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A ingestão energética de pacientes em hemodiálise é subrelatada?

A ingestão energética de pacientes em hemodiálise é subrelatada?

Autores:

Inaiana Marques Filizola Vaz,
Ana Tereza Vaz de Souza Freitas,
Maria do Rosário Gondim Peixoto,
Sanzia Francisca Ferraz,
Marta Izabel Valente Augusto Morais Campos

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.37 no.3 São Paulo jul./set. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150056

Introdução

A estimativa da ingestão energética em qualquer população não é uma tarefa fácil. Em estudos epidemiológicos, a avaliação da ingestão alimentar é geralmente baseada no autorrelato individual, processo que pode sofrer distorções e resultar em sub ou super-relato da ingestão.1,2 Quando não identificado, o sub-relato produz vieses de mensuração e resultados inconsistentes,1 levando a uma interpretação errônea da ingestão de energia e nutrientes,3 o que pode dificultar o diagnóstico nutricional e gerar uma intervenção dietética inadequada.

Apesar dos estudos demonstrarem uma ingestão energética abaixo das recomendações para pacientes em hemodiálise, uma prevalência expressiva de excesso de peso e de gordura corporal,4,7 ou a manutenção dos parâmetros antropométricos ao longo do tempo,8 têm sido encontradas nessa população. Este paradoxo pode estar relacionado ao sub-relato da ingestão alimentar.

O sub-relato é uma distorção do autorrelato da ingestão alimentar1. Em geral, é decorrente da falha do indivíduo em recordar todos os alimentos consumidos ou da subestimativa das quantidades ingeridas. Também é entendido como uma discrepância entre a ingestão energética referida e a medida do gasto energético sem mudança ou manutenção do peso durante um período de observação.9

Embora seja bem referenciado na literatura para indivíduos saudáveis,1 o sub-relato é ainda pouco estudado na doença renal crônica,3,5,8 sobretudo na população em hemodiálise. Kloppenburg et al.8 avaliaram o sub-relato em indivíduos em hemodiálise, identificando uma prevalência superior a 60%. No Brasil, poucos trabalhos investigaram o sub-relato em renais crônicos4,5 e somente um avaliou a população em hemodiálise, encontrando uma prevalência de 65%.7

Assim, a carência de dados nacionais quanto à subnotificação da ingestão alimentar de portadores de doença renal crônica estimulou a realização deste estudo, com o objetivo de verificar a prevalência de sub-relato da ingestão energética e os fatores associados em pacientes em hemodiálise.

Métodos

Estudo transversal, realizado em dez centros de hemodiálise de Goiânia-GO, de maio de 2009 a março de 2010. O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG, protocolo nº 011/2009) e da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia (protocolo nº 046/2009), sendo obtido termo de consentimento de cada participante.

A amostra foi estimada em 302 indivíduos considerando o total de pacientes em hemodiálise no município (n = 1400), margem de erro e nível de significância de 5%, poder de teste de 80% e prevalência de sub-relato para esta população de 50%. Prevendo-se perdas e recusas acrescentou-se 20%, totalizando 362 indivíduos. Deste total, 344 pacientes completaram o estudo. Para a seleção da amostra, realizou-se sorteio aleatório simples, proporcional ao total de pacientes de cada centro de hemodiálise.

Foram incluídos pacientes maiores de 18 anos, clinicamente estáveis, de ambos os sexos, há mais de três meses em hemodiálise, não institucionalizados, com peso estável e sem evidências clínicas de inflamação e/ou infecções nos últimos três meses. Foram definidos como critérios de exclusão: presença de câncer, tuberculose, síndrome da imunodeficiência adquirida, doença pulmonar obstrutiva crônica e cardiovascular grave, diabetes mellitus descompensado, gestação em curso, diálise em cateter venoso, situações que impossibilitassem a avaliação antropométrica ou a investigação da ingestão alimentar (doenças ósseas avançadas, sequelas de acidente vascular cerebral, deficiência física ou amputações).

