versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 04-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3865
Óbito com função é uma das principais causas mundiais de perda de enxerto em receptores de transplante renal. Uma revisão recente de quase dez mil transplantes renais revelou que o óbito com função foi responsável por 45% das perdas do enxerto renal.1 Diferentemente dos países desenvolvidos, em que eventos cardiovasculares são a principal causa de óbito, nesta grande coorte de receptores de transplante renal de um país em desenvolvimento, a principal causa de óbito foi infecção, não apenas durante o primeiro ano, mas em qualquer momento após o transplante renal.1 O risco de óbito se eleva com a idade do receptor de 5,8% para indivíduos com menos de 50 anos para 45,5% em pacientes com mais de 80 anos. O risco de óbito se acentua ainda mais na presença de comorbidades como hipertensão, dislipidemia e diabetes pós-transplante.2
Um estudo anterior descreveu vários fatores de risco associados a óbito nos primeiros seis meses após o transplante, incluindo idade do doador e causa do óbito, sexo do receptor, compatibilidade HLA, alterações no eletrocardiograma, peso no momento do transplante, auxílio financeiro, renda mensal e ter filhos e suporte familiar.3 Pacientes de extratos socioeconômicos mais baixos apresentam maior risco de mortalidade2 e indivíduos com renda mais baixa apresentam acréscimo de 36,2% no risoc de perda do enxerto.4 Antigamente era difícil avaliar o impacto dos fatores socioeconômicos sobre o desfecho do transplante, de forma que raça era utilizada como marcador substituto para a condição socioeconômica do paciente. Naquele cenário, pacientes negros, geralmente em pior situação socioeconômica, apresentavam menor sobrevida do enxerto.5 As variáveissocioeconômicas sempre influenciaram os desfechos relacionados à saúde.3 Em estudo anterior, quatro das dez variáveis que influenciaram os desfechos dos transplantes foram socioeconômicas, possivelmente explicando a aparente discrepância nas causas de óbito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.3
Outros fatores socioeconômicos foram associados a perda do enxerto e óbito após transplante renal. Um deles é o índice de desenvolvimento humano (IDH), medida estatística utilizada como indicador de saúde para classificar regiões levando em conta questões fomo expectativa de vida, escolaridade e renda per capita.6,7 Por fim, o ambiente local também influencia os desfechos relacionados à saúde. Assim sendo, saneamento, clima, doenças endêmicas e acesso a atenção à saúde podem influenciar os desfechos dos transplantes renais. Considerando tal cenário complexo, investigamos também as causas e os fatores de risco associados a óbito nos primeiros cinco anos após o transplante renal.
O presente estudo caso-controle retrospectivo unicêntrico comparou os desfechos demográficos e clínicos dos pacientes que foram a óbito pareados com controles vivos por um período de cinco anos a contar da realização do transplante renal. O delineamento de caso-controle obstaculizou a consideração de vários fatores de risco tradicionais tais como idade do receptor, diabetes e doença cardiovascular. Contudo, o objetivo foi investigar para além dos fatores de risco tradicionais e determinar o possível envolvimento dos fatores de risco socioeconômicos e ambientais locais. Os dados foram extraídos do banco de dados eletrônico e avaliados cuidadosamente. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética local.
Foram incluídos apenas os pacientes que receberam transplante renal de 1º de janeiro de 2007 a 31 de dezembro de 2009, possibilitando assim cinco anos de seguimento até 31 de dezembro de 2014. Durante esse período, foram realizados 2305 transplantes renais. Foram excluídos 140 receptores de retransplantes, 126 receptores de transplantes combinados de rim/pâncreas e 166 receptores pediátricos. Da coorte final de 1.873 pacientes, foram identificados todos os óbitos nos primeiros cinco anos após o transplante para formar o grupo caso. O grupo de controle (1:1) foi selecionado a partir da mesma coorte, com pareamento para as seguintes variáveis: data de transplante; sexo, raça e idade do receptor (+/- 5 anos); idade do doador (+/- 5 anos); sexo e tipo de doador (vivo ou falecido); e uso de indução com timoglobulina.
O objetivo do presente estudo foi identificar os fatores de risco associados ao óbito nos primeiros cinco anos após transplante renal. Foram também analisadas as características socioeconômicas e demográficas, incidência de internações, função renal e causas de óbito específicas.
