versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.4 Rio de Janeiro jul./ago. 2019 Epub 02-Set-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190033
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 20 milhões de indivíduos morrerão por doenças cardiovasculares até o ano de 2030. As doenças cardiovasculares, entre as doenças crônicas não transmissíveis, são responsáveis por cerca de 47,2% das mortes no mundo e por aproximadamente 33% de mortes no Brasil(1).
Neste contexto, a triagem para dislipidemias como fator de risco para doenças cardiovasculares e o manejo de medicamentos hipolipemiantes são parte fundamental da atenção primária(2). Por muitos anos, a determinação do perfil lipídico de rotina, incluindo triglicerídeos (TG), colesterol total e frações do colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL-c) e do colesterol da lipoproteína de alta densidade (HDL-c), vem sendo realizada em laboratório de análises clínicas em amostras de sangue coletadas em condição de jejum de no mínimo 8 horas(3,4). O conjunto desses resultados adicionado à avaliação genética, comportamental e nutricional do sujeito podem prever o risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares crônicas(5-8). Dessa forma, são diversas as razões para a necessidade do jejum, principalmente porque o estado pós-prandial altera a composição de lipoproteínas, refletindo em um aumento na concentração de TG, o qual tem relação direta com o conteúdo de lipídios e carboidratos da alimentação. Além disso, o aumento do TG impacta no cálculo da fração LDL-c quando utilizada a equação de Friedwald(9).
No entanto, sabe-se que a maior parte da vida dos indivíduos acontece em estado metabólico pós-prandial, e a coleta de amostra em jejum para determinar riscos cardiovasculares futuros tem sido muito contestada(10). Evidências recentes têm demonstrado que a concentração de TG mensurado em períodos sem jejum prévio foi considerada um melhor preditor para eventos coronarianos futuros, quando comparada com TG coletado em jejum, tanto em homens quanto em mulheres(9). Porém, ainda há muitas controvérsias a respeito desse tema. A Sociedade Dinamarquesa de Bioquímica Clínica, em 2009, e o Instituto Nacional de Excelência Clínica do Reino Unido (NICE), em 2014, recomendaram a utilização de amostra de sangue sem jejum prévio para a determinação do perfil lipídico de rotina(11); a Sociedade Europeia de Aterosclerose e a Federação Europeia de Química Clínica e Medicina Laboratorial também seguem essa recomendação(12). Em contraste, as diretrizes divulgadas em 2013 pelo Colégio Americano de Cardiologia/Associação Americana do Coração (ACC/AHA) apresentam predileção por amostras coletadas em jejum para essa finalidade(8, 13).
No Brasil, segundo o Consenso Brasileiro para Normatização da Determinação Laboratorial do Perfil lipídico, de dezembro de 2016, a flexibilização do jejum para a avaliação do perfil lipídico segue as seguintes motivações: a) o paciente encontra-se por mais tempo em estado alimentado, o que torna mais eficaz o seu potencial impacto sobre o risco cardiovascular; b) praticidade de coleta para o paciente; c) a coleta pós-prandial é mais segura em diversas situações, como em pacientes diabéticos; d) as dosagens não diferem significativamente se dosadas no estado pós-prandial ou em jejum; e) redução do congestionamento nos laboratórios, principalmente na parte da manhã; f) os principais ensaios disponíveis mitigaram as interferências causadas pela maior turbidez nas amostras, decorrentes de elevadas concentrações de TG, com os avanços tecnológicos nas metodologias diagnósticas(14).
Assim, devido às controvérsias ainda existentes no que se refere as dosagens do perfil lipídico no estado pós-prandial e em jejum, este estudo objetivou avaliar se existem diferenças significativas nas dosagens do perfil lipídico em amostras de sangue coletadas em diferentes períodos de jejum em homens e mulheres com ou sem diagnóstico de hipercolesterolemia.
Trata-se de um estudo transversal, exploratório e observacional/descritivo que foi realizado com 50 voluntários de ambos os sexos, com ou sem diagnóstico de hipercolesterolemia, habitantes da cidade de Severiano de Almeida, Rio Grande do Sul, Brasil. Este projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) e aprovado sob o parecer consubstanciado de número 2.578.688.
