versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.590/1809-2950/43521032014
Um fenômeno relevante em países em desenvolvimento é a escolaridade baixa. No Brasil, a escolaridade dos adultos é seis anos e a dos idosos é três anos1. Aprender a ler e escrever influencia a organização funcional do cérebro humano. Indivíduos com escolaridade baixa tendem a apresentar menor ativação em regiões corticais, núcleos da base, tálamo e cerebelo, em tarefas cognitivo-motoras2 e no giro fusiforme esquerdo em tarefas perceptuais3. A escolaridade baixa muda o padrão de potenciais cerebrais relacionados a eventos4 e a ativação do hipocampo direito, ínsula posterior, tálamo e opérculo5 durante a realização de tarefas de memória. Também diminui o metabolismo de glicose na realização de tarefas cognitivas no giro cingulado posterior, precuneus6, giro temporal lateral, médio e superior e temporal medial à esquerda7. Em indivíduos com doença de Alzheimer, a escolaridade baixa aumenta o efeito negativo (alterações cognitivas) das concentrações de beta-amiloide no tecido cerebral8.
Indivíduos com escolaridade baixa têm mais dificuldade em tarefas de percepção visual (são mais lentos e cometem mais erros), por exemplo, ao identificarem representações bidimensionais de objetos9 , 10. Além disso, apresentam maior tempo e mais erros em tarefas de cancelamento de figuras11. Com relação a habilidades cognitivas, estudos mostraram pior desempenho em linguagem, aritmética e memória. Indivíduos não alfabetizados apresentaram pior desempenho numa tarefa de repetição de pseudopalavras do que os alfabetizados e apresentam maior dificuldade em tarefas de fluência verbal, cálculo, representação monetária e retenção de palavras9 , 12 - 14.
Há muitos estudos sobre diferenças perceptuais e cognitivas causadas por diferenças de escolaridade, mas poucos sobre diferenças motoras. Testes neuropsicológicos utilizam respostas motoras (falar, escrever, desenhar), mas as discussões costumam ser centradas no desempenho cognitivo. Por outro lado, muitos trabalhos que estudam o comportamento motor ignoram a escolaridade da amostra e não discutem possíveis influências dessa sobre o desempenho e a aprendizagem. Este trabalho visou descrever evidências sobre a influência da escolaridade no comportamento motor (e suas repercussões na avaliação fisioterapêutica) e na aprendizagem motora (e suas repercussões no tratamento fisioterapêutico).
Foi realizado um levantamento bibliográfico dos últimos 15 anos (1998 a 2013), em periódicos nacionais e internacionais, nas bases de dados SciELO, MEDLINE e LILACS. Foram utilizadas todas as combinações entre: escolaridade, nível educacional, controle motor, comportamento motor, desempenho motor e aprendizagem motora (educational status, schooling level, motor control, motor behavior, motor performance, motor learning).
Foram analisados todos os artigos e teses que atendiam aos critérios de inclusão: (1) investigação do efeito da escolaridade sobre o desempenho motor; (2) escritos em português ou inglês; e (3) disponíveis (formato impresso ou digital) no Brasil. Inicialmente, 60 estudos foram localizados. Desses, 28 foram selecionados por apresentarem como objetivo principal ou secundário a investigação da influência da escolaridade no desempenho motor. Os demais não foram incluídos porque visavam estudar a influência da escolaridade na percepção (14 trabalhos), na cognição geral, sem considerar o desempenho motor (11 trabalhos), na taxa de sobrevida, renda e/ou qualidade de vida (7 trabalhos). A seguir, são apresentados os principais resultados dos 28 estudos.
Os estudos encontrados evidenciaram os efeitos da escolaridade baixa na diminuição da capacidade visuomotora, menor destreza e habilidade práxica em tarefas motoras envolvendo tanto membros superiores quanto membros inferiores9 , 14 - 24. De modo geral, foi observada maior dificuldade de indivíduos menos escolarizados na aprendizagem de novos movimentos20. Além disso, os estudos relataram que indivíduos com escolaridade baixa apresentavam sinais precoces de envelhecimento cognitivo e motor. Descreveram também pior capacidade de indivíduos menos escolarizados na expressão de ideias oralmente e por escrito.
De modo geral, idosos menos escolarizados apresentavam menor independência funcional e menor coordenação e força de preensão manual23. Os estudos também relataram maior prevalência de alterações de função executiva25 e de demência entre idosos menos escolarizados26 - 31. A influência negativa da escolaridade baixa foi ainda descrita para o desempenho e a recuperação cognitiva e motora de outras doenças, como traumatismo crânio-encefálico32, doença de Parkinson33 , 34. Também foi citada a influência da escolaridade nas abordagens terapêuticas para prevenção de quedas em idosos saudáveis35.