Os dados foram colhidos retrospectivamente a partir dos prontuários e incluíram variáveis relacionadas ao receptor, doador e transplante. Também avaliamos o índice de desenvolvimento humano (IDH) da cidade de cada paciente por meio do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (http://www.atlasbrasil.org.br/, acessado em 13 de junho de 2016)7 e a distância percorrida até o centro de transplantes usando o Google Maps(tm) (maps.google.com). As profissões foram classificadas em três categorias principais com base nas informações obtidas no momento do transplante: ocupações de alto nível (posição hierárquica mais elevada), ocupações intermediárias (nível hierárquico mais baixo) e ocupações mais baixas (trabalho manual ou repetitivo), incluindo também os que nunca trabalharam ou que estavam desempregados de acordo com a National Statistics Socio-economic Classification (NS-SEC).8
A terapia de indução com basiliximab ou globulina antitimocítica de coelho e os regimes imunossupressores de manutenção em sua maioria com inibidor da calcineurina em combinação com agente antiproliferativo ou inibidor da mTOR foram elaborados com base no protocolo institucional e fundamentados na avaliação do risco imunológico. Todos os pacientes receberam corticosteroides, 1 mg de metilprednisolona por via endovenosa em bolus antes da revascularização do enxerto, seguido de 0,5 mg/kg/dia de prednisona com elevação rápido da dosagem para 5 mg/dia de 30 a 45 dias após o transplante. Todos os pacientes receberam sulfametoxazol-trimetoprima por pelo menos seis meses para profilaxia contra pneumonia por Pneumocystis jirovecii e infecção do trato urinário. Todos os pacientes receberam albendazol para infecções parasitárias. Nenhum dos pacientes recebeu profilaxia farmacológica para infecção por citomegalovírus (CMV). Em vez disso, todos os pacientes receberam terapia preemptiva.
Função tardia do enxerto (FTE) foi definida como a necessidade de diálise durante a primeira semana após o transplante, com exceção da diálise por hipercalemia. A taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) foi calculada através da fórmula MDRD. Episódios de rejeição aguda incluíram casos de rejeição aguda comprovada por biópsia (RACB) (Banff 2005), enquanto os casos de rejeição aguda clínica giraram em torno de episódios de disfunção aguda do enxerto tratados com metilprednisolona por pelo menos três dias sem confirmação histológica (sem biópsia, biópsia com representação insuficiente dos compartimentos renais ou biópsia sem evidência de rejeição aguda). Foram avaliadas todas as causas de óbito e perda do enxerto. Pacientes transferidos para outros centros e indivíduos que faltaram consultas por mais de seis meses foram considerados como perdidos durante o seguimento.
O número de consultas ambulatoriais e dias de reinternação foram calculados para ambos os grupos durante o tempo de seguimento e descritos em meses. Todos os eventos adversos graves (EAG) ocorridos durante as internações foram registrados e classificados de acordo com o critério comum de terminologia para eventos adversos (CCTEA) versão 4.0.
O teste de Kolmogorov-Smirnov foi aplicado para verificar a normalidade das variáveis numéricas. As variáveis com distribuição normal foram resumidas em termos de média e desvio padrão; suas diferenças foram comparadas pelo teste t de Student. Variáveis sem distribuição normal foram resumidas em termos de mediana e intervalo; suas diferenças foram comparadas pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney. Frequências e o teste do qui-quadrado foram utilizados para variáveis qualitativas. As análises de risco univariada e multivariada foram realizadas usando a regressão de Cox com intervalo de confiança de 95%. Todos os testes foram analisados por meio do programa SPSS Statistics 18.0 (SPSS Inc., Chicago, IL). Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Dos 1873 adultos receptores de primeiros transplantes renais, 162 foram a óbito, 159 tiveram perda do enxerto e 165 foram perdidos no seguimento cinco anos após o transplante. As sobrevidas correspondentes dos pacientes, enxertos e enxertos censuradas para óbito foram 91,4%, 82,9% e 90,7%, respectivamente. Os 162 óbitos foram pareados com 144 controles com base nos critérios pré-definidos; pequenos desvios foram necessários para os 18 controles restantes (transplantes anteriores a 2007 [n = 4] ou após 2009 [n = 5], sem pareamento para idade do doador [n = 3], gênero [n = 4] ou tipo de doador [n = 2]). Entre os 162 indivíduos no grupo de controle, houve nove perdas de enxerto, onze indivíduos foram perdidos durante o seguimento e cinco transplantes foram realizados após 2009, levando a um total de 137 pacientes que completaram os cinco anos de seguimento.
