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A inter-relação entre transtornos mentais comuns, gênero e velhice: uma reflexão teórica

A inter-relação entre transtornos mentais comuns, gênero e velhice: uma reflexão teórica

Autores:

Luciana Fernandes de Medeiros

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.27 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2019 Epub 25-Nov-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900040316

Abstract

Background

One of the most significant public health issues today is the prevalence of common mental disorders (CMD) and the overuse of psychotropic drugs. Women are suffering most from the CMD and, consequently, making more use of antidepressants and anti-anxiety drugs.

Objective

This study aims at making some theoretical considerations on the interrelations between CMD, gender relations, and aging.

Method

It is a theoretical reflection. An article search was conducted in SciELO and Google academic. Of the 15 articles found, 13 were included on the subject and a critical analysis was carried out.

Results

It is observed that CMD is related to living conditions and gender inequities. Older women, when they do not play social roles for which they had prepared themselves and which they have long played it, they experience symptoms of CMD. With the departure of children from home and the physical limitations resulting from the aging process, many of them find themselves without other life projects and this fact contributes to the worsening of symptoms.

Conclusion

Primary health care must include discussions of aging, gender and actions to promote mental health in their daily activities.

Keywords:  mental disorders; gender; aging; living conditions; primary health care; psychotropics

INTRODUÇÃO

A ideia de escrever a presente reflexão teórica surgiu a partir de observações realizadas no componente curricular Saúde e Cidadania* (SACI) da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (Facisa/UFRN), no município de Santa Cruz/RN, e de estudos anteriores sobre o nervosismo no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Natal/RN/Brasil1,2. Durante algumas visitas domiciliares realizadas em função da SACI, foram observadas idosas em depressão ou que se diziam deprimidas tomando antidepressivos e/ou ansiolíticos, com outros problemas de saúde, geralmente crônicos, e sem nenhum tipo de acompanhamento a não ser o clínico geral. Embora não tenha sido realizada ainda uma investigação empírica sobre a temática, ficou evidente que muitas mulheres desse contexto tomavam diversos tipos de medicamento, incluindo psicotrópicos. Esse dado aparece em outros estudos e tem sido considerado um problema de saúde pública1-6.

Muitas mulheres tomam medicamentos em função do nervosismo e da denominada “doença dos nervos”. As queixas de nervos têm sido foco de alguns estudos na tentativa de compreender os significados desse termo para quem sofre desse problema1,2,6. Algumas categorias são utilizadas na literatura especializada para enquadrar esse conjunto de queixas em algum diagnóstico, por exemplo, o termo transtornos mentais comuns (TMC).

Os TMC se referem a queixas polissintomáticas que não conformam um quadro psicopatológico, tal qual consta descrito nos manuais psiquiátricos, como o DSM-IV-TR e a CID-10. Na realidade, as queixas de nervoso não deveriam fazer parte de nenhuma categoria nosológica, visto que são tentativas das pessoas de expressarem um sofrimento advindo das condições de vida e da existência. Se analisadas à luz do paradigma biomédico, não serão compreendidas em sua totalidade.

Contudo, a maioria da população, incluindo aí os próprios queixosos e boa parte dos profissionais de saúde, considera as queixas de sofrimento psicológico e nervoso como sendo um transtorno, uma doença, algo a ser aliviado com medicamentos. Boa parte dessa população procura resolver seu sofrimento por meio de antidepressivos e ansiolíticos pela força que o discurso medicalizador7 tem sobre toda e qualquer situação de saúde. Isso acontece principalmente no contexto da atenção primária à saúde.

Com o envelhecimento da população brasileira, vários estudos sobre esse período da vida vêm sendo desenvolvidos, tanto no intuito de evidenciar os problemas crônicos de saúde que podem interferir negativamente na qualidade de vida dos idosos7,8 quanto em apontar diretrizes para o envelhecer com saúde. Contudo, a literatura sobre o assunto ainda é escassa no que concerne a relacionar estudos de gênero com envelhecimento e suas repercussões na saúde mental.

A partir das experiências no componente curricular SACI e de alguns estudos citados, a presente reflexão teórica busca responder a duas questões: 1) por que há uma maior prevalência de TMC entre as mulheres, incluindo idosas? 2) qual é a relação dos TMC em mulheres idosas com as questões de gênero?