Como critérios de inclusão no estudo, foram considerados: ser adulto acima de 18 anos; fazer ou não tratamento medicamentoso para hipercolesterolemia; e ter disponibilidade para os horários das coletas estabelecidas. Como critérios de exclusão, foram considerados voluntários menores de 18 anos e aqueles que não atenderam aos procedimentos pré-coletas. Os voluntários participantes do estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e preencheram um formulário sociodemográfico que abordava questões que envolviam dados relacionados a sexo, idade, realização atividade física - quantas vezes por semana -, histórico familiar de doença cardiovascular - e o grau de parentesco -, se já foi diagnosticado com doença cardiovascular, se faz uso de alguma medicação - quais medicações e o tempo do tratamento - e se faz restrição alimentar.
A amostra foi obtida por meio de duas coletas de sangue para cada paciente, realizadas no Laboratório de Análises Clínicas Burlab S/C Ltda, pela farmacêutica Claudia Regina Colla. A primeira coleta foi realizada em condições de jejum prévio de 12 horas e a segunda, no mesmo dia, porém em condições pós-prandial, ou seja, duas horas após o almoço. Os tubos para a coleta de sangue foram identificados, e, em seguida, a coleta foi realizada por punção venosa, com assepsia prévia, obtendo uma quantidade de 5 ml de sangue por amostra, utilizando-se agulha de 25 × 7 mm, com uma seringa de volume total de 5 ml. A seguir, o sangue coletado foi transferido para um tubo com ativador de coágulo, já identificado no início da coleta. Ao final do procedimento, seringa e agulha eram descartadas em um coletor para perfurocortantes; colocou-se um stopper no local da punção. Após o encerramento das coletas, os voluntários foram informados sobre a data de liberação do laudo, porém só foram liberados os resultados do lipidograma correspondente aos valores de jejum.
Os tubos que continham as amostras de sangue foram centrifugados por 5 minutos a 3.000 rotações por minuto (rpm). Após a obtenção do soro, deu-se início às análises bioquímicas. Foram mensurados dois controles internos de qualidade antes do início das análises para avaliação do controle de qualidade de todos os procedimentos e parâmetros analisados. O equipamento utilizado para as análises foi o analisador bioquímico automático SX-160 da Sinnowa Brasil®, o qual utiliza o tubo primário. As mensurações de colesterol total e TG foram determinadas pelo método enzimático colorimétrico; o HDL-c, pelo método direto, utilizando reagentes da Biotécnica®; já o LDL-c, por sua vez, a partir da fórmula recomendada por Friedewald et al. (1972)(15).
Todos os resultados obtidos foram compilados e apresentados por meio de gráficos. As variáveis qualitativas foram apresentadas de forma descritiva; as variáveis bioquímicas quantitativas, analisadas pelo teste t de Student para amostras pareadas, através do software GraphPad Prism®. A diferença estatística foi considerada significativa quando p < 0,05.
Dos 50 voluntários que participaram do estudo, 23 (46%) eram do sexo masculino e 27 (54%), do sexo feminino, com a faixa etária variando entre 22 e 86 anos e mediana de 32 anos.
De acordo com o questionário sociodemográfico preenchido pelos participantes voluntários, observou-se que 15 (30%) indivíduos realizavam atividades físicas, sendo elas caminhadas uma a três vezes por semana; 35 (70%) voluntários não realizavam nenhum tipo de atividade física. Em relação às doenças cardiovasculares, constatou-se que 14 (28%) participantes não têm histórico dessa patologia e 36 (72%) possuem familiares com alguma doença cardiovascular, com grau de parentesco próximo (pai, mãe e irmãos). Destes (72%), 10 (27,7%) já foram diagnosticados com alguma doença cardiovascular; entre eles, quatro (40%) fazem uso de medicação: atorvastatina 90 mg e sinvastatina 10 mg.
Quanto à dieta, 40 (80%) voluntários admitiram não fazer restrição alimentar; somente 10 (20%) fazem restrição, evitando frituras e gorduras.
Os resultados obtidos do perfil lipídico foram analisados de acordo com os dados encontrados na Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose (2017), em condições metabólicas de jejum e pós-prandial, efetuando-se uma comparação em relação a sexo, diagnóstico ou não de hipercolesterolemia e uso de medicamentos.
