versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.34 no.9 Rio de Janeiro 2018 Epub 06-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00102917
La baja oferta de médicos en áreas remotas y desfavorecidas es un obstáculo para el acceso universal y garantía de la calidad del cuidado en salud. Mediante el Programa Más Médicos (PMM), hasta el año de 2015, 18 mil profesionales se incorporaron al Sistema Único de Salud (SUS) para su actuación en la atención básica, siendo un 79% cubanos. Este artículo analizó la integralidad de las prácticas de los médicos cubanos en el PMM mediante el estudio cualitativo, realizado en el municipio de Río de Janeiro, Brasil, en base a entrevistas con médicos cubanos (24) y grupo focal con supervisoras del PMM (4). La integralidad se analizó en dos dimensiones: enfoque biopsicosocial del cuidado, con orientación comunitaria; y un elenco de acciones de promoción, prevención y asistencia. La actuación de los médicos cubanos presenta elementos coincidentes con la integralidad de las prácticas en atención primaria, con prestación de un abanico amplio de acciones y servicios, coherente con la complejidad de los problemas de salud y pluralidad de los escenarios. Los profesionales poseen una marcada capacidad de inserción comunitaria, enfoque preventivo, planificación de acciones y buena relación interpersonal en el equipo, identificándose posturas y técnicas de acogida, vínculo y responsabilización. Se señalaron desafíos respecto a la promoción de prácticas participativas con las colectividades, ampliación de la autonomía de usuarios en las decisiones clínicas, gestión de problemas de orden psíquico, sistematización de herramientas de enfoque y realización de procedimientos invasivos. Se apuntan fuertes indicios de que el PMM, además del acceso a consultas médicas, oferta cuidados integrales en salud y contribuye al fortalecimiento de la atención básica en el país.
Palavras-clave: Integralidad en Salud; Conocimientos, Actitudes y Práctica en Salud; Atención Primaria de Salud; Recursos Humanos
A insuficiência de trabalhadores é um dos nós críticos para o acesso universal à saúde 1. Fatores como a transição demográfica e epidemiológica e a implementação de novos modelos assistenciais interferem na necessidade de profissionais, e as regiões menos desenvolvidas e periféricas são, em geral, as mais desfavorecidas no que se refere à disponibilidade e qualidade da força de trabalho em saúde 2.
Com efeito, além de representar um problema para a equidade, a concentração da força de trabalho resulta em ineficiência para os sistemas de saúde 3. No que concerne à distribuição mundial de médicos, ainda que tenha ocorrido aumento no número total, observa-se um padrão de concentração em grandes capitais e vazios nas áreas rurais 4.
Regular a força de trabalho em saúde tem representado um desafio global. O movimento migratório de médicos, segundo Rovere 5, costuma seguir uma lógica de decisão “orientada pelo mercado” em oposição a uma lógica “orientada pelas políticas” ou necessidades. Nesse sentido, é necessário reconhecer que os interesses da categoria médica não são dispersos, com movimentos para manter a suboferta, por meio da regulação dos recursos humanos e pressão por sistemas de saúde baseados no exercício liberal da profissão.
O Brasil apresenta problemas similares que antecedem a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), com histórico de políticas e planejamento da força de trabalho em saúde pouco eficazes e submetidos aos interesses privados 6.
A implementação do SUS, com suas diretrizes de universalidade, integralidade e descentralização, exigiu maior oferta de recursos humanos em saúde, em especial na atenção primária à saúde, na qual são identificados importantes desafios para a fixação e a qualificação de médicos para a adequada atuação das equipes de saúde da família (EqSF) 7. Ademais, a baixa regulação estatal do mercado de trabalho em saúde, mormente na medicina, que detém forte poder de autorregulação, representa mais um fator que dificulta a atração e fixação de médicos em áreas prioritárias do SUS 8.
O país apresenta disparidades acentuadas na distribuição de médicos, com concentrações em centros urbanos, em detrimento de regiões menos desenvolvidas 9. Em 2013, em contexto de fortes tensões políticas e sociais, foi instituído o Programa Mais Médicos (PMM) 10, que encontrou, nesse cenário, uma “janela de oportunidades” para se estabelecer 11. O PMM foi estruturado a partir de três eixos estratégicos, envolvendo mudanças na formação médica; melhoria na infraestrutura das unidades básicas de saúde (UBS) e provimento emergencial de médicos 10.
Decorridos mais de três anos da instituição do PMM, com recrutamento de mais de 18 mil médicos entre 2013 e 2016, verifica-se redução da escassez de médicos na atenção básica, sobretudo em áreas mais vulneráveis 12. O programa se capilarizou por quase todo o território nacional, com peso predominante de médicos cubanos, que, até 2014, representavam 79% dos participantes 13.
A implementação do PMM foi marcada pela forte resistência da corporação médica. A polêmica corporativa sobre a participação de médicos estrangeiros, especialmente os cubanos, envolveu, além de aspectos relacionados ao mercado de trabalho e formação, questionamentos quanto à abrangência e aos escopos das práticas desses profissionais 9. Questionava-se a qualidade da formação médica cubana para cumprir com a complexidade das ações exigidas para atuação na atenção básica no SUS.
Este artigo tem por objetivo analisar a integralidade das práticas dos médicos cubanos no contexto do PMM. A integralidade se constituiu como diretriz do SUS 14. É determinada tanto no nível do trabalho em saúde quanto no âmbito das políticas capazes de intervir nos determinantes do processo saúde-doença-cuidado para garantia de condições satisfatórias de bem-estar 14. A integralidade das práticas na atenção primária à saúde envolve uma abordagem biopsicossocial no cuidado a indivíduos e famílias, ações sobre o território e escopo ampliado com resolutividade 14,15,16. Este estudo busca analisar se, para além da diminuição da escassez e de iniquidades na distribuição de médicos no Brasil, a atuação dos profissionais do PMM corresponde a uma prática integral.
A integralidade das práticas dos médicos cubanos no PMM foi analisada em duas dimensões. A dimensão da abordagem biopsicossocial do cuidado, com orientação comunitária, foi composta por elementos que ampliam os objetivos do cuidado na atençaão primária à saúde para além dos biomédicos, envolvendo aspectos psicológicos e sociais, voltando-se, ainda, para a atuação na comunidade 14,15. Possui componentes que tratam do olhar sobre o território 16, da centralidade do sujeito e sua autonomia 14,16,17, da intersetorialidade 15, da valorização dos determinantes sociais 15 e da participação ativa das coletividades na construção de projetos de saúde 14,16,18.
