lesões autoinfligidas; que ocorra durante o trabalho, a categorização típico deixa de lado a maioria dos acidentes sofridos pelo trabalhador. De fato, diversos estudos realizados nas últimas duas décadas apontaram a crescente participação de homicídios, latrocínios, sequestros, conflitos com criminosos, com policiais, com colegas de trabalho, com clientes e usuários, suicídios, e mesmo o impacto de balas perdidas, como desencadeadores de AT fatais 31,32,33,34,35,36,37,38,39.
Também a categoria de trajeto não é adequada porque, com frequência, é aplicada erroneamente, não especificando a natureza do acidente. No trajeto, o trabalhador sofre não apenas acidentes circunscritos à sua locomoção, como também acidentes estritamente decorrentes de sua atividade laboral, bem como ações intencionalmente criminosas. Além disso, a utilização da categoria de trajeto não raramente leva a intermináveis discussões de interesse estritamente pecuniário sobre a natureza do trajeto, a habitualidade do trajeto, alterações do trajeto, interrupções intencionais do trajeto etc.
O crescimento da violência urbana no Brasil e a dificuldade em identificar seus reflexos sobre a população trabalhadora implicam tanto no aumento da incidência de AT como também em seu sub-registro no país. Nos dias atuais, permanece relevante, em nosso meio, o estudo da morbimortalidade decorrente de AT, cuja gravidade é apenas tangenciada pelas estatísticas oficiais disponíveis, conforme já demostraram tantos estudos. A classificação típico/trajeto não capta os reflexos das mudanças no mercado de trabalho em décadas recentes, no contexto do aumento da violência urbana vivenciado. Ao contrário, é mais um elemento a dificultar o real dimensionamento dos AT no Brasil.
Não bastasse a ausência de informações sobre acidentes do trabalho fatais que o alijamento de enorme parcela 40 da população trabalhadora do sistema de notificação de AT do Ministério da Previdência Social traz. Não bastasse a subnotificação de acidentes do trabalho fatais, mesmo para a parcela de trabalhadores que oficialmente fazem jus a esse reconhecimento, devido a falhas de notificação do sistema. Também os reflexos da violência urbana incidindo sobre o trabalhador em sua jornada laboral geralmente não são identificados pela classificação típico/trajeto como AT, sendo classificados como violência comum - termo que por si só denuncia a gravidade e a banalização da violência em nosso meio - e assim “contribuindo para a invisibilidade das situações adversas de trabalho responsáveis pela sua ocorrência” 41 (p. 128).
A elaboração e implantação de um modo mais adequado de classificar AT, que facilite o desvelamento de seus determinantes, é tarefa de toda uma geração de pesquisadores engajados no aprimoramento das estatísticas das lesões associadas ao trabalho. Apenas como uma ilustração e contribuição para essa construção, apresento a classificação que o Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas experimentalmente está aplicando desde o início de 2015:
AT/crime: acidentes decorrentes primariamente de ato criminoso contra o trabalhador;
AT/estrito: excluída a classe anterior, são aqueles originados primariamente na execução de atividades laborais;
AT/trânsito: excluídas as classes anteriores, são aqueles decorrentes primariamente de colisões, atropelamentos ou quedas de veículos motorizados ou não no trânsito, bem como desequilíbrios, impactos ou quedas do trabalhador durante locomoção a pé;
AT/outros: acidentes não enquadrados em nenhuma classe anterior, como, por exemplo, suicídio no trabalho.
O fluxograma da Figura 1 ilustra o algoritmo utilizado nessa classificação.
Figura 1 Fluxograma para a classificação de acidentes do trabalho (AT) fatais utilizada experimentalmente pelo Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas a partir de 2015.
Classificações, frequentemente, têm áreas cinzentas. A aplicação do fluxograma contribui para a sua redução. Exemplificando, um motorista de ônibus baleado e morto enquanto se dirigia para a garagem para iniciar sua jornada de trabalho, ou já conduzindo seu veículo, é classificado como vítima de AT/crime. Já o mesmo motorista, agora vítima de acidente de trânsito fatal enquanto conduzia seu veículo, é classificado como AT/estrito. E se esse mesmo motorista sofrer acidente de trânsito fatal enquanto se dirige à garagem antes de iniciar a jornada, seu acidente é classificado como AT/trânsito.
Aplicando-se essa classificação à análise dos 378 moradores de Campinas que faleceram devido a causas externas na cidade durante o ano de 2015, foram identificados, por meio de técnicas de autópsia verbal envolvendo familiares e colegas de trabalho das vítimas, 82 AT fatais 39. Dentre esses, 25 (31%) eram AT/crime, 35 (43%) eram AT/trânsito, 3 (4%) eram suicídios no trabalho, classificados como AT/outros. Os AT estritamente relacionados a atividades laborais, que seriam os AT típicos da classificação tradicional, foram responsáveis por 19 mortes, 23% apenas do total. Note-se que, no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM; http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&VObj=http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10), do Ministério da Saúde, apenas cinco desses acidentes foram captados. E, na base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN; http://portalsinan.saude.gov.br), também do Ministério da Saúde, estão notificados somente dez desses AT fatais, todos classificados como AT típico. Em que pese a potencialização do desempenho da classificação aqui apresentada conferida pela busca ativa realizada, quando comparada com as rotinas de registro do SIM e do SINAN, não se pode deixar de considerar que existe uma grande diferença de resultados.
Classificar desse modo os AT tem duas intenções. Por um lado, ressaltar que a organização do trabalho e os modos como o trabalhador é levado a desenvolver suas atividades laborais são apenas uma parte importante do problema. Por outro lado, dar maior visibilidade aos reflexos das mudanças no mercado de trabalho em décadas recentes - com a expansão do setor de serviços e a maior exposição do trabalhador ao ambiente da rua - no contexto da violência urbana brasileira, expresso pela criminalidade e os conflitos por ela gerados, pela agressividade do trânsito, pelo aumento da incidência do suicídio. Hoje, qualquer ação que vise diminuir a ocorrência de acidentes do trabalho precisa contemplar essa realidade.