A Figura 1 mostra os valores obtidos dos TG séricos (A e B), do colesterol total (C e D), do LDL-c (E e F) e do HDL-c (G e H) de todos os indivíduos avaliados em condições de jejum prévio e pós-prandial, bem como quando eles foram separados por sexo. Pode-se observar que houve um aumento significativo nas concentrações de TG quando mensurado o valor pós-prandial, tanto na população total (t(49) = 7,653; p < 0,001; Figura 1A) quanto no grupo de homens (t(20) = 5,751; p < 0,001) e de mulheres (t(28) = 5,457; p < 0,001) (Figura 1B). Por outro lado, notou-se diminuição significativa na concentração de LDL-c quando avaliada em todos os voluntários (t(47) = 4,499; p < 0,001; Figura 1E) e no grupo de homens (t(19) = 6,151; p < 0,001) e mulheres (t(27) = 2,342; p < 0,05) (Figura 1F).
FIGURA 1 Perfil lipídico de indivíduos mensurado após jejum prévio de 12 horas e de forma pós-prandialA figura mostra a concentração de TG no soro (A), colesterol total (C), LDL-c (E) e HDL-c (G) no total dos voluntários (n = 50) avaliados, bem como a concentração de TG no soro (B), colesterol total (D), LDL-c (F) e de HDL-c (H) quando eles foram separados entre homens (n = 21) e mulheres (n = 29). Os dados representam a média ± o erro padrão da média.TG: triglicerídeos; LDL-c: colesterol da lipoproteína de baixa densidade; HDL-c: colesterol da lipoproteína de alta densidade; *p < 0,05 e ***p < 0,001 quando comparados os valores obtidos no jejum prévio e no pós-prandial do mesmo indivíduo (teste t de student para amostras pareadas).
Além desses valores, também se observou diminuição significativa na concentração de HDL-c quando comparados os resultados em jejum e pós-prandial, apenas no grupo composto por mulheres (t(28) = 2,057; p < 0,05) (Figura 1H). As concentrações de colesterol total não apresentaram diferença significativa entre os grupos (Figuras 1C e D).
A Figura 2 mostra os valores obtidos da mensuração de TG no soro em homens e mulheres, portadores ou não de hipercolesterolemia. Foi possível observar que a elevação dessa fração lipídica no período pós-prandial manteve-se de forma significativa em todos os grupos avaliados.
FIGURA 2 Concentração de TG no soro de indivíduos portadores e não portadores de hipercolesterolemia mensurada após jejum prévio de 12 horas e de forma pós-prandialA figura mostra a concentração de TG no soro de indivíduos do sexo masculino não portadores (n = 13) e portadores (n = 8) de hipercolesterolemia (A), e de indivíduos do sexo masculino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 5) ou não (n = 3) (B). Também mostra a concentração de TG no soro de voluntários do sexo feminino não portadores (n = 15) e portadores (n = 14) de hipercolesterolemia (C), e de voluntários do sexo feminino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 8) ou não (n = 6) (D). Os dados representam a média ± o erro padrão da média.TG: triglicerídeos; *p < 0,05 e ***p < 0,001 quando comparados os valores obtidos no jejum prévio e no pós-prandial do mesmo indivíduo (teste t de student para amostras pareadas).
Houve aumento significativo de TG em homens no período pós-prandial, tanto nos indivíduos portadores (t(7) = 4,880; p < 0,01) e não portadores (t(12) = 3,701; p < 0,01) de hipercolesterolemia (Figura 2A) como naqueles que realizavam tratamento (t(4) = 3,459; p < 0,05) ou não (t(2) = 7,835; p < 0,05) para essa condição metabólica (Figura 2B). O mesmo padrão de resultados foi observado nas mulheres: aumento significativo de TG no período pós-prandial nas portadoras (t(13) = 3,89; p < 0,01) e não portadoras (t(14) = 5,151; p < 0,001) de hipercolesterolemia (Figura 2C), bem como naquelas que realizavam tratamento (t(13) = 3,889; p < 0,01) ou não (t(5) = 3,310; p < 0,05) para essa condição metabólica (Figura 2D).
Com relação ao colesterol total, não foram evidenciadas diferenças significativas nos resultados das concentrações séricas, tanto nas mulheres quanto nos homens portadores ou não de hipercolesterolemia, bem como quando comparados os que fazem ou não uso de medicação (Figura 3).