O presente estudo objetiva tecer algumas considerações teóricas sobre as inter-relações entre TMC, relações de gênero e velhice, bem como apontar algumas contribuições para a atenção primária à saúde mental.

MÉTODO

O presente trabalho caracteriza-se como uma reflexão teórica sobre os transtornos mentais comuns e suas inter-relações com o envelhecimento e a temática do gênero. Para essa reflexão ser possível, foi realizado um levantamento de artigos na base de dados do Scientific Electronic Library Online (SciELO) e do Google Acadêmico a partir dos seguintes descritores: 1) envelhecimento e transtornos mentais comuns (TMC); 2) idosas e transtornos mentais comuns (TMC); 3) mulheres e TMC; 4) gênero e TMC; 5) transtorno mental comum. Foram encontrados seis artigos com esses descritores. Dessa maneira, houve a necessidade de ampliar o escopo da pesquisa; assim, buscou-se material no Google Acadêmico com os mesmos descritores. Foram encontrados mais 15 artigos indexados em outras bases de dados.

Foram selecionados 13 artigos dentro desse campo de descritores, dos quais seis eram qualitativos. Só foram incluídos, no presente estudo, os artigos que abordavam diretamente as temáticas de envelhecimento e gênero ou TMC e mulheres. Artigos que contemplavam outras temáticas, como qualidade de vida, atividades físicas ou doenças crônicas, foram excluídos por saírem do escopo do presente trabalho.

Todos os artigos incluídos neste estudo foram publicados entre 2008 e 2018 e se referem a estudos no Brasil. Considera-se importante o período de dez anos da publicação dos artigos para mostrar que os TMC são prevalentes há um tempo significativo no contexto da saúde pública brasileira, mais especificamente na atenção primária à saúde.

O presente estudo apresenta algumas limitações, como o fato de não incluir artigos sobre velhice e doenças crônicas, que normalmente aparecem associadas a sofrimento psicológico e/ou TMC. Também não foram incluídos artigos de outros países por se considerar que os TMC estão permeados por aspectos sociais e culturais que são muito peculiares ao contexto brasileiro.

Para a análise dos artigos, fez-se uma leitura crítica e interpretativa deles, além de escrita própria sobre as reflexões suscitadas com a leitura.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os Transtornos Mentais Comuns (TMC) e as condições de existência

No estudo de Silva e colaboradores8, a prevalência de TMC na população estudada foi de 55,8%, e entre as mulheres idosas, 66,9%. Esses autores colocam que os idosos e as mulheres de baixa renda são os grupos mais vulneráveis aos TMC. Esses dados apontam para uma alta prevalência de TMC no contexto estudado. Entretanto, outros estudos, alguns mais antigos e outros mais recentes, mostram uma prevalência muito próxima1-6.

No estudo de Borim, Barros e Botega9, as mulheres idosas também aparecem com alto índice de prevalência de TMC. Para esses autores, os fatores que podem contribuir para esse dado em idosos são o aumento das incapacidades e morbidades, os eventos estressantes, o isolamento social e as dificuldades econômicas. Muitos desses idosos com TMC também apresentam doenças crônicas em comorbidade9.

Analisando a história de vida das participantes do estudo de Medeiros1, observou-se a relação das queixas de nervoso com vários aspectos da vida cotidiana, tais como as privações geradas pelas condições precárias de vida e as preocupações oriundas da falta de perspectivas e da violência comumente presente no contexto de baixa renda. Além disso, ficou claro nos discursos das participantes que o casamento era uma fonte significativa de sofrimento. Nesse sentido, considera-se a hipótese de que o TMC é perpassado pelo gênero, seus papéis sociais e suas iniquidades, além das próprias dificuldades do cotidiano.