Dados clínicos (etiologia da doença, comorbidades e tempo de hemodiálise), demográficos (sexo e idade), socioeconômicos (escolaridade, ocupação, situação conjugal, renda), antropométricos (peso, estatura), de ingestão alimentar e sobre sedentarismo foram obtidos de prontuários, por entrevista com o paciente ou durante avaliação nutricional, por quatro nutricionistas, utilizando formulários padronizados e testados em estudo piloto. O sedentarismo foi definido segundo critérios da Organização Panamericana de Saúde.10

O peso e a estatura foram aferidos após sessão dialítica intermediária da semana, segundo Lohman et al.11 O índice de massa corporal (IMC) foi obtido pela razão entre o peso seco e o quadrado da estatura e considerou a classificação da Organização Mundial de Saúde.12 O peso ideal foi obtido a partir do IMC 23 (kg/m2).13 Para o cálculo da ingestão energética por quilograma, foi utilizado o peso ideal. Quando a adequação do peso era inferior a 95% ou superior a 115%, foi utilizado o peso ajustado, calculado conforme recomendação do NKF/KDOQI (2000).14

A ingestão alimentar foi avaliada por seis recordatórios de 24 horas, distribuídos em três dias de diálise e três dias sem o procedimento, obtidos num período de três semanas. Dos seis recordatórios, um correspondeu ao dia de sábado. As quantidades de alimentos relatadas pelos pacientes foram registradas em medidas caseiras, com o auxílio de utensílios como copos, xícaras e colheres e em seguida convertidas em gramas ou mililitros. A ingestão energética foi calculada em programa elaborado para a pesquisa (www.dbcheckout.com.br/nutri), que tem como principal base de dados a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos.15

Considerou-se como sub-relato quando a razão entre a média de ingestão energética e a taxa de metabolismo basal (IE/TMB) foi menor que 1,27. Em indivíduos sedentários, estima-se que o mínimo de energia diária para a manutenção do peso corporal seja 1,27 vezes a TMB,12,16 abaixo do qual a manutenção do peso é biológica e estatisticamente improvável.1,12 Valor superior a 2,39 foi considerado para caracterizar o super-relato da ingestão energética.17 A TMB foi calculada pela equação de Harris Benedict, método que fornece uma previsão aceitável do metabolismo basal de pacientes renais crônicos.18

Os dados foram digitados em dupla entrada, com checagem da consistência pelo programa Epi-info 6.0 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta). As análises foram realizadas em programa estatístico STATA/SE 12.0 (STATA Corporation, Texas). As variáveis categóricas foram expressas em frequências e percentuais e comparadas pela Regra de Sinais de Descartes. As variáveis contínuas tiveram a normalidade verificada pelo teste Kolmogorov Smirnov(p ≥ 0,05), sendo expressas em média ou mediana e desvio padrão e comparadas pelo teste t (p < 0,05) ou Wilcoxon. Na análise bivariada entre dados socioeconômicos, demográficos, clínicos e antropométricos e o sub-relato, utilizou-se o teste de Qui-quadrado de Pearson.

Para análise dos fatores associados ao sub-relato, inicialmente realizou-se regressão de Poisson simples. As variáveis que apresentaram p ≤ 0,20 foram testadas na análise multivariada pela regressão de Poisson com estimativa robusta da variância. Permaneceram no modelo aquelas com valor de p < 0,05.

Resultados

As características dos pacientes avaliados são apresentadas na Tabela 1. Na Tabela 2, verifica-se uma elevada prevalência de sub-relato na amostra avaliada (65,7%), sendo significativamente maior para indivíduos com IMC ≥ 25 kg/m2 (78,4%). Nenhum dos pacientes apresentou super-relato da ingestão energética. A ingestão energética por quilograma de peso e razão IE/TMB, apresentaram-se significativamente menores no grupo com IMC ≥ 25 kg/m2.