A dimensão do elenco de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde abrange aspectos do rol de atividades dos médicos que apontam para um cuidado abrangente e resolutivo como: carteira ampla de serviços para promoção, prevenção e assistência 19, atenção à demanda espontânea e programada 14,15, integração com outros serviços de saúde, interdisciplinaridade 16,19, planejamento das intervenções 15 e utilização de protocolos assistenciais 14,16,17. O Quadro 1 apresenta a matriz construída pelos autores, a partir de revisão de literatura 14,15,16,17,18,19, utilizada para análise da integralidade das práticas com suas dimensões, componentes e categorias.
Quadro 1 Matriz de análise integralidade das práticas.
Dimensão: abordagem biopsicossocial do cuidado, com orientação comunitária | |
---|---|
Componentes | Categorias de análise |
Consideração da dinâmica do espaço territorial | Identificação da área geográfica adscrita |
Conhecimento do perfil socioepidemiológico da área adscrita | |
Intervenção sobre riscos sanitários, ambientais e sociais do território | |
Centralidade do sujeito e sua autonomia | Conhecimento e uso da abordagem centrada na pessoa |
Exploração de sentimentos e angústias relacionadas às queixas | |
Pactuação da conduta com o usuário | |
Intersetorialidade | Articulação com serviços de outros setores |
Valorização dos determinantes sociais | Acompanhamento de todos os integrantes do Programa Bolsa Família do território |
Atuação diferenciada em casos de vulnerabilidade social | |
Participação ativa das coletividades na construção de projetos de saúde | Diagnóstico comunitário com lideranças locais |
Realização de prestação de contas (“accountability”) à comunidade | |
Participação em conselho local de saúde | |
Dimensão: elenco ampliado e integrado de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde | |
Componentes | Categorias de análise |
Carteira ampla de serviços para promoção, prevenção e assistência em saúde | Aconselhamento individual sobre alimentação saudável, cessação do tabagismo e redução de danos em dependentes de álcool e drogas |
Realização de cantoplastia, sutura, remoção de cerúmen e inserção de dispositivo intrauterino | |
Atenção à demanda espontânea e programada | Definição de vagas na agenda para marcação de consultas no dia |
Acompanhamento de gestantes, crianças, diabéticos, hipertensos, tuberculosos e usuários com transtornos mentais | |
Integração com outros serviços de saúde | Troca de informações com profissionais da atenção secundária e/ou terciária |
Interdisciplinari dade | Relação com enfermeiro(a) da EqSF |
Relação com ACS da EqSF | |
Relação com NASF | |
Planejamento das intervenções | Análise em equipe de indicadores de saúde da população |
Desenvolvimento de atividades planejadas a partir dos indicadores de saúde | |
Utilização de protocolos assistenciais | Conhecimento das linhas de cuidado definidas para a rede municipal de saúde |
Uso de diretrizes clínicas nacionais e internacionais |
ACS: agentes comunitários de saúde; EqSF: equipes de saúde da família; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família.
Fonte: elaboração própria a partir de Mattos 14, Almeida et al. 15, Silva Junior et al. 16, Silva Junior & Mascarenhas 17, Pinheiro & Silva Junior 18 e Starfield 19.
Foi realizado estudo qualitativo no Município do Rio de Janeiro, que recebeu 165 médicos do PMM, sendo 148 cubanos, no período de outubro de 2013 a setembro de 2015 (Departamento de Informática do SUS. Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde. http://cnes.datasus.gov.br, acessado em 20/Out/2015). Foi eleita a Área de Planejamento territorial (AP 3.1) com o maior número de EqSF e UBS com médicos do PMM. Em junho de 2016, atuavam trinta médicos do PMM em 16 UBS nesse território. A produção dos dados no campo foi realizada a partir de entrevistas com médicos do PMM e grupo focal com as supervisoras do território selecionado, nos meses de junho a agosto de 2016. Foram visitadas 14 UBS, e, entrevistados 24 médicos (M), cujo perfil está descrito na Tabela 1. Houve seis recusas à participação na pesquisa.
Tabela 1 Perfil dos médicos entrevistados do Programa Mais Médicos (PMM) da Área de Planejamento territorial (AP 3.1) do Município do Rio de Janeiro, Brasil, 2016.
Características | Número de médicos |
---|---|
Nacionalidade | |
Cubana | 23 |
Brasileira | 1 * |
Sexo | |
Mulheres | 14 |
Homens | 10 |
Idade (anos) | |
26-30 | 3 |
31-39 | 6 |
40-49 | 11 |
50-54 | 4 |
Graduação | |
Cuba | 24 |
Ano de formação | |
1986-1995 | 10 |
1996-2005 | 7 |
2006-2015 | 7 |
Formação complementar | |
Medicina Geral e Integral/Medicina de Família e Comunidade | 23 |
Outras especializações | 12 |
Mestrado | 7 |
Número de missões estrangeiras prévias | |
0 | 1 |
1 | 18 |
2 | 4 |
3 | 1 |
Tempo de missões prévias (anos) | |
0 | 1 |
1-2 | 6 |
3-4 | 7 |
6-11 | 10 |
Tempo no PMM (meses) | |
0-6 | 3 |
28 | 8 |
32 | 13 |
Fonte: elaboração própria.
* A única médica brasileira que compôs o estudo realizou a graduação em Cuba.
As ações dos supervisores do PMM, por meio de acompanhamento técnico-pedagógico, buscam qualificar a prática médica 10, influenciando as práticas dos participantes. A perspectiva dos supervisores possibilitou identificar mudanças das práticas ao longo do tempo, para além de produzir contraponto ou conferir validade às percepções dos médicos. Do total de seis supervisoras (S) do território selecionado, quatro participaram do grupo focal. Essa técnica permite extrair diferentes percepções de grupos sociais que sejam atingidos coletivamente por situações específicas, complementar abordagens individuais, triangular olhares e obter mais informações sobre a realidade 20.
O roteiro para entrevistas foi formulado com base na matriz de análise (Quadro 1), que também guiou a apresentação dos resultados. O grupo focal contou com moderador e relator e foi guiado por perguntas disparadoras.
Foi realizada análise temática das entrevistas e do grupo focal composta por fases 20: ordenação do material conforme as categorias analíticas; leitura horizontal e exaustiva para categorização empírica; leitura transversal a partir das categorias de análise; esclarecimento da lógica interna do contexto de realização da prática médica, conforme a integralidade.
O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, sob os pareceres 1.526.773 e 1.558.250.
