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A leucemia mielóide aguda após transplante renal: um relato de caso e revisão da literatura

A leucemia mielóide aguda após transplante renal: um relato de caso e revisão da literatura

Autores:

Francesca Cardarelli,
Vanesa Bijol,
Anil Chandraker,
Cindy Varga,
Leonardo V. Riella

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160072

Introdução

Após transplante de órgãos sólidos, uma incidência aumentada de malignidade foi relatada em comparação com a população em geral. Com efeito, malignidade é a terceira causa de óbito em receptores de transplantes de órgãos sólidos.1-4 A incidência e a prevalência de câncer em pacientes transplantados elevaram-se nos últimos 10 anos, em parte por conta da idade mais avançada dos receptores e do uso de imunossupressores mais potentes.3 Portanto, compreender as diferentes facetas do câncer após transplante renal e a manifestação precoce de sinais e sintomas tornou-se fator essencial no cuidado a longo prazo dos receptores de transplante.

O aumento da incidência de câncer na população transplantada parece ser um processo multifatorial, envolvendo componentes genéticos, imunológicos, ambientais e, em alguns casos, virais. Os receptores de transplante têm risco aumentado apenas para certos tipos de neoplasias malignas. Por exemplo, as taxas de câncer de mama e próstata não se elevam significativamente após o transplante, enquanto que linfoma e tumores de pele são até 30 vezes mais comuns em indivíduos transplantados.4-6 Embora a leucemia represente uma pequena porcentagem dos tumores não-cutâneos pós-transplante, sua incidência em transplantados é cinco vezes maior do que na população geral.5

Dentre as leucemias, a leucemia mieloide aguda (LMA) é responsável por 43% dos casos de leucemia pós-transplante.7 Em função da mortalidade significativa das neoplasias malignas pós-transplante, o diagnóstico e o tratamento precoces são críticos para a melhora da sobrevida dos receptores de transplante. Neste estudo apresentamos um relato de caso e uma revisão bibliográfica sobre LMA após transplante.

Relato de caso

Histórico clínico e dados laboratoriais iniciais

Um paciente do sexo masculino de 33 anos de idade com histórico de doença renal terminal por glomeruloesclerose segmentar focal vinha sendo tratado unicamente com corticoterapia até ser submetido a um transplante renal de doador vivo não-parente em 2004 após progressiva deterioração de sua função renal. O paciente tinha um anticorpo reativo ao painel (ARP) de zero.

À época do transplante, a terapia imunossupressora incluía indução com timoglobulina, acompanhada de tacrolimus, micofenolato mofetil e manutenção com prednisona. Apesar da ausência de hipotensão, rejeição ou complicações cirúrgicas, a função do aloenxerto do paciente nunca melhorou para além de uma creatinina de 2 mg/dL. Seis meses após o transplante foi realizada uma biópsia, demonstrando toxicidade por inibidor da calcineurina.

Tacrolimus foi então substituído por sirolimus. A prednisona foi interrompida vários meses após o transplante devido ao desenvolvimento de acne grave. A creatinina estabilizou a 2,5 mg/dl durante os oito anos seguintes, período em que o paciente foi acompanhado em outro centro de transplantes.

Em 2013, nove anos após o transplante renal, o paciente compareceu ao hospital queixando-se de febre, calafrios e dor oral do lado esquerdo. A sua temperatura estava em 39,2º C, a pressão arterial em 162/102 mm Hg e a frequência cardíaca em 133 batimentos por minuto. Notou-se ao exame físico que o paciente apresentava uma pequena área de induração na mucosa bucal consistente com úlcera aftosa e eritema facial sugestivo de celulite. Não foram detectadas linfadenopatia ou esplenomegalia.

À época, os medicamentos do paciente incluíam sirolimus, micofenolato mofetil e metoprolol. O exame de sangue apresentou contagem de leucócitos de 1400/µL (35% de neutrófilos, 44% de linfócitos, 8% de monócitos, 13% de linfócitos atípicos), hemoglobina de 9,6 g/dL e contagem de plaquetas de 111.000/µL. O esfregaço de sangue periférico foi significativo apenas para a presença de alguns linfócitos atípicos. A função do aloenxerto renal piorou com uma creatinina sérica de 4 mg/dL. O nível de sirolimus estava em 3,5 mg/mL.

O sedimento urinário foi significativo para proteínas 2+ e traços de sangue de com poucas hemácias não-dismórficas. A ultrassonografia mostrou um aloenxerto renal de 13 cm com índices resistivos normais; múltiplos cistos parapiélicos e um cisto cortical.

A propedêutica infecciosa do paciente foi negativa, apesar das várias culturas de sangue e urina e extensos estudos para etiologias virais, incluindo citomegalovírus, adenovírus, HTLV-1 e vírus Epstein-Barr. A creatinina sérica do paciente permaneceu elevada mesmo após hidratação endovenosa. Anticorpos contra antígeno leucocitário humano (HLA) classe I e anticorpos específicos contra o doador (DSA) de classe II foram detectados por ensaio de fase sólida de antígeno único. Biópsias de medula óssea e renal foram realizadas para investigar anomalias hematológicas e piora da função renal, respectivamente.