Tabela 1 Características de pacientes em hemodiálise. Goiânia-GO, 2012 

Características (n = 344) n (%) ou média ± dp
Idade (anos) 49,33 ± 13,76*
Sexo  
Masculino 204 (59,30)
Sedentarismo 274 (79,65)
Etiologia da DRC**  
Nefroesclerose hipertensiva 130 (37,70)
Glomerulonefrites 67 (19,50)
Nefropatia diabética 54 (15,70)
Indeterminada 26 (7,60)
Outras 67 (19,50)
Comorbidades  
Hipertensão arterial 228 (66,28)
Diabetes 12 (3,49)
Hipertensão arterial + Diabetes 40 (11,63)
Inexistente 51 (14,83)
Outras 13 (3,77)
Tempo de hemodiálise  
< 5 anos 216 (62,79)
≥ 5 anos 128 (37,21)
Índice de Massa Corporal  
< 18,5 kg/m2 30 (8,72)
18,5 - 24,99 kg/m2 203 (59,01)
≥ 25 kg/m2 111 (32,27)
Ingestão diária  
Energia (kcal) 1490,3 (1269,5-1840,1)***
Energia/kg peso ideal ou ajustado (kcal) 25,4 ± 7,4
Carboidrato (%) 54,52 ± 4,66
Proteína (%) 15,47 ± 2,27
Proteína/kg peso ideal ou ajustado (g) 0,97 ± 0,27
Lipídio (%) 30,00 ± 3,60
Taxa de Metabolismo Basal 1368,0 (1242,7-1534,1)***
IE/TMB# 1,13 ± 0,27

*Média ± desvio padrão;

**Doença renal crônica;

***Mediana (percentil 25-75),

#Razão entre ingestão energética e taxa de metabolismo basal.

Tabela 2 Ingestão energética, taxa de metabolismo basal estimada e sub-relato de pacientes em hemodiálise, de acordo com o índice de massa corporal. Goiânia-GO, 2012 

Variável IMC < 25kg/m2 (n = 233) IMC ≥ 25kg/m2 (n = 111)   p **
Média ± dp* ou n(%) Média ± dp* ou n(%)
Sub-relato 139 (59,7) 87 (78,4) 0,001
IE*** 1577,4 ± 420,4 1616,4 ± 549,7 0,468
IE/kg# 27,4 ± 7,0 21,2 ± 6,6 < 0,001
TMB 1338,6 ± 174,1 1531,6 ± 234,5 < 0,001
IE/TMB§ 1,17 ± 0,26 1,05 ± 0,28 < 0,001

*Desvio padrão;

**Teste t independente ou Qui-quadrado de Pearson;

***IE: Ingestão energética em kcal/dia;

#IE/kg: ingestão energética por quilo de peso ideal ou ajustado;

TMB: Taxa de metabolismo basal em kcal/dia;

§IE/TMB: razão entre ingestão de energia e taxa de metabolismo basal.

A ingestão de energia e macronutrientes em dias de diálise, sem diálise, de sub-relatadores e relatadores válidos podem ser consultadas na Tabela 3. No dia sem diálise, observou-se que o percentual de sub-relato é significativamente maior (74,4%) e que para os sub-relatadores foi encontrada maior ingestão proteica.

Tabela 3 Ingestão de energia e macronutrientes em dias de diálise, sem diálise, de sub-relatadores e relatadores válidos. Goiânia-GO, 2012 

Variáveis (n = 344) Dias de diálise Dias sem diálise p *
Sub-relato** (n, %) 211 (61,3) 256 (74,4) < 0,001
Kcal/dia 1576,5(1309,2-1893,8)*** 1439,3(1185,4-17,89,1)*** < 0,001
Carboidrato (%) 54,8 ± 5,4 54,2 ± 5,7 0,067
Proteína (%) 15,42 ± 2,3 15,4 ± 2,6 0,082
Lipídio (%) 29,7 ± 4,1 30,2 ± 4,7 0,490
  Sub-relatadores (n = 226) Relatadores Válidos (n = 118) p #
Kcal/dia 1364,3 ± 283,7 2022,4 ± 283,7 < 0,001
Carboidrato (%) 54,3 ± 4,9 55,0 ± 4,2 0,139
Proteína (%) 15,9 ± 2,4 14,7 ± 1,8 < 0,001
Lipídio (%) 29,9 ± 3,5 30,2 ± 3,7 0,403

*Teste t pareado, Wilcoxon ou regra de Sinais de Descartes;

**IE/TMB < 1,27;

***mediana;

#Teste t independente.