Os pacientes que foram a óbito nos primeiros cinco anos após o transplante apresentaram maior probabilidade de ter diabetes mellitus e estar em diálise por mais tempo; além disso, três deles haviam tido contato prévio com tuberculose (Tabela 1). Não houve diferenças significativas na comparação das variáveis estado civil, religião e IDH. Os pacientes que foram a óbito tendiam a ter menor nível de escolaridade e a estar desempregados. Curiosamente, os pacientes que foram a óbito viviam mais próximos do centro de transplante (Tabela 2). Não houve diferença evidente no uso e tipo de agente de indução ou nos regimes imunossupressores de manutenção. A maioria dos pacientes recebeu terapia de indução seguida de tacrolimus com micofenolato ou azatioprina (Tabela 3).
Tabela 1 Características demográficas da população estudada
Variáveis | óbito (n = 162) | controle (n = 162) | p |
---|---|---|---|
Idade do receptor (anos), média ± DP | 50,3 ± 12,2 | 49,8 ± 12,6 | 0,971 |
Sexo do receptor (masculino), N (%) | 96 (59,3) | 102 (63) | 0,494 |
Causa da doença renal crônica, N (%) | 0,418 | ||
Indeterminada | 75 (46,3) | 79 (48,8) | |
Hipertensão | 14 (8,6) | 11 (6,8) | |
Diabetes mellitus | 32 (19,8) | 24 (14,8) | |
Glomerulonefrite | 11 (6,8) | 17 (10,5) | |
Tempo em diálise (meses), média ± DP | 53,9 ± 41,5 | 36,9 ± 31,0 | < 0,001 |
Tipo de terapia renal substitutiva, N (%) | 0,019 | ||
Preemptiva | 2 (1,2) | 12 (7,4) | |
Hemodiálise | 146 (90,1) | 140 (86,4) | |
Peritoneal | 14 (8,7) | 10 (6,2) | |
Histórico de diabetes mellitus, N (%) | 47 (29) | 30 (18,5) | 0,026 |
Contato prévio com tuberculose, N (%) | 3 (1,9) | 0 (0) | 0,082 |
Anticorpos reativos ao painel, (%) | |||
Classe I, média ± DP | 7 ± 17 | 8 ± 20 | 0,265 |
Classe II, média ± DP | 6 ± 19 | 3 ± 13 | 0,01 |
Incompatibilidades HLA, média ± DP | 2,8 ± 1,6 | 2,3 ± 1,6 | 0,64 |
Idade do doador, anos, média ± DP | 46,5 ± 12,7 | 46,0 ± 12,9 | 0,763 |
Sexo do doador, masculino, N (%) | 79 (48,7) | 87 (53,7) | 0,405 |
Tipo de doador, N (%) | 0,968 | ||
Vivo | 51 (31,5) | 53(32,7) | |
Falecido, critério padrão | 76 (46,9) | 74 (45,7) | |
Falecido, critério expandido | 35 (21,6) | 35 (21,6) | |
Tempo de isquemia fria do doador falecido, horas, média ± DP | 25,4 ± 6,42 | 24,9 ± 5,76 | 0,163 |
HLA: antígeno leucocitário humano.