Esses dados aparecem em outros estudos que analisaram os TMC em diferentes contextos, como os de Zanello, Fiuza e Costa10 e Costa, Dimenstein e Leite11. Para Zanello, Fiuza e Costa10, o sofrimento entre as mulheres é construído socialmente e perpassado pela questão do gênero. Isso porque, em sua socialização, a mulher tem de ser calada, recatada e contida, o que pode contribuir para uma espécie de “implosão” emocional expressada sob a forma de sofrimento psíquico e TMC. Já Costa, Dimenstein e Leite11 apontam a relação dos TMC com a pobreza, a sobrecarga de trabalho gerada pelo casamento (jornada tripla) e a violência. Esses autores enfatizam as condições de vida como principal geradora de sofrimento psíquico e aludem ao conceito de feminização da pobreza, que significa que as mulheres pobres estão em maior desvantagem social. Fica evidente a questão das relações de gênero e das condições de vida no adoecimento dessas mulheres.

Considerando que muitas dessas mulheres não conseguem uma assistência adequada que realmente contribua para a reflexão sobre suas dificuldades, que promova maior suporte psicossocial e que ajude a diminuir o uso de psicotrópicos, é de se supor que esse sofrimento se cronifique em muitos casos, gerando transtornos psicológicos mais sérios, como a depressão8,10. Não deixa de ser uma hipótese sugerir que a depressão na velhice, em alguns casos, possa ser fruto desse sofrimento psicológico crônico que geralmente começa no final da adolescência ou no início da vida adulta jovem e que permanece por toda a vida adulta. Alguns estudos apontam justamente essa relação da depressão com a questão do gênero8,12-14.

As relações de gênero e as iniquidades no âmbito da saúde pública

O gênero é uma categoria bastante estudada nos últimos anos, sobretudo nos campos das ciências sociais e psicológicas. Não diz respeito ao sexo biológico, mas aos papéis sociais e às atribuições esperadas de cada sexo. Ser homem e ser mulher, com todas as características atribuídas a cada um, pode se diferenciar de cultura para cultura. Os processos de socialização e de construção da subjetividade perpassam as construções sociais e culturais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher em cada sociedade. Assim, as características atribuídas a cada sexo, em cada contexto sociocultural, permeiam as questões de gênero15.

Na sociedade ocidental, incluindo a brasileira, há resquícios de um modelo de família nuclear e patriarcal que teve seu apogeu em meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. Uma das principais características desse tipo de organização familiar são as atribuições e os papéis sociais de cada gênero na sociedade16. Nesse caso, o papel da mulher é muito claro e evidente: ficar em casa, cuidando dos filhos e do marido, sendo o homem o chefe da família e provedor. Essa divisão de papéis e comportamentos socialmente aceitáveis também contribuiu para a naturalização do papel social de cuidadora3. Por muitos anos, as mulheres foram socializadas para o exercício do papel de mãe virtuosa, dona de casa prendada e obediente ao marido.

Outras dimensões das questões de gênero são o valor social atribuído ao casamento e a importância da manutenção da coesão familiar. Possivelmente, alguns casamentos foram infelizes, mas necessários para a manutenção do status quo da família. A mulher divorciada foi considerada, por muito tempo, como uma diferente, um pária da sociedade.

O movimento feminista e o próprio processo de modernização contribuem para o questionamento do que vem a ser o feminino e o masculino no mundo ocidental. As mulheres conseguem os mesmos direitos sociopolíticos, e a imagem do homem como provedor e chefe de família começa a perder sua força em função dos novos espaços conquistados pelas mulheres e pela aparente igualdade de condições.

No entanto, por mais que se fale em igualdade de gênero, ainda há resquícios do modelo patriarcal e da ideia de que a esposa deve ser obediente ao seu esposo, paciente com ele e cordata. Um dos dispositivos em que melhor pode se observar a iniquidade entre homens e mulheres é o casamento15,16. No casamento, a sexualidade feminina, por exemplo, fica restrita ao controle social15,16.

Em primeiro lugar, há o valor dado à virgindade. A mulher que casava virgem era um exemplo de virtuosidade. Em segundo lugar, o casamento moderno pressupõe a fidelidade. Os discursos atuais mantêm o ideal de fidelidade, e a mulher que tem mais de uma relação, seja de que tipo for, é considerada promíscua. O mesmo não acontece com os homens, cuja infidelidade é mais naturalizada e até esperada15.

A perspectiva do amor romântico, que se fortaleceu no século XIX, pressupõe a união de um casal em função do sentimento de amor e de exclusividade. Consequentemente, concordando com Haddad15, a conjugalidade construída dentro desses parâmetros exige a fidelidade como um de seus componentes.