A prevalência de sub-relato foi significativamente maior no sexo feminino (75%), nos indivíduos com até oito anos de estudo (70,18%), com até cinco anos de hemodiálise (69,91%), com IMC ≥ 25 kg/m2 (78,38%) e que faziam até três refeições diárias (76,56%), conforme a Tabela 4.

Tabela 4 Prevalência e razão de prevalência bruta do sub-relato da ingestão energética de pacientes em hemodiálise, segundo características demográficas, socioeconômicas, clínicas e nutricionais. Goiânia-GO, 2012 

Variáveis (n = 344) Prevalência (n/%) RP* bruta (IC**95%) p #
Sexo      
Masculino 121 (59,31) 1 0,002
Feminino 105 (75,00) 1,26 (1,08-1,46)
Idade      
< 60 anos 164 (63,57) 1 0,125
≥ 60 anos 62 (72,09) 1,13 (0,96-1,33)
Escolaridade      
≤ 8 anos 160 (70,18) 1,23 (1,03-1,47) 0,022
> 8 anos 66 (56,90) 1
Renda familiar      
≤ 2 salários mínimos 110 (67,90) 1,06 (0,91-1,24) 0,416
> 2 salários mínimos 116 (63,74) 1
Ocupação      
Trabalha 45 (56,25) 1 0,065
Não trabalha 181 (68,56) 1,21 (0,98-1,50)
Situação conjugal      
Com companheiro 136 (67,00) 1,04 (0,89-1,22) 0,547
Sem companheiro 90 (63,83) 1
Diabetes      
Não 187 (64,26) 1 0,147
Sim 39 (73,58) 0,87 (0,72-1,04)
Tempo de hemodiálise      
≤ 5 anos 151 (69,91) 1,19 (1,01-1,41) 0,042
> 5 anos 75 (58,59) 1
IMC***      
< 25 kg/m2 139 (59,66) 1 0,000
≥ 25 kg/m2 87 (78,38) 1,31 (1,13-1,51)
Refeições/dia      
≤ 3 98 (76,56) 1,29 (1,11-1,49) 0,001
> 3 128 (59,26) 1

*Razão de prevalência;

**Intervalo de confiança;

***Índice de massa corporal;

#Regressão de Poisson simples.

Pertencer ao sexo feminino, ter um IMC ≥ 25 kg/m2, fazer até três refeições diárias e apresentar tempo de hemodiálise de até cinco anos foram fatores associados ao sub-relato na população avaliada (Tabela 5). Outras variáveis foram testadas (idade, percentual de gordura corporal, escolaridade, renda familiar, nível socioeconômico, estado geral, comorbidades, etiologia, estado civil, tabagismo, etilismo, albumina, ureia pré e pós-diálise), porém, não demonstraram associação com o sub-relato nos pacientes estudados.

Tabela 5 Fatores associados ao sub-relato da ingestão energética de pacientes em hemodiálise. Goiânia-go, 2012. 