FIGURA 3 Concentração de colesterol total de voluntários portadores e não portadores de hipercolesterolemia mensurada após jejum prévio de 12 horas e de forma pós-prandialA figura mostra a concentração de colesterol total no soro de indivíduos do sexo masculino não portadores (n = 13) e portadores (n = 8) de hipercolesterolemia (A), e de indivíduos do sexo masculino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 5) ou não (n = 3) (B). Também mostra a concentração de colesterol total no soro de voluntários do sexo feminino não portadores (n = 15) e portadores (n = 14) de hipercolesterolemia (C), e de voluntários do sexo feminino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 8) ou não (n = 6) (D).Os dados representam a média ± o erro padrão da média (teste t de student para amostras pareadas).
A Figura 4 mostra os resultados obtidos da mensuração de LDL-c no soro em homens e mulheres portadores e não portadores de hipercolesterolemia. No grupo masculino, foi possível observar uma diminuição significativa nessa fração lipídica quando mensurada no período pós-prandial dos indivíduos portadores (t(7) = 45,827; p < 0,001) e não portadores (t(11) = 3,758; p < 0,01) (Figura 4A), bem como naqueles que realizavam tratamento (t(4) = 4,384; p < 0,05) ou não (t(2) = 11,59; p < 0,01) para essa condição metabólica (Figura 4B).
FIGURA 4 Concentração de LDL-c no soro de indivíduos portadores e não portadores de hipercolesterolemia mensurada após jejum prévio de 12 horas e de forma pós-prandialA figura mostra a concentração de LDL-c no soro de indivíduos do sexo masculino não portadores (n = 13) e portadores (n = 8) de hipercolesterolemia (A), e de indivíduos do sexo masculino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 5) ou não (n = 3) (B). Também mostra a concentração de LDL-c no soro de voluntários do sexo feminino não portadores (n = 15) e portadores (n = 14) de hipercolesterolemia (C), e de voluntários do sexo feminino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 8) ou não (n = 6) (D). Os dados representam a média ± o erro padrão da média.LDL-c: colesterol da lipoproteína de baixa densidade; *p < 0,05, **p < 0,05 e ***p < 0,001 quando comparados os valores obtidos no jejum prévio e no pós-prandial do mesmo indivíduo (teste t de student para amostras pareadas).
Em relação ao grupo das mulheres, observou-se somente uma diminuição significativa na concentração de LDL-c pós-prandial nas voluntárias que não são portadoras de hipercolesterolemia (t(14) = 3,172; p < 0,05; Figura 4C) e naquelas que não fazem nenhum tratamento para essa condição metabólica (t(2) = 4,856; p < 0,05; Figura 4D).
Por fim, não foram observadas diferenças significativas nos resultados das concentrações séricas em jejum e pós-prandial de HDL-c nos portadores ou não de hipercolesterolemia de ambos os sexos avaliados e nos que fazem uso ou não de medicamentos para essa patologia (Figura 5).
FIGURA 5 Concentração de HDL-c no soro de indivíduos portadores e não portadores de hipercolesterolemia mensurada após jejum prévio de 12 horas e de forma pós-prandialA figura mostra a concentração de HDL-c no soro de indivíduos do sexo masculino não portadores (n = 13) e portadores (n = 8) de hipercolesterolemia (A), e de indivíduos do sexo masculino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 5) ou não (n = 3) (B). Também mostra a concentração de HDL-c no soro de voluntários do sexo feminino não portadores (n = 15) e portadores (n = 14) de hipercolesterolemia (C), e de voluntários do sexo feminino portadores de hipercolesterolemia que fazem uso de medicamentos orais (n = 8) ou não (n = 6) (D). Os dados representam a média ± o erro padrão da média (teste t de student para amostras pareadasHDL-c: colesterol da lipoproteína de alta densidade.
No presente estudo, foram avaliadas as características sociodemográficas e o perfil lipídico em dois períodos metabólicos: jejum de 12 horas e pós-prandial, de 50 voluntários de ambos os sexos, com diagnóstico confirmado ou não de hipercolesterolemia. Notou-se discrepância principalmente quando comparados os achados bioquímicos nas análises das concentrações séricas de LDL-c e TG, os quais se mostraram mais elevados no período pós-prandial. Por outro lado, o colesterol total e o HDL-c apresentaram pouca variação ao se comparar os resultados no estado de jejum e no pós-prandial.