A dinâmica territorial é considerada nas práticas dos médicos cubanos no PMM. Os profissionais identificavam os riscos da população adscrita por meio da rotina de planejamento da equipe, como na análise de indicadores de saúde e na avaliação de prioridades para marcação de consultas e, principalmente, pelo papel de vigilância dos agentes comunitários de saúde (ACS), que portavam informações mais detalhadas da área adscrita. Todavia, poucos médicos (3) lançaram mão de localizar, em um mapa, os riscos ambientais, biológicos e sociais, uma vez que o excesso de condições de risco e sua distribuição uniforme pelo território dificultavam o desenho em um mapa.
Os médicos demonstravam amplo conhecimento sobre o perfil demográfico e epidemiológico da população adscrita. Alguns informavam com precisão o número de famílias e grupos acompanhados, enfatizando o excesso de população. A partir desse excedente, a forte pressão assistencial sobre a equipe era adensada pelo contexto de extrema vulnerabilidade presente no território e pela gravidade das patologias, em função das dificuldades de acesso à atenção médica antes da chegada do PMM (Quadro 2, M17).
Quadro 2 Prática dos médicos cubanos e avaliação da supervisão sobre a abordagem biopsicossocial do cuidado, com orientação comunitária no Programa Mais Médicos (PMM). Município do Rio de Janeiro, Brasil, 2016.
Componentes | Trechos de falas ilustrativas |
---|---|
Consideração da dinâmica do espaço territorial | “Tenho atualmente cadastradas quatro mil seiscentos e trinta e poucas [pessoas]. Agora, fora do cadastro, deve ter umas mil a mais, que não tem CPF, não tem identidade (...). Sumamente pobre, porque, por exemplo, na parte que eu falei, dentro da favela tem uma favelinha, que tenho cadastrados uns quinhentos. Mas fora os que não tenho cadastrados, que atendo também, devo ter uns mil e cem, mais ou menos, muitas pessoas” (M17) |
“Assim, tenho visto muitas doenças que, realmente, nunca tinha visto. Tinha visto só de livro. (...) Por exemplo, tuberculose, eu tive só um caso de tuberculose na minha vida. Quase dez anos de formada e eu nunca tinha visto um tuberculoso. Vi só um. E aqui, eu estou atendendo agora catorze. Só de uma vez, entendeu?” (M16) | |
“A gente faz, pelo menos eu faço, sexta-feira, toda sexta-feira de manhã, faço muitos grupos. Vou dentro da comunidade mesmo. (…) A gente vai lá dentro, graças a Deus, eles me conhecem, trabalhei lá três anos praticamente. E é ‘doutora, o que foi? Tudo bem? Ah, doutora!’. Entendeu? E a gente tem uma parceria. ‘Vamos aqui, a gente vai fazer a ‘provinha’ para todo mundo. A gente vai fazer...’. A ‘provinha’ da escala. A gente vai lá, toma a amostra, a gente faz teste rápido [de sífilis e HIV] lá dentro também. A gente faz muita palestra, reparte muita camisinha” (M6) | |
“Todos os meus supervisionados fazem grupo. (…) O paciente recebeu o médico em casa, abriu as portas da casa dele, para ele poder fazer um grupo dentro da comunidade. Dentro da casa do paciente. Todo mundo conhecia” (S1) | |
Centralidade do sujeito e sua autonomia | "Cada pessoa tem um olhar da vida, da doença, da saúde. Assim é como eu avalio os pacientes. E sempre olhando que o paciente é um ser biopsicossocial. O paciente não é um coração, o paciente não é um fígado, o paciente não é um dedo, não é uma mão. O paciente aqui é olhado de forma, vamos falar, universal” (M4) |
“Aqui, o paciente chega com dor ou chega carente de afeto, de carinho. Quando chegam aqui, se sentam aí. Eu não tenho o costume disso. Eu faço assim com o paciente [arrasta a cadeira para o lado da mesa]. Eu quero falar com eles, eu me coloco aqui [ao lado do paciente]” (M12) | |
“Se no exercício a aplicação do método [clínico centrado na pessoa] funciona - você percebe na relação que eles têm com o paciente, no vínculo que criam, no exercício de descobrir qual a vivência que o paciente tem da doença em si etc. - eu não sei se a gente precisa ser tão acadêmico assim” (S2) | |
“Porque o paciente pode saber da doença, mas não sabe nada de medicina, entendeu? Então você orienta, por exemplo, tratamentos, orienta exames. E conversa com ele a importância de fazer, o que vai fazer em cada um. E, às vezes, ele dá uma sugestão, e você pode ou não apoiar essa sugestão que ele vai te dar” (M3) | |
Intersetorialidade | “A gente faz ações programadas, planejadas, nessa escola com essas crianças. A gente fazia ações aqui no estaleiro. Mas principalmente o PSE [Programa Saúde na Escola]” (M1) |
“Na associação de moradores, (...) eles emprestam o local para fazer qualquer atividade aqui da unidade [de saúde], o lugar é bem grande e ajudam a Clínica da Família para fazer qualquer atividade” (M7) | |
“CRAS? Eu não conheço pessoalmente, mas sei da referência. E, assim, a gente tem apoio do NASF, não sei se você sabe, é o Núcleo de Apoio, e eles têm uma assistente social. Então, quando a gente tem algum problema desse tipo, geralmente, a gente se apoia neles porque, a mesma coisa, eu não consigo fazer esse tipo de articulação porque fica muito complicado para mim, sair do meu atendimento para ir para lá” (M16) | |
“Quando eu percebo que a intersetorialidade funciona um pouco mais ou existe é porque o gerente é mais engajado ou mais proativo neste sentido. E assim acaba conseguindo fazer um pouco mais essa articulação no território. Ou com agente comunitário, mas aí os agentes comunitários têm mais a ver com a associação de moradores. Com outros setores assim, aí é mais com os gerentes mesmos” (S3) | |
Valorização dos determinantes sociais | “Os meus [supervisionados] eu observo que eles conseguem priorizar bem. Organizar bem esse cuidado da população vulnerável. A maioria deles trabalha com população vulnerável. Então, quando eu vou fazer supervisão e converso e eles me apontam: ah, eu vi um caso assim, eu estou fazendo VD [visita domiciliar] toda semana ou a enfermeira vai primeiro e eu vou na mesma semana” (S1) |
“Quando moro numa comunidade que não tem espaços de lazer, não tem opções de lazer, só tem tráfico, só tem violência, só tem tiro, só tem a polícia que entra, condições de moradia inadequadas, você pode não estar doente, mas, em algum momento, vai chegar essa doença. (…) O principal problema para a gente conseguir mudanças é conseguir juntar, unir essa vontade da saúde, esse conhecimento que têm os profissionais da saúde, para conseguir mudança com esse investimento externo, social” (M5) | |
Participação ativa das coletividades na construção de projetos de saúde | “Consultamos a associação de moradores e líderes comunitários para conhecer a história dessa comunidade. Porque eu, por exemplo, no dia que cheguei aqui, eu não conhecia nada. (…) Em cada microárea, temos que identificar quem são os líderes de cada microárea, para facilitar o trabalho nosso. Eles apontam principalmente o acúmulo de lixo, às vezes, as condições da rua, que tem muitos buracos” (M8) |
“A gente trabalha em conjunto. (...) e trabalha com líderes formais e não formais. Com o chefe da comunidade, a gente trata de falar [até] mesmo com o chefe do tráfico” (M6) | |
“A análise da situação de saúde tem várias variáveis, tem múltiplas etapas que têm que ser complementadas. Então, relativo à saúde se faz levantamento, se utiliza os prontuários (…). Mas não vamos falar que tudo está feito, que tudo não se pode fazer. Essa discussão com a comunidade toda, não podemos chegar até lá agora. Não chegamos porque é muito difícil para reunir a comunidade toda” (M14) |
CRAS: Centro de Referência de Assistência Social; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família.