Variáveis (n = 344) RP* (IC**95%) p ***
Sexo    
Masculino 1 0,001
Feminino 1,27 (1,10-1,46)
Índice de Massa Corporal    
< 25 kg/m2 1 0,000
≥ 25 kg/m2 1,29 (1,12-1,48)
Refeições/dia    
≤ 3 1,31 (1,14-1,51) 0,000
> 3 1
Tempo de hemodiálise    
≤ 5 anos 1,19 (1,01-1,40) 0,030
> 5 anos 1

*Razão de prevalência;

**Intervalo de confiança;

***Regressão de Poisson com estimativa robusta da variância.

Discussão

Ao se analisar o relato de ingestão energética dos pacientes avaliados no presente estudo, percebeu-se um percentual considerável de sub-relato, enquanto que o super-relato não foi identificado. Outros trabalhos com renais crônicos não investigaram a ocorrência de super-relato.3,5,8 Em diferentes populações, o super-relato parece ser bem menos comum1 que o sub-relato, com prevalências entre 1 a 39%,2,19,20 e geralmente é encontrado em indivíduos do sexo feminino,2,9 eutróficos e jovens.2

Alguns estudos identificaram elevado grau de sub-relato em pacientes com doença renal crônica não dialisados e sob diálise peritoneal, com prevalências entre 52,2 a 72,5%.3,5 Apesar de bem explorado em indivíduos saudáveis, com prevalências entre 2 a 85%3, nos pacientes em hemodiálise, o sub-relato é pouco estudado. Apenas uma pesquisa holandesa8 e uma brasileira7investigaram o sub-relato nessa população, encontrando prevalências de 61% e 65%, respectivamente, semelhante a este estudo (65,7%). Esses dados indicam que a prevalência de sub-relato em indivíduos em hemodiálise é elevada, próximo ao encontrado em outras populações.

Outros dados interessantes observados neste estudo foram a maior prevalência de sub-relato no dia sem diálise e maior consumo de proteínas pelos sub-relatadores quando comparados aos relatadores válidos. A diferença de sub-relato em dias com e sem diálise,3,5,7,8 não foi abordada por outros autores. Quanto à ingestão de macronutrientes entre relatadores válidos e sub-relatadores, os achados não são uniformes na literatura. Enquanto alguns trabalhos identificaram uma menor ingestão de carboidratos2,21 e/ou lipídios2,21,22 entre sub-relatadores, outros encontraram apenas maior ingestão proteica2,8,23 neste mesmo grupo.

Para os pacientes avaliados neste estudo, os fatores associados ao sub-relato foram o IMC a partir de 25 kg/m2, sexo feminino, fazer até três refeições diárias e ter até cinco anos de hemodiálise. Para indivíduos saudáveis, vários são os fatores associados ou preditores do sub-relato. Os mais citados são o sexo feminino,19,20,24 maior idade,2 menor nível educacional e de renda,9 excesso de peso pelo IMC3-5,20,23,24 e elevada gordura corporal.7,19,20 No estudo de Bazanelli et al.4 o IMC foi o único determinante do sub-relato em pacientes sob diálise peritoneal. Outros trabalhos realizados com portadores de doença renal crônica não avaliaram preditores do sub-relato.3,5,8 Mafra et al.7 não investigaram determinantes do sub-relato, porém, encontraram uma correlação negativa entre o Índice de Goldberg e IMC e entre a ingestão energética referida e o IMC para pacientes em hemodiálise.

O excesso de peso tem sido indicado como um importante fator associado ao sub-relato.9,20,22,25,26 Evidências apontam que um percentual considerável de indivíduos que sub-relatam apresentam IMC elevado.3,5,7,9,21,24 Em geral, há uma distorção entre a ingestão energética referida por aqueles com excesso de peso, sobretudo os obesos,9,21 e o gasto energético avaliado pelo método da água duplamente marcada.27

A baixa ingestão energética encontrada nos pacientes com doença renal crônica geralmente não está associada com perda de peso a longo prazo, indicando que estes indivíduos consomem mais energia do que o relatado.3,5,8 Estudos de acompanhamento com pacientes estáveis em hemodiálise têm mostrado que, para parte destes, o IMC e o peso são mantidos ou aumentam com o tempo, apesar de uma ingestão energética referida menor que as 30 a 35 kcal/kg/dia recomendadas.8,28,29