A escolaridade baixa resulta na diminuição da capacidade visuomotora, menor destreza e habilidade práxica. Indivíduos com escolaridade baixa apresentam pior desempenho nas tarefas de construção de réplicas com cubos, a partir de figuras desenhadas14, cópia de figuras15 , 17 e desenho do relógio9 , 18. Também apresentam pior desempenho em movimentos manuais, como imitar gestos, apertar teclas e opor dedos16 , 19 - 22.
Indivíduos com escolaridade baixa parecem adotar estratégias diferentes para execução e aprendizagem. Duas estratégias são usadas para ajudar na formulação de um movimento. A primeira é baseada na análise visual do movimento (sensorial), com transformação da informação visual em representação motora. A segunda é baseada na interpretação verbal do gesto (semântica) e ocorre quando, por exemplo, é dado um comando verbal para um movimento. Indivíduos com escolaridade alta usam as duas estratégias para realizar movimentos. Porém, a estratégia semântica é menos elaborada nos indivíduos com escolaridade baixa, o que os torna mais dependentes da estratégia visual, resultando em falhas e pontuações mais baixas em testes16.
Em um experimento que associou uma tarefa visual de identificação e comparação de figuras a uma tarefa motora de alternância de passos do chão a uma plataforma, indivíduos com escolaridade baixa apresentaram maior dificuldade nas tarefas isoladas e mais erros na tarefa visual quando essa foi realizada simultaneamente à tarefa motora24. Também apresentaram mais dificuldade na aprendizagem de uma sequência de oposição de dedos, com mais erros e menos velocidade na sequência treinada e maior dificuldade de generalização da aprendizagem para uma tarefa não treinada20.
A educação tem um efeito protetor contra as perdas de desempenho cognitivo-motor causadas pelo envelhecimento25 , 26. Indivíduos com escolaridade baixa apresentam sinais precoces de envelhecimento cognitivo. Em uma série de estudos conhecida como "estudo das freiras", participaram mulheres com diferentes escolaridades, mas que desde a juventude ordenaram-se freiras e mantiveram hábitos de vida semelhantes. Ao longo do processo de envelhecimento, as freiras com escolaridade baixa apresentaram piora mais precoce da coordenação e da força de preensão manual, acuidade visual, capacidade de expressar ideias por escrito e independência funcional23.
Uma maior escolaridade compensa a progressão da doença de Alzheimer e atrasa suas manifestações clínicas. A teoria da reserva cognitiva propõe que a educação fornece uma reserva cognitiva e neurológica, por meio de mudanças neuronais ou aumento da eficiência de redes de processamento, assim, os sintomas clínicos da degeneração decorrente da doença de Alzheimer surgem mais tardiamente27 - 29. Há maior prevalência de demência entre os idosos com escolaridade baixa30.
A capacidade de inibir uma resposta motora, avaliada pelo teste de Stroop, piora com o envelhecimento de forma mais acentuada em indivíduos com escolaridade baixa25. Indivíduos com oito ou mais anos de estudo têm maior proteção contra redução da capacidade cognitiva5 , 7 , 26. Esses dados foram confirmados por estudos com neuroimagem3 - 7 e post-mortem 8 , 26 , 31, que demonstraram que, entre indivíduos com demência com o mesmo comprometimento clínico e a mesma classificação de gravidade da doença e prejuízo cognitivo, aqueles com escolaridade baixa apresentavam menor número de achados neuropatológicos. A hipótese da compensação sugere que a alta escolaridade pode diminuir o declínio cognitivo até um ponto no qual habilidades básicas começam a se deteriorar com o envelhecimento. Nesse momento, indivíduos com maior escolaridade podem mostrar uma progressão mais rápida do declínio cognitivo27 , 29.
Além de estudos sobre demência, outros trabalhos abordaram a influência da escolaridade baixa no desempenho e na recuperação de outras doenças. Walker et al.32 avaliaram indivíduos com sequelas de traumatismo crânio-encefálico realizando tarefas de completar figuras, códigos, cubos, raciocínio matricial, arranjo de figuras, procurar símbolos e armar objetos. Observaram um efeito de idade e escolaridade, com pior desempenho para os mais idosos e com escolaridade baixa32. Homann et al.33 avaliaram indivíduos com doença de Parkinson em uma tarefa de apertar teclas alternadas em um teclado o mais rápido possível, mas sem comprometer a precisão, e verificaram que indivíduos mais idosos e com escolaridade baixa apresentam menor velocidade.
A redução do equilíbrio funcional e o aumento do risco de quedas, que ocorrem com o envelhecimento, são agravados pela escolaridade baixa. Idosos com escolaridade baixa tendem a apresentar menor pontuação na escala de equilíbrio de Berg e no teste Timed Up and Go. Além disso, indivíduos com maiores pontuações na Escala de Equilíbrio de Berg apresentaram melhor desempenho no teste trail making, o que sugere uma relação entre equilíbrio e função executiva34 , 35.