Fonte: elaboração própria.
Todos os profissionais do PMM (24) identificaram flagrantes desigualdades sociais do território, explicitadas pelas condições de higiene das moradias, pobreza, desemprego e informalidade do trabalho, identificados como determinantes sociais importantes. A violência, muito associada ao tráfico de drogas, foi um ponto sensível nas falas dos médicos.
De modo geral, o perfil epidemiológico reconhecido pelos médicos se relacionava à prevalência das doenças crônicas na população e às condições de vida do território. O índice elevado de doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo a sífilis, era associado, junto com a tuberculose, à grande vulnerabilidade social. A alta incidência de tuberculose teve forte destaque nas entrevistas, por ser pouco frequente em Cuba, representando uma novidade o manejo na atenção primária à saúde (Quadro 2, M16).
Todos os entrevistados (24) relataram uma variedade de ações para enfrentamento dos riscos identificados. Agiam caso a caso, por meio de consultas e visitas domiciliares, ou por meio de propostas mais abrangentes para toda a população, principalmente por meio de grupos de educação em saúde, sugerindo uma abordagem sobre os riscos populacionais que fogem do padrão de atuação médica mais assistencial e individual (Quadro 2, M6 e S1). Para todos os tipos de ação, evocaram a articulação com profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), bem como parcerias de líderes comunitários.
Todos referiram utilizar posturas e técnicas para abordar o sujeito como centro do cuidado. A maior parte dos médicos (18) citou a necessidade de compreensão do contexto familiar e social do usuário. Outra ferramenta importante da abordagem centrada na pessoa foi a valorização da escuta. Alguns médicos (8) apontaram a exploração de aspectos subjetivos, como o conhecimento sobre a enfermidade, o modo como as pessoas se percebem doentes, os sentimentos, expectativas e reações aos problemas de saúde.
Pontuaram também as manifestações singulares das doenças em cada pessoa e os dados do exame clínico que levavam a pensar em fatores de ordem pessoal para entender o quadro do paciente (Quadro 2, M4). Houve também respostas (8) de rejeição à medicalização e ao modelo queixa-conduta na prática médica, sinalizando para formas de humanização no atendimento como contraponto. Outras falas (7) ressaltaram o vínculo e o acolhimento (Quadro 2, M12). O vínculo foi apontado na relação de confiança entre médico e paciente e na ligação proporcionada pelo acompanhamento longitudinal, que promovia a assimilação das idiossincrasias e vicissitudes.
Outra estratégia para a abordagem centrada na pessoa foi o cuidado articulado a outros profissionais da EqSF e, principalmente, do NASF. Alguns entrevistados (3) registraram a dificuldade de se debruçar mais amplamente sobre a pessoa em função da sobrecarga de atendimento.
Por sua vez, as supervisoras expressaram ambiguidades sobre a aplicação da abordagem centrada na pessoa. Com base na sua experiência de formação específica no método clínico centrado na pessoa, as supervisoras argumentaram que os médicos cubanos não possuíam formação para a exploração dos passos desse método e que, assim, realizavam-no de forma intuitiva, embora o curso de especialização em Saúde da Família tenha contribuído com bases conceituais. Consideraram que os médicos se preocupavam com o cuidado, traziam um conhecimento amplo sobre os usuários atendidos, buscavam criar vínculo e entender a vivência que o paciente tem da doença (Quadro 2, S2). Argumentaram, contudo, que, na falta de formação específica, haveria dificuldades de manejo do método centrado na pessoa em um tempo curto de consultas numerosas. Duas supervisoras, porém, apontaram que a prática mais intuitiva não prejudicava a centralidade da pessoa na abordagem dos médicos.
Um dos passos que caracteriza a centralidade da pessoa e sua autonomia é a definição da conduta em acordo com o usuário. A grande maioria (22) dos médicos avaliou que sua conduta era cuidadosamente explicada ao paciente, de modo que pudesse compreender a decisão clínica, como forma de participação e ponto de partida para se chegar a um consenso e aumentar a adesão ao tratamento. Contudo, foram identificadas contradições nas falas, com ênfase na necessidade de cumprimento das prescrições e predominância do saber científico como guia do processo terapêutico e diagnóstico (Quadro 2, M3).
Dos médicos que citaram articulação com outros setores (19), todos mencionaram ações com escolas e creches, que, em geral, ocorriam no âmbito do Programa Saúde na Escola (Quadro 2, M1). Alguns mencionaram atividades com igrejas, espaços esportivos, associação de moradores (Quadro 2, M7). O trabalho em conjunto com a assistência social do NASF foi referido por quatro médicos, realizado em casos pontuais (Quadro 2, M16). Seis estabeleceram contato com o Centro de Referência de Assistência Social.
A pressão assistencial foi sinalizada como limitante também nesse aspecto e pontuaram-se dificuldades pela indisponibilidade de equipamentos sociais no território. As supervisoras compreendiam que a intersetorialidade é um desafio para qualquer médico na prática da atenção primária à saúde. Quando ocorriam, as ações eram articuladas principalmente pela gerência das UBS e iniciativas dos ACS (Quadro 2, S3).