Neste estudo, verificou-se uma maior prevalência de sub-relato no grupo com excesso de peso, sendo o IMC a partir de 25 kg/m2 um fator associado ao sub-relato para os indivíduos avaliados. Apesar de não ter ocorrido seguimento dos pacientes avaliados para monitoramento dos parâmetros antropométricos, observou-se que a alta prevalência de sub-relato não condiz com a média da razão IE/TMB, nem com o elevado percentual de pacientes demonstrando excesso de peso pelo IMC. Estes resultados são concordantes com os de Avesani et al.5 e Bazanelli et al.,4 que observaram maior sub-relato, com prevalências de 80 e 83,3%, respectivamente, em pacientes renais crônicos com IMC ≥ 25 kg/m2.

É interessante notar que, em geral, indivíduos com excesso de peso submetem-se a restrições alimentares frequentes no intuito de redução ponderal.9 Dessa forma, acabam se tornando exímios conhecedores dos alimentos com maior teor energético30 e desenvolvendo um sub-relato seletivo para alimentos ricos em carboidratos e lipídios,2 que pode advir do maior acesso às informações sobre alimentação saudável, seja devido às políticas de saúde ou por esclarecimentos divulgados pelos meios de comunicação.2

O sexo feminino é outro fator comumente associado ao sub-relato.3,7,9,22,25,26,28 Novotny et al.19 encontraram uma prevalência de sub-relato de 61% versus 85% para homens e mulheres, enquanto Gomes & Leão2 identificaram 61% versus 79,5%, respectivamente. Entre algumas características do sexo feminino que podem explicar o maior sub-relato em mulheres, podem-se citar a insatisfação com o peso e com a imagem corporal (levando a restrições dietéticas repetidas), culpa,19 medo de uma avaliação negativa9 e o desejo de aprovação social. A insatisfação com o peso, com a imagem corporal, culpa,18 medo de uma avaliação negativa8 e restrições dietéticas repetidas na intenção de redução ponderal23 são características do sexo feminino apontadas como causas de sub-relato em mulheres. Outra explicação é o desejo de ajuste ou aprovação social, definido como a tendência em responder o que é aceito socialmente.20 Assim, no momento de responderem aos diários dietéticos,3as mulheres tendem a relatar um consumo que consideram adequado ao invés de declararem sua real ingestão.

O ato de comer menos vezes é uma característica de sub-relatadores.20 Na população avaliada, o menor número de refeições diárias foi associado ao sub-relato. Supõe-se que indivíduos que fazem um menor número de refeições, consumam maior volume, o que pode dificultar a lembrança das quantidades ingeridas9 e gerar um sub-registro, já que o recordatório de 24 horas depende da memória. A omissão de pequenos lanches20 e bebidas consumidos entre as refeições na forma de beliscos, que não são computados no cálculo do consumo energético diário, também pode contribuir para a subnotificação da ingestão.

O menor tempo de hemodiálise se apresentou como fator associado ao sub-relato nos indivíduos avaliados, o que não foi investigado em outros estudos com pacientes renais crônicos.3,5,7,8 É possível que a presença do nutricionista em cada centro de diálise, que acompanha e indaga rotineiramente sobre a ingestão alimentar, possa ter condicionado o paciente com maior tempo de diálise a estar mais atento à sua ingestão e que isto ainda não tenha ocorrido nos indivíduos com menos tempo de tratamento, resultando em maior sub-relato nestes últimos.