Tabela 2 Características socioeconômicas e culturais da população estudada
Variáveis, N (%) | óbito (N = 162) | controle (N = 162) | p |
---|---|---|---|
Estado civil | 0,966 | ||
Casado | 104 (64,2) | 104 (64,2) | |
Coabitação | 3 (1,9) | 5 (3,1) | |
Separado | 2 (1,2) | 3 (1,9) | |
Divorciado | 6 (3,7) | 7 (4,3) | |
Solteiro | 37 (22,8) | 33 (20,4) | |
Viúvo | 8 (4,9) | 9 (5,6) | |
Outros | 2 (1,2) | 1 (0,6) | |
Religião | 0,255 | ||
Adventista | 1 (0,6) | 0 (0) | |
Ateu | 6 (3,7) | 9 (5,6) | |
Batista | 0 (0) | 2 (1,2) | |
Católica | 109 (67,3) | 96 (59,3) | |
Evangélica | 27 (16,7) | 33 (20,4) | |
Testemunha de Jeová | 3 (1,9) | 1 (0,6) | |
Protestante | 0 (0) | 3 (1,9) | |
Espírita | 5 (3,1) | 3 (1,9) | |
Outras | 11 (6,8) | 15 (9,3) | |
Escolaridade | 0,133 | ||
Primário incompleto | 29 (17,9) | 22 (13,6) | |
Secundário incompleto | 82 (50,6) | 72 (44,4) | |
Secundário ou superior | 51 (31,5) | 68 (42,0) | |
Classificação profissional | < 0,001 | ||
Intermediária | 8 (4,9) | 31 (19,1) | |
Baixa | 75 (46,3) | 80 (49,4) | |
Desempregado | 79 (48,8) | 51 (31,5) | |
Índice de Desenvolvimento Humano da cidade-2010 | 0,373 | ||
Muito alto | 68 (42) | 72 (44,4) | |
Alto | 88 (54,3) | 87 (53,7) | |
Médio | 6 (3,7) | 2 (1,2) | |
Baixo | 0 (0) | 1 (0,6) | |
Distância de deslocamento até o centro, Km, média ± DP | 93,98 ± 191,87 | 144,92 ± 342,93 | 0,011 |
Tabela 3 Imunossupressão inicial
Regime, n (%) | óbito (n = 162) | controle (n = 162) |
---|---|---|
Indução | ||
Nenhum | 52 (32) | 65 (40) |
Basiliximab | 96 (59) | 80 (49) |
Globulina antitimocítica | 14 (9) | 17 (11) |
Manutenção | ||
Tacrolimus/micofenolato | 78 (48) | 68 (42) |
Tacrolimus/azatioprina | 54 (33) | 56 (35) |
Tacrolimus/inibidores da mTOR | 2 (1) | 3 (2) |
Ciclosporina/micofenolato | 7 (4) | 6 (4) |
Ciclosporina/azatioprina | 3 (2) | 13 (8) |
Ciclosporina/inibidores da mTOR | 5 (3) | 4 (3) |
Outros | 13 (8) | 12 (8) |
mTOR: proteína alvo da rapamicina em mamíferos.
Os pacientes que foram a óbito apresentaram maior incidência de função tardia do enxerto, maior incidência de episódios de rejeição aguda tratados, maior número de episódios de rejeição aguda tratados com globulina antitimocítica de coelho (r-ATG) e TFGe mais baixa em comparação ao grupo controle durante os cinco anos de seguimento (Tabela 4).
Tabela 4 Desfechos clínicos durante o seguimento de cinco anos
óbito (N=162) | controle (N=162) | p | |
---|---|---|---|
Função tardia do enxerto, n (%) | 67 (41) | 47 (29) | 0,012 |
Tratamento de rejeição aguda, n (%) | 62 (38) | 47 (29) | 0,078 |
Todas as rejeições agudas tratadas com r-ATG, n (%) | 22 | 11 | |
TFGe, média ± DP (n) | |||
Dia 1 | 12,3 ± 11,6 (161) | 13,3 ± 12,1 (162) | 0,307 |
Mês 3 | 50,8 ± 25,1 (118) | 56,7 ± 20,7 (157) | 0,137 |
Mês 6 | 50,8 ± 21,6 (102) | 58,4 ± 20,8 (154) | 0,839 |
Mês 12 | 55,8 ± 25,3 (91) | 61,4 ± 20,4 (148) | 0,1 |
Mês 24 | 49,9 ± 21,9 (67) | 59,8 ± 20,5 (148) | 0,669 |
Mês 36 | 50,3 ± 23,8 (43) | 60,2 ± 20,3 (141) | 0,162 |
Mês 48 | 45,9 ± 23,8 (20) | 58,5 ± 20,2 (137) | 0,368 |
Mês 60 | - | 58,1 ± 21,3 (137) |
r-ATG: globulina antitimocítica de coelho; TFGe: taxa de filtração glomerular estimada pela equação MDRD (mL/min/1,73 m2).