Os determinantes sociais foram valorizados pelos médicos do PMM. Todos os médicos (24) afirmaram conhecer o Programa Bolsa Família e participavam do acompanhamento de usuários cadastrados. Alguns (3) referiram limitações para ampliar a participação no acompanhamento dos usuários do Bolsa Família, citando o estigma associado ao benefício social e, mais uma vez, a sobrecarga assistencial.
Informaram atuação diferenciada para casos de vulnerabilidade social. A conduta mais referida foi o envolvimento da equipe, do NASF e/ou da assistência social. Uma parcela também realizava visitas domiciliares e consultas mais frequentemente para os casos mais vulneráveis, observado também no grupo focal (Quadro 2, S1).
Outra forma de atuação era manter a equipe disponível para acolher o paciente, tanto em suas demandas imediatas quanto nos aspectos preventivos. Os médicos mencionaram a prioridade para marcação, a coordenação do cuidado mais sistemática, o apoio no papel de vigilância do ACS e o auxílio material (doação de comida, fraldas, produtos de limpeza etc.), em casos de maior vulnerabilidade. Alguns (3) indicaram que, para além da sua própria atuação, era necessário aprimorar os investimentos governamentais (Quadro 2, M5).
No grupo focal, foi enfatizado que os médicos cubanos demonstravam maior sensibilidade para questões de risco social, todavia apresentariam fragilidades na diferenciação de alguns casos de vulnerabilidade social, como, por exemplo, uma conduta mais sistematizada para a violência doméstica.
A maioria dos médicos (22) participou da construção do diagnóstico comunitário e considerava as demandas e o apoio das lideranças locais para pensar os problemas e possibilidades do território (Quadro 2, M8). Os médicos trabalhavam em conjunto com líderes formais e informais (Quadro 2, M6). Contudo, o diagnóstico comunitário se baseava no estudo do prontuário eletrônico, com foco maior sobre as doenças (Quadro 2, M14).
Alguns profissionais citaram o seminário anual de prestação de contas (“accountability”), exigido pela gestão municipal, como o momento de realização do diagnóstico comunitário. Além dos conselhos de saúde, presentes em algumas UBS, eram promovidas, periodicamente, reuniões com os usuários para esclarecimentos e prestação de contas. A maioria dos médicos (21) não participava dessas reuniões ou dos conselhos de saúde.
Entre as práticas de promoção à saúde e prevenção de agravos em âmbito individual, como o aconselhamento sobre hábitos de vida, todos os entrevistados relataram orientar os pacientes sobre alimentação saudável e abandono do tabagismo e indicar ações para a redução de danos em dependentes de álcool e outras drogas, com maiores dificuldades nesses casos (Quadro 3, M20). Os preconceitos e estigmas sociais dificultavam a abordagem e identificação de pessoas que faziam uso abusivo de álcool e, sobretudo, usuários de drogas.
Quadro 3 Prática dos médicos cubanos e avaliação da supervisão sobre o elenco de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde no Programa Mais Médicos (PMM). Município do Rio de Janeiro, Brasil, 2016.
Componentes | Trechos de falas ilustrativas |
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Carteira ampla de serviços | “Em caso de álcool e drogas, é muito mais difícil (...). Falo: ‘você consome?’. ‘Não, uma ou outra cervejinha’. Entendeu? Não posso, não posso falar, por exemplo: ‘você consome drogas?’. Porque são palavras, coisas... o consumo de drogas é algo muito preconceituoso” (M20) |
“Ah, sim, faço cantoplastia. E DIU [dispositivo intrauterino], coloco também. Sutura igual. (...) Lavagem de ouvido? Faço aqui. É frequente, toda semana” (M18) | |
"Eu tenho a impressão de que alguns meus fazem [procedimentos] e outros não fazem. Existe uma diferença na capacitação e na urgência da gerência [da UBS]. Às vezes, tem gerência que puxa mesmo, que pede - olha, ele não está botando DIU [dispositivo intrauterino]” (S4) | |
Atenção à demanda espontânea e programada | "Acredito que, para qualquer médico, qualquer profissional de saúde, hoje, é um problema a agenda. Porque a agenda é uma, e a demanda é outra. (...) A população marcava, mas a agenda ficava lotada, sem muito espaço para demanda livre. Como estamos fazendo agora? Outro tipo de experiência que eu conversei com outro colega. Eu deixo a agenda aberta” (M5) |
“Se a criança está geralmente saudável, a volta é com o enfermeiro. Isso é um protocolo. Mas se tem alguma coisa que, por exemplo, não está ganhando peso, não desenvolveu bem, precisa de um acompanhamento, eu sou quem marca a volta para mim [antes do tempo do protocolo]. A mesma coisa com as grávidas” (M19) | |
“Outro dia uma enfermeira de outra equipe falou: ‘eu não sei como vocês conseguem que as crianças venham à puericultura’. Eu consegui, e as crianças vêm. E vêm todas as minhas crianças. Nascem, e eu, antes de quinze dias, faço a primeira consulta delas” (M21) | |
Integração com outros serviços de saúde | “Para mim, deveria ter uma inter-relação entre a atenção básica e a atenção secundária um pouquinho mais. Porque você não consegue, às vezes, muita coisa. Então, não é nem culpa da atenção primária nem da atenção secundária (...). Porque tem pacientes que não são bem tratados na atenção primária e vão para a atenção secundária por algum, por um tratamento inadequado na atenção secundária. E tem pacientes que não são para serem tratados na atenção primária e que precisam da atenção secundária” (M3) |
"Eu fiquei assim, a gente faz [contato com outro serviço] com medo, não é? Como existe aquele preconceito [da corporação médica], no início eu tinha medo” (M21) | |
Interdisciplinaridade | “Nós saímos de lá [Cuba] para cá, achávamos que íamos chegar para ensinar medicina comunitária. Temos aprendido muita coisa que não conhecíamos. (...) Só que aqui, eu cheguei a precisar mais mesmo das ideias, da comunicação, das sugestões de minha parceira [enfermeira] que lá” (M8) |
“É muita participação ativa deles [do NASF]. Quanto à fisioterapeuta, à psicóloga, legal tudo, todo o mundo muito legal. Até que eles chegaram aqui, a gente, pelo menos, ficou menos cansado. Era muita coisa para cima da gente, para resolver, inclusive. Em psicologia, a gente sozinho não resolve” (M17) | |
Planejamento das intervenções | “Eu estou com ele [o relatório de indicadores de desempenho] impresso na mão, porque eu faço todo mês. Está comigo na minha mão. Está do outro lado, mas eu puxo para reunião de equipe. Ok, com referência a essa quantidade de visitas domiciliares que tem que fazer (...). Então, a gente vai chamando cada um [cada ACS]. Você tem cinco [gestantes], se não trabalhar toda semana... entendeu? Hipertenso tem que ser avaliado no trimestre, no mês, tanto. Porque se está faltando este aqui, vai procurar, entendeu?” (M21) |
Utilização de protocolos assistenciais | “Mas o Brasil tem, assim, eu acho, uma academia também americana. (...) Aqui tem muito fluxograma, você só aprende o fluxograma e trabalha! Lá [em Cuba] tem que saber das doenças, tem que saber das patologias, coisas assim mais profundas, lá se trabalha mais assim. (...) E aqui não, você já chegou aqui, pegou um protocolo, vê uma cartela, vê tudo. (...) Lá tem que ter esta experiência, eu acho que é uma experiência bacana” (M23) |
“Tem uma [médica] que chega para mim e fala: eu fiz a prescrição de vitamina, sulfato ferroso para crianças, não sei o que lá. Eu falo que não tem evidência. Eu fiz uma [supervisão] locorregional falando isso e na ‘loco’ ela falou: ‘tem os protocolos aqui, mas eu vou seguir o que eu acho’” (S1) |
ACS: agente comunitário de saúde; NASF: Núcelo de Apoio à Saúde da Família; UBS: unidade básica de saúde.