O sub-relato é uma das principais limitações da investigação do consumo alimentar,7,25 levando à imprecisão da ingestão dietética referida. Em pacientes em hemodiálise, a avaliação precisa do consumo de energia é crucial para a avaliação do estado clínico, intervenções nutricionais e os resultados de saúde.7,21 Quando não detectado, pode interferir negativamente na nutrição e acompanhamento do paciente em hemodiálise. Assim, o nutricionista que acompanha esse público deve analisar criticamente1 os dados de ingestão obtidos. Este cuidado será útil para evitar condutas inadequadas no plano de intervenção nutricional,21 como, por exemplo, a oferta de mais calorias, que, ao longo do tempo, pode contribuir para o surgimento do excesso de peso ou acúmulo de gordura corporal sem necessidade, ou, ainda, o estímulo ao consumo de determinados alimentos, para corrigir certo nutriente que "se julga estar em déficit", podendo gerar desequilíbrio dos níveis séricos de fósforo, potássio, glicemia, entre outros. A utilização da razão IE/TMB pode ser uma ferramenta útil, simples e viável para detecção do sub-relato na prática clínica, o que auxiliaria este profissional a interpretar de maneira mais segura e crítica os dados alimentares de pacientes em hemodiálise obtidos pelos métodos tradicionais de avaliação dietética. A remoção dos dados de sub-relatadores permite uma avaliação mais precisa da ingestão alimentar24 do grupo avaliado e confere maior segurança no aconselhamento nutricional realizado.7

O fato da TMB dos pacientes avaliados não ter sido medida e sim estimada por uma equação preditora do gasto energético foi uma limitação deste estudo. Apesar de ser mais indicada para cálculo da TMB em indivíduos com doença renal crônica, a equação de Harris Benedict pode superestimar esse cálculo em cerca de 5,8%,18 o que resultaria em uma maior prevalência de sub-relato na população avaliada. No entanto, observa-se que a prevalência de sub-relato encontrada não foi discrepante de outros estudos4,5 que utilizam a calorimetria indireta para determinar o gasto energético e classificar os níveis de autorrelato da ingestão energética.

Outro ponto a ser considerado é a utilização do recordatório de 24 horas para a obtenção da ingestão dietética. Uma vez que métodos mais precisos, como a pesagem direta, não são viáveis para estudos com amostras maiores, em geral, o recordatório é um dos métodos de escolha por ser prático, de fácil execução, barato e que pode ser aplicado em indivíduos com diferentes níveis de instrução.21 Apesar das vantagens, este método apresenta limitações como a dependência da memória e sua aplicação em apenas um dia pode não representar a ingestão habitual.21 Neste estudo, procurou-se compensar estas desvantagens utilizando-se medidas caseiras, para auxiliar na identificação mais adequada das porções consumidas.9 Além desses cuidados, foram aplicados seis recordatórios, contemplando os dias de diálise e o período interdialítico, tornando-se mais representativo da ingestão alimentar habitual para os relatadores válidos.

Esse estudo teve como diferencial a avaliação do efeito de várias variáveis associadas do sub-relato em uma amostra representativa da população em hemodiálise, bem maior quando comparada a amostras de outros estudos que avaliaram o sub-relato em indivíduos com doença renal crônica.3,5,7,8 A utilização de análise multivariada permitiu identificar as variáveis que permaneceram associadas ao sub-relato, considerando a interdependência entre os fatores avaliados.

Conclusão

A população avaliada demonstrou elevada prevalência de sub-relato da ingestão energética, sobretudo entre indivíduos com excesso de peso pelo IMC e nos dias sem diálise. Os sub-relatadores apresentaram maior consumo proteico que os relatadores válidos e não foi detectado o super-relato da ingestão energética. Pertencer ao sexo feminino, apresentar excesso de peso, fazer um menor número de refeições diárias e ter menos tempo de hemodiálise foram fatores associados ao sub-relato.

Os achados desse estudo alertam para o fato de que a análise dos dados alimentares, sem levar em consideração o sub-relato, pode resultar em uma falsa interpretação da ingestão e até mesmo a inadequações na condução do tratamento dietético dos pacientes avaliados. Assim, sugere-se que a ingestão alimentar de pacientes do sexo feminino, com excesso de peso, com menor número de refeições diárias e menos tempo de hemodiálise seja investigada e interpretada com mais cautela pelo profissional nutricionista dos centros de diálise.

REFERÊNCIAS

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