Nesse cenário, a sexualidade feminina fica restrita ao casamento e sua fidelidade é altamente valorizada; terreno fértil para as histéricas que Freud escutou, que denunciavam o desajuste das mulheres tanto em relação ao lugar que lhes era destinado, quanto ao ideal de feminilidade sem chances de ser habitado15 (p. 75).

A sexualidade, portanto, por questões sociais e culturais, fica enquadrada dentro dos padrões de comportamento esperados de uma esposa virtuosa. Como exemplo, há o relato de enfermeiras de uma unidade de saúde da atenção básica, citadas em Azevedo2, que fizeram rodas de conversa com mulheres para saber o motivo de não realizarem o preventivo regularmente. Após alguns encontros, as enfermeiras constataram que algumas mulheres tinham vergonha e medo do próprio corpo, outras nunca souberam o que era um orgasmo e outras ainda não se permitiam gozar plenamente o sexo por ser algo sujo e interdito a elas. Nesse contexto, quando há a relação sexual entre os cônjuges, o sexo parece servir apenas para a reprodução.

Para Zanello, Fiuza e Costa10, há um ideário que coloca que a verdadeira mulher é recatada em sua sexualidade, mas que deve ser amorosa e cuidadora do outro (principalmente, filhos e marido). Essa experiência pode conduzir a uma vivência permeada pela frigidez e por conflitos existenciais, como coloca Beauvoir16. Como a mulher vai exercer sua sexualidade em um contexto como esse? Muitas delas nem perceberão o que falta em suas vidas. Considerando que o sexo é uma necessidade fisiológica e emocional, a não vivência plena dessa sexualidade pode ter um preço.

Se o casamento é idealizado no sentido de que vai completar a mulher tanto em termos de amor como de sexo, como essa pessoa fica quando constata que a paixão dificilmente sobrevive à rotina do casamento e que o sexo pode vir a degringolar com o tempo? Ou ainda, como fica a mulher que não vive plenamente sua sexualidade?

Para Porto e Bucher-Maluschke17, mesmo diante dos ideais modernos que valorizam a individualidade e a liberdade, o ideal do amor romântico ainda permanece, sobretudo entre as mulheres. Isso, de alguma forma, estabelece uma tensão entre ideias que se apresentam contraditórias: a completude do amor romântico e a liberdade do individualismo moderno17.

Haddad15 coloca ainda que as uniões amorosas atuais fazem parte do imaginário com fortes promessas de felicidade, “[...] mas também um lugar de sofrimento patológico quando supõem e exigem que seu fundamento seja o amor” (p. 92).

De acordo com o estudo de Swain18, muitas mulheres permanecem em relações permeadas pela violência em função de um ideal de casamento e valores atribuídos à família. “[...] Não é uma questão de gostar ou de ter vontade de apanhar, mas sim realizar um desejo, [...], o desejo de realizar a promessa do amor romântico”18 (p. 274). Realizar a promessa do amor romântico é também esperar que o cônjuge mude por amor.

A necessidade de ser amada se torna maior que o desamparo de estar sozinha, sem um homem para ampará-la18. E a constatação de que essa mudança, que é idealizada, não vai acontecer pode ser motivo de muita frustração. Essa frustração, somada a outros determinantes sociais, pode contribuir para o advento de TMC na vida adulta, sua cronificação e possível depressão durante o processo de envelhecimento.

Transtornos Mentais Comuns (TMC) e suas relações com a velhice

Vários estudos apontam a alta prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) em mulheres na idade adulta2,12-14. No estudo de Berlezi et al.14, a maioria das participantes, todas entre 50 e 65 anos, boa parte delas casada, relatou sofrer com nervosismo e vários sintomas de disforia, como tristeza, raiva, irritabilidade, confusão, isolamento social, cansaço e cefaleia. Isso mostra como é alto o índice de sintomas relacionados à depressão no período pós-menopausa14.

No estudo de Brandão e Germando19, boa parte das narrativas das participantes idosas evidencia perspectivas românticas na adolescência, quando consideravam o namorado como representante de uma vida futura. À medida que o tempo foi passando e essas expectativas não se cumpriam, em função das limitações do contexto e das relações de gênero, o companheiro, de herói salvador, passou a ser um antagonista, “[...] justamente quem impede que as metas se concretizem e quem deita a perder as metas familiares conquistadas com esforço”19 (p. 12).