Fonte: elaboração própria.
Observou-se variação entre os médicos em relação à realização de procedimentos invasivos: dezoito disseram ter realizado remoção de cerúmen; doze, inserção de dispositivo intrauterino; oito, sutura; e seis, retirada de unha encravada (Quadro 3, M18). Poucos afirmaram não ter capacitação, e os que não realizavam apresentavam diversas justificativas: falta de materiais e espaços adequados; falta de procura pelo serviço na UBS; indisponibilidade de tempo; ou evitavam criar demandas por feridas de confrontos armados. As supervisoras percebiam que a realização de procedimentos invasivos não era realizada por todos os médicos, apesar das exigências da gestão municipal (Quadro 3, S4), em função de capacitação e pressão assistencial.
Todos os entrevistados (24) referiram atendimento à livre demanda dos usuários. Havia variedade de formas de acolhimento à demanda espontânea, destacando-se o “acesso avançado”, que objetivava oferecer o máximo de vagas para marcação de consultas médicas para o mesmo dia, reduzindo o tempo de agendamento (Quadro 3, M5). Segundo a supervisão, o acolhimento à demanda espontânea foi incorporado, sem que os médicos pudessem se restringir ou recusar a fazê-lo. Reiteraram a prática do “acesso avançado”, sendo uma contribuição trazida pela supervisão e que se tornou oportuna à realidade dos médicos.
Todos os médicos (24) referiram acompanhar grupos prioritários, organizando o seguimento, procurando cumprir os protocolos de cada condição, mas com flexibilidade. Cuidado esse compartilhado com os enfermeiros das EqSF (Quadro 3, M19, M21).
As falas do grupo focal convergiram com as entrevistas, porém, realçaram limitações na abordagem dos casos de saúde mental. As supervisoras expressaram uma desvantagem da formação especializada de determinados profissionais do PMM no manejo de condições psíquicas na atenção primária à saúde, além do idioma ser mais um fator limitante.
Metade dos médicos (12) teve contato com profissionais da atenção secundária ou terciária somente por meio das guias de referência. A outra metade se comunicou com especialistas, porém com pouca frequência. Dois sublinharam a importância da estruturação e integração da rede de saúde para o aprimoramento das relações com outros níveis de atenção (Quadro 3, M3). Os entrevistados falaram sobre receios de maior aproximação com médicos da rede de atenção à saúde, devido à forte rejeição da corporação médica ao PMM, marcadamente em seu início (Quadro 3, M21).
Mesmo com a guia de referência, a comunicação interprofissional não foi avaliada positivamente, uma vez que somente sete médicos afirmaram receber a contrarreferência com regularidade. O grupo focal também levantou dificuldades de comunicação direta no sistema municipal de saúde.
A integração dos médicos na EqSF foi fortemente enfatizada pelos entrevistados, bem como pelo grupo focal. A maioria dos médicos (18) destacou o preparo e a capacidade técnica dos enfermeiros brasileiros - “são quase médicos”, diziam alguns entrevistados - sendo importantes parceiros para compartilhar o acompanhamento dos usuários em equipes com excesso de população.
Alguns (2) sofreram dificuldades com a rotatividade de enfermeiros. Para uma entrevistada, houve alguns conflitos com a enfermagem no início do PMM, porque não estava habituada à abrangência de ações dessa categoria na atençaõ primária à saúde. O fato de o enfermeiro, no Brasil, realizar consulta foi uma novidade, levando a uma relação mais paritária e de maior diálogo (Quadro 3, M8).
Os médicos realçaram a importância dos ACS e que sua atuação ampliava as possibilidades de cuidado. Houve frequente menção ao NASF em várias passagens das entrevistas, com destaque para o apoio na saúde mental e assistência social (Quadro 3, M17). O grupo focal pontuou que, com poucas exceções, os médicos tinham boa relação com todos os membros da Estratégia Saúde da Família (ESF), articulando-se para o cuidado e discussão de condutas.
Os médicos afirmaram utilizar os indicadores fornecidos pelo prontuário eletrônico. A maioria (20) elaborava atividades a partir dos problemas encontrados, como busca ativa e campanhas (Quadro 3, M21). Dois médicos reforçaram que o centro do cuidado estava na qualidade do acompanhamento às pessoas. O grupo focal também apontou para a utilização dos indicadores de desempenho presentes no prontuário eletrônico na organização do trabalho da EqSF, mas a partir de uma noção restrita da atenção primária à saúde a programas de saúde, pouco valorizando como dispositivo de discussão do processo de cuidado.
A grande maioria (23) dos médicos afirmou conhecer os manuais da Secretaria Municipal de Saúde para práticas assistenciais e fluxos na atenção primária à saúde. A maioria utilizava os protocolos municipais ou nacionais, realçando a importância de se respeitar as indicações estabelecidas no país. Poucos médicos (5) referiram utilizar também referências estrangeiras, como diretrizes de Cuba, de sociedades médicas americanas ou outras de língua espanhola.