Os pacientes que foram a óbito tinham maior número de consultas no centro de transplante, internações, dias de internação e eventos adversos (Tabela 5). Infecções e doenças parasitárias foram responsáveis pela maioria dos eventos adversos. Infecção do trato urinário, pneumonia, sepse e infecção por CMV contabilizaram a maioria das infecções que levaram a reinternação. Apesar de pneumonia e sepse terem sido mais prevalentes entre os pacientes que foram a óbito, não foram observadas diferenças claras para infecções do trato urinário e por CMV. Curiosamente, infecções de pele, fístulas urinárias e rejeição aguda foram mais prevalentes no grupo de controle, sem diferenças significativas para outros eventos adversos específicos durante as internações na comparação entre os dois grupos (Figura 1).
Tabela 5 Consultas, internações e eventos adversos ocorridos durante os cinco anos de seguimento
óbito (N = 162) | controle (N = 162) | p | |
---|---|---|---|
Consultas no centro de transplantes, n/mês, média ± DP | 1,5 ± 1,3 | 0,8 ± 0,4 | < 0,001 |
Número de pacientes internados, N (%) | 139 (86) | 107 (66) | < 0,001 |
Reinternações, N | 446 | 294 | |
Reinternações por paciente, média ± DP | 2,7 ± 2,7 | 1,8 ± 2,1 | 0,058 |
Dias de internação (n/mês), média ± DP | 12,7 ± 32,7 | 2,8 ± 16,3 | < 0,001 |
Eventos adversos, N | 704 | 408 | |
Eventos adversos por paciente, média ± DP | 5,1 ± 3,8 | 3,8 ± 2,9 | 0,194 |
Figura 1 Causas de eventos adversos segundo o CCTEA. DSCL: distúrbios dos sistemas circulatório e linfático; DC: distúrbios cardíacos; DE: distúrbios endócrinos; DGI: distúrbios gastrointestinais; DGCLA: distúrbios gerais e condições no local da administração; DIP: distúrbios infecciosos e parasitários; LICP: lesão, intoxicação e complicações do procedimento; I: investigação; DMN: distúrbios metabólicos e nutricionais; DMTC: distúrbios musculoesqueléticos e do tecido conjuntivo; NBMI: neoplasias benignas, malignas e inespecíficas (incluem cistos e pólipos); SN: sistema nervoso; DRU: distúrbios renais e urinários; DRTM: distúrbios respiratórios, torácicos e mediastinais; DV: distúrbio vascular; DH distúrbios hepatobiliares; DP: distúrbios psiquiátricos.
De forma geral, infecção foi a principal causa de óbito seguida de eventos cardiovasculares (Tabela 6). Os fatores de risco associados a mortalidade foram histórico de diabetes, tipo e tempo em diálise, desemprego, função tardia do enxerto, consultas no centro, número de internações e número de dias de internação. Após a análise multivariada, apenas tempo em diálise, consultas no centro e dias de internação permaneceram associados a óbito (Tabela 7).