Muitas dessas mulheres são dependentes financeiramente, outras sofrem violência e não conseguem sair da situação; algumas relatam o adultério do marido, outras ficam sobrecarregadas com as diferentes atribuições exigidas de uma mulher e outras ainda passam por todas as situações ao mesmo tempo19.

A tudo isso se soma a questão da disciplina dos corpos e do controle dos desejos, como se a mulher não pudesse ter isso para si, usufruir seu corpo como melhor lhe aprouver. As próprias senhoras, participantes do estudo de Brandão e Germando19, referiram precisar envelhecer com comedimento, no sentido de usar roupas adequadas, não namorar (porque isso é “coisa” de jovens) e tomar conta de sua casa.

Fernandes20 observa que as participantes de sua pesquisa, que são idosas, veem-se em um papel de cuidado, cuidadoras da família e de si mesmas. Para a autora, as pessoas que são idosas hoje vivenciaram um modelo mais tradicional em suas relações e nos papéis masculino/feminino no sentido de maior autoridade dos homens sobre as mulheres e os filhos, o que caracteriza uma assimetria relacional20.

A ideia de assimetria relacional fica evidente no caso da senhora deprimida e do marido feliz. Essa situação foi observada em uma das visitas desenvolvidas durante a SACI, em 2015. A senhora em questão, 75 anos, relatou não conseguir andar nem desenvolver suas atividades domésticas em função de sua doença. Embora não houvesse diagnóstico de doenças crônicas, ela tomava antidepressivo todos os dias. Enquanto sua rotina se limitava a ver televisão, seu marido possuía uma mercearia em casa. Ficou evidente o contraste entre os dois: o isolamento social e psicológico da senhora e a vida social ativa do marido. Essa mulher passou a vida dedicada aos filhos e à vida doméstica, enquanto seu marido se dedicou a uma vida pública com a mercearia e os amigos que a frequentavam.

Ao longo de sua vida de casada, essa senhora assumiu a maior parte das tarefas domésticas no âmbito privado, ao passo que o marido teve a oportunidade de viver nos âmbitos público e privado21. Na atualidade, essa senhora continua dentro de casa, mas já sem atividades laborais em função da saída dos filhos e da própria limitação física. A sensação é a de que não há mais nada para fazer. Sua vida não tem mais tanto sentido. A doença provavelmente aparece para expressar isso.

Para Fernandes20, a restrição ao âmbito do privado pode trazer prejuízos biopsicossociais porque diminui o contato com o outro e com o social, além de diminuir as possibilidades de adquirir autonomia e independência financeira. Do ponto de vista sociocultural, essas mulheres provavelmente consideravam como natural essa posição na sociedade, o de ficar em casa cuidando da família. Talvez outras mulheres tenham tido expectativas diferentes, e essa “naturalidade” da família e do casamento pode ter contribuído para um certo ressentimento com relação ao casamento e ao modo de vida a ele relacionado.

No estudo de Brandão e Germando19, aparecem sentidos do feminino nesse contexto sociocultural, apontando para “[...] a vulnerabilidade da mulher, especialmente na relação com os companheiros”19 (p. 11). Ao percorrerem as narrativas das participantes, as autoras analisam o sofrimento dessas mulheres cujo companheiro teve um papel ativo nesse processo.

Sendo assim, a mulher casa com os ideais do amor romântico, com o sonho de ter uma família e uma casa para cuidar. Como esses ideais não se realizam completamente – por uma série de motivos, sobretudo em virtude das assimetrias de gênero –, muitas delas chegam à velhice sem outros projetos de vida. Os filhos provavelmente saíram de casa, o envelhecimento dificulta a realização das tarefas domésticas tal como faziam outrora e, mais sutilmente, pode haver uma frustração emocional em função daquilo que não se realizou16.

Se essa mulher já sofria com os sintomas dos TMC na vida adulta, em função das relações de gênero e das condições de vida, e não foram devidamente cuidados, a tendência é que, no processo de envelhecimento, tais sintomas possam se agravar com a presença de doenças crônicas9.