No Brasil, a doença cardiovascular aterosclerótica é considerada um grave problema de saúde pública devido ao grande número de indivíduos acometidos e à falta de conhecimento dessa patologia, ou mesmo pela falta de orientações e tratamento adequado, aumentando os riscos para o desenvolvimento de doenças cardíacas(16). Nesse contexto, a dislipidemia é considerada um fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares por conta da alteração na quantidade de lipoproteínas, representada pelo aumento e/ou pela diminuição das partículas, além de ser vista como uma desregulação metabólica frequente atualmente(17). Mais precisamente, as determinações bioquímicas de TG, colesterol total e frações HDL-c e LDL-c constituem o perfil lipídico de uma maneira geral, o qual é importante para a análise de possíveis doenças coronarianas agudas nos indivíduos(18).
Em relação à mensuração dos TG no soro, foi observado em nosso trabalho um aumento quando avaliados em um período pós-prandial, ou seja, de 2 horas após a ingestão de alimentos. Segundo um consenso, por razão dessa circunstância, sugere-se jejum de 10 a 12 horas para a coleta da amostra e posterior dosagem, pelo fato de poderem ocorrer possíveis variações entre 25% e 50%(18).
Segundo Pereira et al. (2014)(19), a variação dos ácidos graxos consumidos e a relação quanto ao risco aumentado das doenças cardiovasculares, bem como as concentrações plasmáticas de lipídios e lipoproteínas têm sido amplamente demonstradas em diversos estudos experimentais e populacionais. Além disso, algumas pesquisas evidenciaram a hipertrigliceridemia como um fator de risco independente para doenças coronarianas, uma vez que ela contribui diretamente para a aterogênese das lipoproteínas ricas em TG, particularmente as lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL)(20). No entanto, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (2017), hipertrigliceridemia pode ser um distúrbio mais fácil de ser controlado, pois depende do estilo de vida, da dieta (ingestão de carboidratos simples em geral) e da frequência de atividade física. Dificilmente a elevação de TG é isolada; ela sempre vem acompanhada do aumento do colesterol total e do LDL-c e da diminuição de HDL-c. Por outro lado, o aumento do TG e do colesterol podem estar associados a uma doença genética do metabolismo das lipoproteínas, o qual independe de dieta. A hipercolesterolemia familiar (HF) é uma doença hereditária autossômica dominante, sendo o diagnóstico feito por critérios clínicos e laboratoriais. Essa condição é caracterizada pelo aumento de partículas de LDL-c plasmática, que são passíveis de oxidação e contribuem para a formação da placa aterosclerótica(18).
Corroborando o nosso estudo, Schiavo et al. (2005)(21) dosaram TG em indivíduos de ambos os sexos em diferentes dias da semana e demonstraram que as dosagens na segundafeira foram maiores do que as de quinta-feira, isso porque a alimentação do final de semana, com ingestão de alimentos mais gordurosos, normalmente difere da alimentação durante a semana. Esse achado permite concluir que somente o jejum de 12 horas não é suficiente para uma análise fidedigna das reais condições do paciente em relação às dosagens de TG. Da mesma forma, foi possível observar que as alterações de TG no presente estudo não mostram a real condição do paciente na coleta pós-prandial; isso evidencia que essa coleta não deveria ser feita com o paciente sem um jejum prévio. Como alternativa não medicamentosa, estudos demonstram que a redução da ingestão de carboidratos da dieta leva a uma menor ingestão calórica total, e os carboidratos poderiam ser substituídos por proteínas, o que auxiliaria na perda de peso, resultando em alterações metabólicas, melhorando as variáveis lipídicas e reduzindo níveis plasmáticos de TG, VLDL, colesterol total e LDL-c(22).
No que se refere às dosagens de colesterol total, uma explicação para o fato de essa molécula não ter seu valor alterado significativamente quando comparadas as duas coletas em jejum e pós-prandial seria devido à hipercolesterolemia, que é um fator independente para a aterosclerose, pois, apesar de também se associar à ingestão de alimentos calóricos, se relaciona principalmente a fatores não controláveis, como idade, raça e hereditariedade(23). Assim, o reconhecimento precoce de pacientes portadores de hipercolesterolemia familiar auxilia na diminuição da morbimortalidade por meio de orientações adequadas e medidas terapêuticas necessárias(19).
Ademais, o aumento de colesterol total combinado com o LDL-c representa uma estreita correlação com o aumento do risco cardiovascular. Dessa forma, pode-se dizer que o aumento do LDL-c não acompanha a queda ou a elevação do TG, uma vez que esses dois parâmetros são independentes(18).