Tabela 6 Distribuição das causas de óbito nos cinco anos de seguimento
Período (meses) | 0-3 | 4-6 | 7-12 | 13-24 | 25-36 | 37-48 | 49-60 | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pacientes em risco | 162 | 118 | 102 | 91 | 67 | 43 | 20 | |
Óbitos, n (%) | 40 | 16 | 15 | 24 | 24 | 23 | 20 | 162 |
Causa, n (%) | ||||||||
Infecção | 20 (50) | 9 (56) | 9 (60) | 9 (38) | 16 (67) | 10 (44) | 12 (60) | 85 (53) |
Cardiovascular | 14 (35) | 6 (38) | 2 (13) | 7 (29) | 2 (8) | 5 (21) | 4 (20) | 40 (24) |
Choque hemorrágico | 5 (13) | 0 (0) | 1 (7) | 1 (4) | 1 (4) | 0 | 0 | 8 (5) |
Neoplasia maligna | 0 | 0 | 1 (7) | 3 (12) | 1 (4) | 4 (18) | 1 (5) | 10 (6) |
Sistema nervoso | 0 | 0 | 1 (7) | 1 (4) | 1 (4) | 0 | 3 (2) | |
Indeterminada | 1 (2) | 1 (6) | 1 (7) | 4 (17) | 3 (13) | 3 (13) | 3 (15) | 16 (10) |
Tabela 7 Fatores de risco associados a óbito nos cinco anos de seguimento
Variáveis | análise univariada | análise multivariada | ||
---|---|---|---|---|
Razão de Risco (95% CI) | p | Razão de Risco (95% CI) | p | |
Idade do receptor, por ano | 1,001 (0,988 - 1,013) | 0,943 | ||
Receptor com histórico de diabetes | 1,473 (1,049 - 2,068) | 0,025 | 1,058 (0,734 - 1,526) | 0,763 |
Terapia renal substitutiva | ||||
Preemptiva (ref) | ||||
Hemodiálise | 4,515 (1,118 - 18,227) | 0,034 | 2,177 (0,524 - 9,040) | 0,284 |
Peritoneal | 6,028 (1,369 - 26,534) | 0,018 | 4,348 (0,972 - 19,456) | 0,055 |
Tempo em diálise, meses | 1,008 (1,004 - 1,012) | < 0,001 | 1,005 (1,001 - 1,009) | 0,019 |
Escolaridade | ||||
Secundário ou superior (ref) | ||||
Secundário incompleto ou inferior | 1,339 (0,961 - 1,865) | 0,085 | ||
Profissão | ||||
Empregado (ref) | ||||
Desempregado | 1,609 (1,182 - 2,190) | 0,003 | 1,340 (0,966 - 1,858) | 0,079 |
Distância até o centro | 1,000 (0,999 - 1,000) | 0,324 | ||
Idade do doador | 1,002 (0,999 - 1,014) | 0,790 | ||
Tipo de doador | ||||
Vivo (ref) | ||||
Falecido | 1,023 (0,704 - 1,487) | 0,905 | ||
Função tardia do enxerto, sim | 1,473 (1,077 - 2,014) | 0,015 | 1,029 (0,730 - 1,451) | 0,868 |
Tratamento de rejeição aguda, sim | 1,246 (0,907 - 1,713) | 0,175 | ||
Consultas no centro, consultas/mês | 1,743 (1,568 - 1,938) | < 0,001 | 1,750 (1,574 - 1,946) | < 0,001 |
Internações, sim | 2,046 (1,315 - 3,184) | 0,002 | 1,527 (0,947 - 2,463) | 0,083 |
Dias de internação, dias/mês | 1,011 (1,007 - 1,014) | < 0,001 | 1,015 (1,011 - 1,018) | < 0,001 |
Nesta coorte de 1873 adultos receptores de primeiro transplante renal, as sobrevidas dos pacientes (91,4%), enxertos (82,9%) e enxertos censurada para óbito (90,7%) mostraram concordância com outras análises maiores de registros.9,10 O presente estudo de caso-controle revelou que infecção foi a causa de óbito mais prevalente nos primeiros cinco anos após o transplante. Notavelmente, 25% de todos os óbitos ocorreram durante os primeiros três meses após o transplante, explicitando um período de risco de mortalidade superior ao risco enfrentado por pacientes em diálise.11,12 Quarenta e quatro por cento de todos os óbitos ocorreram até o final do primeiro ano. Doença cardiovascular foi a segunda causa de óbito mais prevalente na amostra. Entretanto, a maioria desses óbitos (64,3%) ocorreu no primeiro ano pós-transplante, enfatizando o elevado risco cardiovascular dos pacientes mesmo antes do transplante.13 Nos Estados Unidos14 e Austrália15 a principal causa de óbito é doença cardiovascular, seguida de infecção e malignidade. Já nos países em desenvolvimento, a principal causa de óbito após transplante renal é infecção, seguida de doença cardiovascular.16-18 A baixa incidência de óbito por malignidade talvez esteja associada ao ainda limitado tempo de seguimento de cinco anos.