O estudo de Brandão e Germando19, que analisa as narrativas de mulheres idosas, resume bem a questão das relações de gênero e seu enredamento com o nervosismo e o sofrimento psicológico:

Diante de experiências diferentes de dor – do casamento, dos filhos, da pobreza, das limitadas perspectivas – o vocábulo “sofrer” e seus derivados dominam todas as narrativas, conferindo um aspecto doloroso ao conjunto das histórias19 (p. 13).

São essas mulheres que vão chegar à velhice fazendo uso indiscriminado e constante dos medicamentos psicotrópicos, sobretudo calmantes. Mendonça, Carvalho, Vieira e Adorno22 consideram que o intenso uso de medicamentos pelos idosos pode ser um mecanismo de defesa mediante o processo do envelhecimento, uma tentativa de permanecer ativo e útil, características bastante valorizadas pela sociedade. No caso da mulher, o calmante pode ser visto como uma garantia de que ela vai funcionar bem, não vai sentir fraqueza e não vai deixar de cumprir suas obrigações. A automedicação também pode contribuir para um sentimento de autonomia da pessoa, por poder decidir como e em que momento vai tomar a medicação22. Contudo, nos idosos, o uso de calmantes pode ter efeitos indesejados e contribuir para a invisibilidade de certas doenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta reflexão teórica foi tecer algumas considerações sobre a inter-relação entre TMC, questões de gênero e velhice. Nessa perspectiva, discutiu-se que os ideais do casamento e do amor romântico a ele associados ainda são hegemônicos na sociedade brasileira. Muitas mulheres buscam no casamento a realização de um projeto existencial que inclui a vida doméstica e o cuidado com os filhos.

Contudo, o casamento, da maneira como é engendrado na sociedade, normalmente coloca a mulher em uma posição mais subordinada e com restrições à sua sexualidade. Os TMC aparecem justamente nesse período em que são exercidos os diferentes papéis sociais atribuídos à mulher. São tarefas difíceis e nem sempre reconhecidas socialmente.

A ausência ou a precariedade de cuidados em saúde mental contribuem para a cronificação do problema, e, consequentemente, muitas mulheres envelhecem sem maiores perspectivas, cada vez mais depressivas e/ou ansiosas, que pioram com a presença de outras doenças crônicas, como hipertensão e diabetes1. Sendo assim, as idosas geralmente apresentam dores generalizadas e começam a apresentar algumas disfuncionalidades em função do processo do envelhecer. Contudo, esses sintomas somáticos podem ser mais graves naquelas que possuem quadros de TMC.

Os estudos analisados neste trabalho apontam, em geral, para a questão de gênero presente nos TMC, mas não fazem essa relação com o processo de envelhecimento.

As ações de saúde mental na atenção primária, bem como outras ações de saúde coletiva, devem ter “[...] 7uma compreensão ampliada do sujeito e a busca pelo desenvolvimento de estratégias pessoais e coletivas”3 (p. 134). Essas estratégias devem considerar as especificidades de cada grupo e os seus interesses. Além disso, os profissionais de saúde podem buscar maior parceria com as universidades no sentido de participar de projetos de extensão que normalmente são voltados para a comunidade.

Merighi et al.23 e também Borim et al.9 colocam ainda a importância da atividade física e do lazer como fatores protetivos aos TMC. As equipes de saúde que trabalham no contexto da atenção primária podem incluir em suas ações de promoção de saúde atividades de lazer que sejam do interesse das mulheres. Também podem convidar educadores físicos do Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF) para promover programas de atividades físicas, sobretudo para idosas.

Realizar discussões do gênero e rodas de conversa que abordem essas temáticas e a problemática da medicalização também é um passo importante para o estabelecimento de vínculos com a comunidade e posterior desenvolvimento de ações de promoção em saúde mental.

Por fim, a alta prevalência de TMC em mulheres aponta para um processo de envelhecimento mais desafiador, uma vez que já passaram boa parte da vida adulta sobrecarregadas, com pouco acesso ao lazer e ainda com dificuldades econômicas. Além das doenças crônicas e das disfuncionalidades que podem vir com o processo do envelhecer, essas mulheres ainda sofrem com toda uma vida de dificuldades advindas das questões de gênero.

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