Neste estudo, quando avaliada a fração de LDL-c - partículas compostas por colesterol que, quando em excesso na corrente sanguínea, se oxidam e adentram na camada íntima da parede arterial, causando um processo inflamatório (o que favorece a obstrução do vaso) e aumentando relativamente o risco para a progressão de doença cardiovascular(24) - houve uma variação significativa após a segunda coleta, ou pós-prandial. Segundo Polanckzyc (2005)(25), concentrações elevadas LDL-c são consideradas um importante fator de risco para doenças cardiovasculares. Na maioria dos eventos cardiovasculares, salvo algumas exceções, a concentração das lipoproteínas séricas aumenta com a presença de células da musculatura lisa e deixa a lesão aterosclerótica mais evidente. A evolução desse processo faz com que a estrutura natural da musculatura lisa seja modificada, o que leva à perda do tônus e da resistência. Conforme a placa de ateroma aumenta de tamanho no interior das artérias, o lúmen diminui, podendo chegar a um nível crítico, dificultando o fluxo de sangue e acarretando angina e outras complicações, até óbito(26).
De acordo com Oliveira et al. (2010)(7), os níveis de LDL-c são mais elevados em homens quando comparados com as mulheres. Podemos associar esse fator à gordura abdominal e ao índice de massa corporal (IMC). De qualquer modo, a correlação entre índices antropométricos, perfil lipídico e hábitos de vida em ambos os gêneros resultam em fatores de risco para doença cardiovascular.
Neste estudo, o HDL-c não mostrou variação estatística significativa após a segunda coleta. Segundo Kelley et al. (2012)(27), o HDL-c é o indicador do perfil mais sensível, pois responde rapidamente à dieta e à atividade física. Portanto, existe uma variação aproximadamente inversa entre os níveis de TG e de HDL-c, de modo que elevados níveis de TG tendem a associar-se a baixos níveis de HDL-c(23). Além disso, sabe-se que os níveis séricos de HDL-c retratam um fator protetor contra a aterosclerose através da remoção de lipídios oxidados do LDL-c, a inibição da fixação de moléculas de adesão e monócitos ao endotélio e a estimulação da liberação de óxido nítrico. Portanto, baixos níveis de HDL-c são conhecidos como fatores de risco para doença cardiovascular(26).
As partículas de HDL-c são formadas no fígado, no intestino e na circulação e seu principal conteúdo proteico é representado pelas proteínas Apo AI e Apo AII(28). Como essa lipoproteína não está presente na dieta, esse fato poderia explicar por que ela não sofreu alteração das duas coletas realizadas neste estudo, independente do jejum.
Estudos comprovam que o diagnóstico precoce de alterações no perfil lipídico é muito benéfico, tanto para a identificação daqueles indivíduos com maior risco, quanto para melhorar o tratamento e evitar doenças cardiovasculares futuras(26). Para tanto, a necessidade de jejum mínimo foi estabelecida na literatura e nas normas vigentes, sendo utilizada para a maioria dos exames laboratoriais, variando de acordo com as particularidades de cada exame. Assim, definiu-se jejum como um período de 8 a 12 horas sem a ingestão de alimento, apenas água, pois se entende que o consumo de alimentos horas antes da coleta dos exames laboratoriais pode alterar seus resultados, particularmente aqueles cuja metodologia é sensível à turvação(14).
Como podemos observar neste estudo, algumas frações sofreram alterações quando o paciente não estava em jejum adequado, o que resultou em valores maiores e não mostrou a real condição do organismo, podendo ocasionar um tratamento inadequado ou até mesmo desnecessário. Embora os dados apresentados referiram-se a uma única localidade e a um determinado grupo socioeconômico, o presente estudo é importante pela contribuição aos dados nacionais, principalmente em razão da pouca existência, na literatura, de trabalhos com enfoque no perfil lipídico relacionados com jejum, bem como sobre as possíveis variações nas frações, que também foram demonstradas.
Diante dos resultados deste estudo, foi observado que o colesterol total e o HDL-c são os componentes do perfil lipídico que poderiam ser dosados sem jejum prévio, pois não tiveram alterações significativas nos indivíduos avaliados. Porém, os estudos que discutem esses critérios ainda são escassos. Dessa forma, são necessários mais estudos que tenham uma população maior e mais heterogênea, compreendendo diferenças socioeconômicas, de alimentação e estilo de vida. Além disso, constatou-se a necessidade de ações de promoção à saúde para a melhoria da qualidade de vida da população estudada.