Os entrevistados afirmaram não ter apresentado dificuldades para adaptação aos protocolos brasileiros. “A medicina é a mesma” foi uma expressão muito repetida. As diferenças em relação a Cuba diziam respeito ao cuidado a usuários com tuberculose, que, naquele país, é direcionado aos especialistas, à atenção materno-infantil, mais rigorosa em Cuba, e aos fluxogramas, pouco utilizados na prática cubana (Quadro 3, M23). No grupo focal, havia uma posição diferente em relação à adequada utilização dos protocolos assistenciais e da Medicina Baseada em Evidências por parte dos médicos cubanos. Segundo as supervisoras, alguns profissionais baseavam-se no empirismo, com resistência ao direcionamento das evidências científicas (Quadro 3, S1).
Os resultados sinalizam que as práticas dos médicos cubanos no PMM apresentaram presença integral ou parcial de todos os componentes utilizados para análise da integralidade das práticas. A dimensão do elenco de ações de promoção, prevenção e assistência apresentou-se de forma um pouco mais potente que a dimensão da abordagem biopsicossocial do cuidado, com orientação comunitária, embora potencialidades e fragilidades possam ser percebidas nas duas dimensões. As fragilidades no elenco de ações, contudo, indicam principalmente limitações extrínsecas à atuação dos médicos (por exemplo, a violência no território). O Quadro 4 sumariza as principais potencialidades e fragilidades no alcance da integralidade com base na avaliação dos médicos entrevistados e perspectiva da supervisão.
Quadro 4 Potencialidades e fragilidades dos componentes das dimensões da integralidade das práticas dos médicos Programa Mais Médicos (PMM). Município do Rio de Janeiro, Brasil, 2016.
Dimensão: abordagem biopsicossocial do cuidado, com orientação comunitária | ||
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Componentes | Potencialidades | Fragilidades |
Consideração da dinâmica do espaço territorial | Conhecimento da dinâmica social e cultural, além dos riscos epidemiológicos e sociais. Intervenções no território em conjunto com a EqSF e outros parceiros da comunidade para educação em saúde. | Mapeamento pouco preciso dos riscos na área adscrita. |
Centralidade no sujeito e sua autonomia | Posturas e técnicas diversas para abordagem centrada na pessoa. | Contradições na negociação da conduta com os usuários. Insuficiente estruturação da abordagem centrada na pessoa. |
Intersetorialidade | Atuação facilitada por alguns dispositivos (Programa Saúde na Escola e Centro de Referência em Assistência Social) voltados para a integração setorial. | Frágil articulação intersetorial das políticas municipais. |
Valorização dos determinantes sociais | Acompanhamento de usuários do Programa Bolsa Família. Atuação diferenciada em casos de vulnerabilidade social, em conjunto com a EqSF. | Dificuldades na identificação e abordagem de alguns casos vulneráveis (violência doméstica). |
Participação ativa das coletividades na construção de projetos de saúde | Estabelecimento de parcerias na comunidade. Diagnóstico comunitário parcialmente realizado com lideranças locais. Prestação de contas, realizada anualmente, à gestão com convite para a comunidade. | Ênfase na análise epidemiológica no diagnóstico comunitário, em detrimento da análise das demandas e necessidades trazidas pela população. Pouca participação comunitária nas reuniões de accountability. Baixa participação dos médicos em conselhos locais de saúde (colegiado gestor da UBS). |
Dimensão: elenco ampliado e integrado de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde | ||
Componentes | Potencialidades | Fragilidades |
Carteira ampla de serviços para promoção, prevenção e assistência em saúde | Realização de atividades de promoção, prevenção e assistência. Aconselhamento sobre alimentação saudável e cessação de tabagismo. Realização de procedimentos invasivos de pequeno porte. | Dificuldades no aconselhamento sobre redução de danos em dependentes de álcool e drogas. Insuficiente infraestrutura das UBS. Pouca procura para realização de procedimentos invasivos. |
Atenção à demanda espontânea e programada | Atendimento de situações agudas nas UBS, com destaque para o “acesso avançado”. Acompanhamento sistemático de condições de saúde programáticas. | Excesso de demanda espontânea em relação ao total de consultas. Dificuldades no acompanhamento de usuários com transtornos mentais. |
Integração com outros serviços de saúde | Preocupação em acompanhar casos encaminhados a outros serviços. | Pouco contato com profissionais da rede especializada. Fragmentação do sistema municipal de saúde. |
Interdisciplinaridade | Integração com enfermagem, ACS e NASF, principalmente assistência social e saúde mental. | Rotatividade de enfermeiros. Baixa cobertura de NASF. |
Planejamento das intervenções | Análise de indicadores de saúde fornecidos pelo prontuário eletrônico, com planejamento de atividades junto à EqSF. | Concepção restrita apenas ao cumprimento de metas dos indicadores de desempenho. |
Utilização de protocolos assistenciais | Conhecimento das guias de referência rápida do município. Uso de protocolos e diretrizes municipais e nacionais. | Divergência no seguimento adequado de diretrizes clínicas. |
ACS: agente comunitário de saúde; EqSF: equipes de saúde da família; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família; UBS: unidade básica de saúde.
Fonte: elaboração própria.
O PMM suscitou questionamentos quanto ao seu potencial para ofertar atenção à saúde de qualidade à população 2. Não obstante, em relação à integralidade, este estudo indicou boas práticas.
A forte integração territorial e inserção comunitária condizem com os achados de outros estudos sobre as práticas no PMM 21,22,23. A formação cubana, direcionada à prestação de serviços voltados à comunidade 24, pode ser um elemento facilitador. Ressalta-se que atividades de territorialização mais precisas poderiam potencializar a atuação sobre os ambientes de reprodução social dos processos de saúde-adoecimento nas áreas de abrangência das EqSF 7.
Ainda que de forma pouca sistematizada, pôde-se notar que os seis passos da abordagem centrada na pessoa 25 estiveram presentes na prática dos médicos do PMM. Outros trabalhos também identificam a presença de elementos da centralidade no sujeito e sua autonomia entre os médicos do PMM 21,23,26. As avaliações da supervisão sobre esse ponto pareciam explicitar certa tensão e defesa de uma concepção de medicina de família e comunidade brasileira, com pouca permeabilidade a práticas advindas de outras experiências. Destaca-se que a abordagem e o método clínico centrado na pessoa, no currículo baseado em competências, elaborado pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, são tidos como atributos essenciais em diversos campos da especialidade 27, o que pode justificar a ênfase na sistematização mais rigorosa do método, a partir do modelo de formação no Brasil.