A diferença na causa primária de óbito deve-se a uma interação complexa de fatores relacionados a doadores, receptores e ao ambiente. O tempo em diálise está associado a elevação do risco e gravidade de infecções, doenças cardiovasculares e desnutrição, comorbidades reconhecidamente associadas a óbito após transplante.19,20 O diabetes mellitus é uma característica demográfica sabidamente associada a elevação do risco de mortalidade após transplante renal.14,21 A prevalência global de receptores com histórico clínico de diabetes mellitus foi de 24%, com prevalência mais elevada entre os pacientes que foram a óbito no decurso dos cinco anos de seguimento. Apesar de uma prevalência semelhante de 23% ter sido observada na Europa,22 nos EUA a prevalência chega a 40%.23
A combinação de manutenção inadequada do doador falecido, uso de rins com critério expandido e tempo prolongado de isquemia fria são fatores conhecidamente associados à elevação da incidência de função tardia do enxerto. Apesar de uma meta análise não ter revelado relação significativa entre função tardia do enxerto e sobrevida do paciente aos cinco anos,24 análises mais recentes de registros mostraram influência na mortalidade de longo prazo.25 Além disso, pacientes que desenvolvem função tardia do enxerto apresentam maior incidência de rejeição aguda, 26 função inferior do enxerto27-29 e sobrevida do paciente.27,30,31
Os pacientes que foram a óbito apresentaram maior prevalência de internações, densidade de internação e consultas no centro de transplantes do que os pacientes do grupo de controle, talvez em função do maior número de comorbidades, complicações após a cirurgia e pior desfecho do transplante. A frequência de internação de receptores de transplante renal é seis vezes maior do que a da população geral.32 Embora as internações relacionadas a doenças cardiovasculares e infecciosas estejam associadas a maior taxa de mortalidade na população geral,33 tal evidência não se confirma entre receptores de transplante renal.32,33
As características sociodemográficas da população transplantada, que incluem fatores como escolaridade, profissão, renda e índice de desenvolvimento, estão associadas aos desfechos do transplante.34 Baixa renda foi identificada como fator relacionado a pior prognóstico de sobrevida de enxertos e pacientes nos Estados Unidos.4 Woodward et al. mostraram que mesmo nos primeiros três anos após o transplante, período em que o Medicare garante o acesso a imunossupressão nos Estados Unidos, renda mais baixa esteve associada a menor sobrevida de pacientes e enxertos.4 O acesso a serviços de saúde é outra variável fundamental que também influencia os desfechos dos transplantes,4,35 conforme evidenciado quando se comparam as sobrevidas 5-10 nos EUA e na Europa. 35 Limitações no acesso a centros de atenção à saúde e medicamentos, com a consequente influência negativa na adesão ao tratamento, são os principais vetores desta questão. Apesar do acesso a serviços de saúde ser universal e gratuito no Brasil, pacientes de baixa renda compartilham outras dificuldades, como o ônus de ter que arcar com o transporte para comparecer às consultas e buscar atendimento imediato e a compra de medicamentos não fornecidos pelo governo. Além disso, a falta de conhecimento sobre a saúde está associada a dificuldades em compreender os efeitos benéficos de uma dieta equilibrada, atividade física e adesão ao tratamento.4,36,37
A mortalidade na população geral está associada ao IDH.38 Curiosamente, o IDH também foi correlacionado a taxas de transplante em vários países.6 Notadamente, mais de 95% dos pacientes incluídos na presente análise moravam em cidades com IDH alto ou muito alto, sem diferença entre os grupos. Contudo, o IDH de uma cidade não captura as disparidades dentro de tal cidade, como regiões altamente desenvolvidas cercadas por áreas de acentuada pobreza.
A presente análise tem limitações, incluindo o delineamento de caso-controle retrospectivo unicêntrico e uma coorte relativamente pequena. A escolha pelo delineamento de caso-controle pode ter ocultado importantes fatores de risco. A influência da imunossupressão não pôde ser determinada em função da relativa homogeneidade dos protocolos. Dadas as amplas disparidades geográficas do Brasil, a interpretação e extrapolação de nossos resultados para outras regiões requer cautela.
Em resumo, a presente análise confirmou que infecção é a principal causa de mortalidade nos primeiros cinco anos após transplante renal. Vários fatores de risco demográficos e socioeconômicos foram associados ao óbito, a maioria dos quais não é prontamente modificável. Estratégias para reduzir a mortalidade devem incluir melhorias na educação, situação socioeconômica, conscientização e acesso a hábitos saudáveis, incluindo alimentação e atividade física, maior apoio social e acesso facilitado a centros de atenção à saúde.