Hester et al.36, Tombaugh37 e Barnes et al.38 estudaram a influência da idade e da escolaridade no teste trail making. A interferência da idade e da escolaridade baixa não foi igual nas partes A e B do teste. Na parte A, mais simples, o desempenho piorou com o aumento da idade, mas não sofreu interferência da educação. Na parte B, mais complexa, os indivíduos sofreram tanto influência da idade quanto da escolaridade. Portanto, para indivíduos com escolaridade baixa, houve declínio mais acentuado do desempenho a cada década de vida36 - 38. Outro estudo adaptou o teste trail making para ser realizado deambulando sobre um tatame, ao invés de riscar o trajeto com o lápis sobre o papel. Verificaram que houve o mesmo efeito de idade e escolaridade: indivíduos mais idosos e com escolaridade baixa apresentaram menor velocidade, principalmente, na parte B39.
Gitlin et al.40 investigaram se diferenças de escolaridade em idosos poderiam resultar em ganhos distintos após um programa de orientações que visou minimizar disparidades entre capacidade física e demandas ambientais, com exercícios de equilíbrio e fortalecimento muscular, treino de reações de proteção e de levantar do chão de forma segura, em casos de quedas, formas de uso de ferramentas, conservação de energia e modificações na residência para maior segurança. O desempenho foi avaliado após 6 e 12 meses de intervenção. O grupo com escolaridade baixa apresentou melhora maior do que o grupo com escolaridade alta. Uma possível explicação para esse fato é a menor acessibilidade a esse tipo de informação, bem como a recursos de assistência à locomoção e menor conhecimento de estratégias compensatórias40.
Níveis mais altos de escolaridade estão associados à melhor eficiência executiva13 , 25 , 29. Em uma tarefa que envolvia controle inibitório e alternância de padrão de resposta verbal a estímulos sonoros, indivíduos com nível superior apresentaram desempenho equivalente ao de indivíduos menos escolarizados e dez anos mais jovens. Portanto, níveis mais altos de escolaridade podem diminuir a influência do envelhecimento em tarefas cognitivo-motoras.
Na prática fisioterapêutica e em pesquisa clínica, é importante considerar que indivíduos com escolaridade baixa podem ficar mais tensos em avaliações13 e reduzir a velocidade da tarefa avaliada devido ao maior medo de cometer erros20 , 23, por terem menor familiaridade com situações de teste, frequentes em atividades escolares. Como a fluência verbal e a memória podem ser piores em indivíduos com escolaridade baixa9 , 12, a anamnese e a orientação utilizando informações visuais associadas às verbais podem ter resultados mais positivos do que a utilização de recursos exclusivamente verbais. Há estudos mostrando melhor percepção de indivíduos com escolaridade baixa diante de objetos reais ou fotos do que com representações esquemáticas bidimensionais10, logo, é interessante, ao transmitir orientações, utilizar esse tipo de recurso.
Ao reproduzirem movimentos sequenciais, pessoas com escolaridade baixa podem ter maior dificuldade, o que poderia justificar a solicitação de sequências motoras simplificadas, ou subdivididas. Apesar de haver dificuldade de execução, aprendizagem e generalização de tarefas motoras, indivíduos com escolaridade baixa melhoram o desempenho com o treinamento20 , 24 , 38, portanto, é interessante treinar essas atividades.
Considerando o processo fisiológico de envelhecimento, é importante considerar que indivíduos com escolaridade baixa poderão apresentar maior dependência nas atividades de vida diária, pior equilíbrio e menor velocidade de locomoção26 , 35 , 41 - 45. Indivíduos idosos com escolaridade baixa apresentam maior dependência de auxílio para a realização de atividades funcionais41. Segundo Gregory et al.42, a escolaridade baixa é um preditor independente da incidência de dificuldades de mobilidade em nível pré-clínico. É importante acompanhar esses indivíduos, verificando demandas de intervenção multiprofissional que possam apresentar. Esse grupo costuma ter menor acesso a tratamentos de saúde e orientações, bem como a recursos de assistência à locomoção e menor conhecimento de estratégias compensatórias40, portanto, serão os indivíduos que provavelmente mais se beneficiarão de intervenções.
Por fim, na reabilitação de indivíduos com demência5 , 7 , 9 , 12 , 18 , 26 - 30, doença de Parkinson33 , 34, traumatismo crânio-encefálico32 e acidente vascular encefálico46 é importante considerarmos a escolaridade do indivíduo para escolhermos a melhor estratégia de avaliação e tratamento, pois diversos estudos mostraram que em indivíduos com escolaridade baixa o impacto de lesões cerebrais na independência funcional é maior.
A síntese dos trabalhos apresentados na presente revisão está no Quadro 1.
A escolaridade dos pacientes deve ser considerada pelos fisioterapeutas em situações experimentais e clínicas, pois diversos estudos mostraram sua influência na avaliação e tratamento de jovens e idosos.