versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.1 Rio de Janeiro 2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311xes02s116
A epidemiologia, ao estudar os determinantes e os efeitos da saúde nas populações, contém o embrião da interdisciplinaridade. Isso não acontece por acaso, pois para cumprir os seus objetivos disciplinares, tem de compreender um conjunto complexo de elementos situados em vários níveis do conhecimento e alocados em diversos outros campos disciplinares. Essa característica, apesar de estar no espirito fundacional da disciplina, dissipou-se nas suas versões mais recentes da "moderna epidemiologia".
No início da minha carreira científica na década de 1970, como um estudante de medicina decidido a ser um epidemiologista e intensamente envolvido em investigação sobre a esquistossomose, sofri a influência de leituras inspiradoras de pesquisadores desse campo, fora e dentro do Brasil. Dentre eles destaco o Prof. Simões Barbosa. Seus primeiros estudos datam da década de 1950 e sua intensa atividade se desenvolve pelas cinco décadas seguintes. Suas investigações ao longo desses anos cobriram aspectos dos planorbideos transmissores, a transmissão, o controle e os efeitos da infecção e da doença sobre as populações humanas. Seus estudos sobre a epidemiologia e estratégias de controle da esquistossomose são seminais e muitos deles ainda atuais. Um aspecto importante a destacar nas suas investigações é que no processo de conhecer problemas que investigava e na melhor tradição da boa epidemiologia, fez explorações magistrais das possibilidades interdisciplinares.
Em especial, gostaria de focar meu comentário em dois trabalhos complementares, os quais à época chamaram a minha atenção, interesse e curiosidade. O primeiro publicado em 1981, no American Journal of Epidemiology1, e o segundo um ano após, no Memórias do Instituto Oswaldo Cruz2. Tais trabalhos exploram o impacto da esquistossomose na produtividade de trabalhadores cortadores de cana em uma usina de seu querido Pernambuco. Em primeiro lugar, esses trabalhos explicitam a vocação genuinamente interdisciplinar que se encontra presente na investigação científica de epidemiologistas pioneiros e originais, como o foi Simões Barbosa.
A esquistossomose era considerada, na época da investigação, uma das mais importantes endemias dos países subdesenvolvidos da América Latina, África e Ásia. Epidemiologistas e tropicalistas americanos e europeus estudavam com afinco as suas implicações em saúde e, associados a economistas, fizeram explorações sobre as suas implicações econômicas. Os estudos econômicos, de maneira pragmática, iriam justificar os investimentos necessários para o controle dessa e de outras endemias. Porém, a sua referência maior era enfatizar a importância das "doenças tropicais" na explicação do subdesenvolvimento 3.
Os primeiros estudos sobre o impacto econômico da esquistossomose datam da década de 1960, na África 4), (5. No entanto, o modelo mais bem concebido desta linha de investigação será realizado por um grupo de economistas americanos, na ilha caribenha de Santa Lúcia, onde se desenvolvia um programa modelo de controle da esquistossomose com financiamento da Fundação Rockfeller 6. O estudo econômico foi publicado em 1973 em forma de livro 7 e teve o objetivo de desenvolver alternativas para medir o impacto da esquistossomose sobre a produtividade do trabalho e da performance de escolares pela comparação de grupos infectados e não infectados, mas vai muito além e explicita de maneira razoavelmente clara o quadro conceitual sobre o qual essa linha de investigação se situa.
Não há duvida de que o estudo de Santa Lúcia será inspirador para os estudos empreendidos por Barbosa e Pereira da Costa 1), (2 entre os canavieiros pernambucanos. A atualidade da questão, a rigorosa abordagem metodológica e a qualidade dos artigos finais mostram a familiaridade dos autores com o tema proposto e o seu domínio da investigação epidemiológica e mesmo dos métodos econométricos usados. Utilizam-se de abordagens retrospectivas e prospectivas ao investigarem em detalhe o impacto sobre a produtividade das diversas formas clínicas da esquistossomose, em especial as formas severas, nessa população de trabalhadores submetidos a condições extremas de trabalho. Os resultados mostram reduções significativas na produtividade dos cortadores acometidos com a forma hepato-esplênica, em relação a trabalhadores com outras formas mais benignas. Nesse aspecto, os seus métodos e resultados são mais robustos e convincentes do que aqueles apresentados no trabalho que serviu de inspiração. Os autores vão além e, pela pequena amostra estudada, extrapolam os efeitos para estimar as perdas de produtividade de toda a usina e mais ainda para todas as regiões produtoras de açúcar do Brasil. As estimativas produzem figuras impressivas sobre a queda de produtividade gerada pela esquistossomose na produção nacional de cana. Contudo, este foi, sem dúvida, um dos importantes equívocos dos autores, conforme assinalado por Davidson alguns anos após a publicação dos estudos originais 8.
Na visão de Davidson 8, para fazer tal extrapolação seria necessário aceitar que na força de trabalho não existiriam substitutos ou trabalhadores suplementares que compensassem os cortadores de cana com a doença nas suas formas mais severas.
Um ponto para debate seria o porquê os autores, ao apresentarem seus impressivos resultados, não pensaram sobre essa alternativa de explicação. Essa é uma questão difícil de ser respondida, entretanto eu gostaria de refletir sobre alguns aspectos. No caso específico, é indispensável entender como essa linha de trabalho trilhada por Barbosa e Pereira da Costa 1), (2 se situa com relação a dois debates importantes que os antecede 7. Primeiro, a colocação da saúde integrando as teorias econômicas que colocam atribuem à doença um valor monetário. Segundo, a ideia de que as doenças dos países subdesenvolvidos seriam um dos importantes fatores explicativos para a estagnação econômica deles. Esta última concepção teve grande aceitação a partir da década de 1950, como parte do modelo econômico desenvolvimentista dominante na época 9. Esse modelo concebia o subdesenvolvimento como intrínseco às condições prevalentes em cada país, incluindo as suas doenças, e fornecia aos economistas desta corrente de pensamento elementos para negar o papel da exploração imperialista na manutenção do subdesenvolvimento. Na epidemiologia, essas ideias seriam mais tarde reorganizadas em torno das chamadas teorias da transição demográfica 10 e da transição epidemiológica 11. As críticas eventuais aos trabalhos de Barbosa e Pereira da Costa 1), (2 em nenhum momento diminuem a sua importância e pertinência no contexto em que foi desenvolvido. Porém, são de imensa importância para a reflexão de que, ao praticar a interdisciplinaridade, o epidemiologista deve observar que utilizar os métodos e técnicas de outras disciplinas imbrica, muitas vezes sem a consciência necessária, conceitos e teorias que estão contidos nessas disciplinas. No caso especifico das ditas doenças tropicais (hoje negligenciadas) endêmicas ou epidêmicas, os conhecimentos sobre as elas foram (e continuam sendo) manipuladas pelos países centrais para justificar o seu entendimento e suas formas de conexão com o problema do colonialismo, subdesenvolvimento e pobreza na maior parte do planeta. Ao não considerar esses aspectos, os estudos sobre tais doenças ficam limitados ao contexto em que são produzidas, perdendo-se a possibilidade de integrá-los a uma perspectiva mais abrangente de entender as doenças como parte de trajetórias históricas que extrapolam os contextos específicos em que ocorrem 12.