Os resultados indicam que as ações intersetoriais são facilitadas quando há dispositivos estabelecidos, como o Programa Saúde na Escola ou, com menor expressão, o Centro de Referência de Assistência Social. Contudo, problemas reconhecidos nas comunidades parecem ter pouco ou nenhum enfrentamento por meio de articulação apenas no nível local. Giovanella et al. 28 revelam que faltam políticas intersetoriais na gestão, e que ações do executivo municipal, quando ocorrem, fortalecem as atividades comunitárias das EqSF nos territórios.
Outros estudos também apontam que os profissionais do PMM valorizam os determinantes sociais em suas práticas 22,26. Esse aspecto se relaciona com a integralidade na medida em que demonstra capacidade de atuação ampliada para além dos cuidados clínicos e sugere uma atenção com foco sobre as fontes da reprodução social das doenças 17.
Observa-se capacidade para identificar lideranças e estabelecer importantes parcerias na comunidade, mas baixa participação em conselhos locais de saúde pelos médicos do PMM. No Brasil, outros autores também sinalizam dificuldades entre os trabalhadores de saúde no sentido de mobilizar e incentivar a população, para juntos promoverem intervenções. Ademais, destacam a necessidade de promover a qualidade da representação e expandir impactos das instâncias de controle social em saúde nas decisões políticas 19,29.
A dimensão do elenco de ações de promoção, prevenção e assistência foi mais plenamente alcançada pelos médicos nas categorias investigadas. Girardi et al. 30 encontraram resultados semelhantes, com escopo de ações diversificado, porém, apontando para limitações como falta de capacitação, pouca procura dos usuários e, mais destacadamente, inadequação da estrutura das UBS.
A dificuldade de lidar com usuários de álcool e drogas pode ser discutida a partir das peculiaridades do território. Estudo de caso da Organização Mundial da Saúde/Organização Pan-Americana da Saúde 26 no Município do Rio de Janeiro encontrou achados semelhantes quanto aos desafios de lidar com problemas ligados às drogas e ao alcoolismo, que não eram familiares aos médicos do PMM.
Médicos e supervisoras avaliam que, mesmo em territórios com graves problemas sociais e epidemiológicos, as EqSF cobrem uma quantidade excessiva de usuários. O excesso de população prejudica a capacidade das equipes para desenvolvimento de práticas integrais. Santos 31 demonstra que UBS que concentram grande demanda apresentam vinculação precária, não logram relação de longitudinalidade e o acesso de primeiro contato oportuno, podendo simplificar a ESF a um ambulatório de queixa-conduta, com cuidados centrados na doença.
Verifica-se acolhimento à demanda espontânea e programada a partir de estratégias para sua absorção, condizentes com outros estudos 21,23,26. A realização de acompanhamento de diversos grupos populacionais é outro aspecto positivo da prática dos médicos do PMM.
As dificuldades de acompanhamento de casos de saúde mental refletem a inadequada capacitação para lidar com esses problemas, semelhante aos médicos brasileiros, que costumam apresentar resistências em abordar casos de saúde mental no contexto da ESF 32. O quadro de violência e precariedade das condições de vida em grandes metrópoles, como no contexto de estudo, não apenas suscita a incidência de problemas mentais como os complexifica 26.
A insuficiente coordenação do cuidado, problema frequente no SUS 33, também se apresentou como uma fragilidade. Conforme Almeida et al. 33, a guia de referência é um instrumento pobre para o diálogo entre especialista e generalista e sujeita os usuários a serem porta-vozes das informações, além de colocá-los no trânsito das disputas de reconhecimento profissional entre especialistas e médicos da atenção básica, o que foi aqui também evidenciado em relação ao PMM.
O estudo mostrou respostas predominantemente favoráveis na relação dos médicos com a enfermagem, os ACS e o NASF, em consonância com outros estudos sobre as práticas no PMM 21,22,26. Diferenças culturais, sobretudo no que tange à linguagem e aos papéis dos profissionais nas equipes de saúde, mostraram-se pouco expressivas e foram atenuadas ao longo do tempo, compatíveis com os achados de Comes et al. 21. O NASF foi intensamente explorado, com relações regulares e frequentes para recursos de apoio matricial e pedagógico, principalmente para saúde mental e assistência social. Estudos apontam que a procura dos médicos da atençaõ primária à sáude pelas equipes de NASF não é usual, vigorando a prática de encaminhamentos, sendo o matriciamento utilizado, geralmente, entre os enfermeiros e ACS 32.
Os médicos do PMM realizam análise de indicadores de saúde da população e desenvolvem as atividades planejadas. Essa forma de atuação também foi encontrada em outros estudos 21,23,26. O enfoque preventivo, estabelecido como princípio do Sistema Nacional de Saúde em Cuba, sobretudo na atenção primária à saúde, onde a prática é sistematizada por meio de mecanismos de planejamento de ações 23, pode ser uma prática que favorece os médicos do PMM.
No uso de protocolos assistenciais, elementos da conduta profissional e da relação médico-paciente relacionados à qualidade da atenção 17 estiveram presentes, como a competência técnica, ações clínicas associadas à abordagem social (notadamente nas visitas domiciliares), a valorização do exame clínico e o uso racional de meios diagnósticos.
Em síntese, pode-se afirmar que a atuação dos médicos cubanos no PMM apresenta elementos condizentes à integralidade das práticas, conforme concepção adotada neste trabalho, com prestação de um leque amplo de ações e serviços, coerente com a complexidade dos problemas de saúde e pluralidade dos cenários. Os profissionais possuem marcada capacidade de inserção comunitária, enfoque preventivo, planejamento de ações e bom relacionamento interpessoal, identificando-se posturas e técnicas de acolhimento, vínculo, responsabilização e qualidade de atenção.
Desafios foram sinalizados quanto à promoção de práticas participativas com as coletividades, à ampliação da autonomia das pessoas nas decisões clínicas, ao manejo mais potente de problemas de ordem psíquica, à sistematização de ferramentas de abordagem (centrada na pessoa e a casos vulneráveis, por exemplo) e à capacitação para procedimentos invasivos na atenção básica. Os processos de aprendizagem estabelecidos no Programa são possibilidades para a melhoria e superação desses obstáculos.
Os resultados deste estudo sinalizam que há fortes indícios que o PMM tem ido além do aumento do acesso a consultas 13, procedimentos e diminuição das iniquidades na distribuição de médicos 12. A prática dos médicos cubanos no PMM no caso estudado possibilitou a oferta de cuidados integrais em saúde, contribuindo para o fortalecimento de uma concepção abrangente de atenção primária à saúde e do SUS.