Aspirado e biópsia de medula óssea

A biópsia da medula óssea demonstrou uma medula normocelular com manifestações hemorrágicas e 50% de gordura. A imunocoloração para CD34 revelou que 25% das células apresentavam-se na forma de blastos (Figura 1). Os elementos mieloides estavam moderada e proporcionalmente aumentados e exibiam maturação, mas frequentemente incluíam formas imaturas. O aspirado de medula óssea confirmou a presença de 28% de blastos.

Figura 1 Biopsia da medula óssea, imagens representativas; (A) Aproximadamente 25% da celularidade é composta de células de tamanho pequeno a intermediário com núcleos irregulares e pequenas quantidades de citoplasma, consistentes com formas de blastos que ocorrem isoladamente e em pequenos aglomerados. A lesão foi focal e a figura representa uma área mais acometida. (H&E, 200x). (B) Imunocoloração para CD34 destaca aproximadamente 25% da celularidade. 

A citometria de fluxo revelou uma população de células imaturas positivas para CD45, CD34, HLA-DR, CD13, CD117, CD15 e negativas para CD33 e outros marcadores da linhagem linfoide B e T e monocítica. Os resultados gerais apontaram para acometimento por LMA. A citogenética não revelou aberrações, com teste FISH normal. Diagnósticos moleculares em sangue periférico revelaram mutação no KRAS (p.G12D), identificada em aproximadamente 3-10% dos casos de LMA.

Biópsia renal

A peça biopsiada do aloenxerto continha 28 glomérulos e apresentava acentuado infiltrado inflamatório intersticial e edema, além de tubulite focal de leve a moderada. A imunofluorescência foi negativa para IgG, IgM, IgA e C1q. A coloração para C4d foi difusamente positiva nos capilares peritubulares por microscopia de imunofluorescência.

Houve também alterações crônicas moderadamente avançadas do parênquima, com glomerulopatia grave após o transplante, glomeruloesclerose global moderada, atrofia tubular e fibrose intersticial, além de esclerose arterial e arteriolar grave. Colorações para CD3, CD20, CD34 e C-kit foram realizadas para ajudar a avaliar a natureza do infiltrado.

O infiltrado era rico em linfócitos T, com várias células MPO-positivas e células CD34-positivas dispersas (blastos), sugerindo envolvimento por leucemia mieloide. Outras células pareciam ser de natureza reativa, provavelmente um componente de rejeição. Em geral, os achados rejeição mediada por anticorpos (RMA) crônica com componente celular moderado representado por um misto de infiltrados inflamatórios e leucêmicos (Figura 2).

Figura 2 Microscopia óptica da biópsia renal, imagens representativas; (A) Glomérulo com expansão mesangial e remodelação e espessamento da parede capilar, consistente com glomerulopatia de transplante (H&E, 200X). Além disso, observa-se infiltrado inflamatório focal, melhor visualizado em (B), com infiltrado misto com grande presença de eosinófilos, linfócitos e células inflamatórias atípicas (H&E, 400X). (C) A coloração de C4d é positiva circunferencialmente ao longo dos capilares peritubulares (C4d, coloração de imunoperoxidase, 400X) (D) As formas de blastos positivas para CD34 são vistas frequentemente no infiltrado intersticial (CD34, coloração de imunoperoxidase, 400X). 

Diagnóstico

As características morfológicas e imunofenotípicas da medula óssea eram condizentes com envolvimento por LMA com maturação. Com base na positividade para C4d da biópsia renal e na presença de DSA circulante, o paciente também teve rejeição do aloenxerto mediada por anticorpos.

Seguimento clínico

Após a aplicação de antibioticoterapia por suspeita de celulite facial, o paciente iniciou quimioterapia com três dias de daunorrubicina 60 mg/m2 e sete dias de citarabina 100 mg/m2.

Dez dias após a biópsia do aloenxerto renal, o paciente desenvolveu dor aguda sobre o local do aloenxerto, coincidindo com trombocitopenia de 10.000/µL. Foi repetida a ultrassonografia renal, seguida de TC abdominal, revelando um novo grande hematoma subcapsular no aloenxerto (Figura 3).

Figura 3 Hematoma subcapsular após biópsia renal. Tomografia computadorizada abdominal com rim demarcado em vermelho (A) e ultrassonografia renal com Doppler (B) demonstrando hematoma subcapsular e fluxo sanguíneo mínimo no córtex de rim comprimido. 

Esta coleção compressiva de sangue reduziu significativamente a perfusão renal e levou a uma maior deterioração da função renal do paciente. Devido à persistência da trombocitopenia e à preocupação com possíveis hemorragias adicionais, foi adotada uma abordagem expectante com transfusões de plaquetas e hemácias.

Fora essas questões, o paciente respondeu bem à quimioterapia. A biópsia de medula óssea 30 dias pós-tratamento demonstrou menos de 5% de blastos, achado condizente com remissão completa. Devido à função renal reduzida, consolidação com daunorrubicina 45 mg/m2 por dois dias e citarabina 100 mg/m2 durante 5 dias foi administrada além do tratamento padrão com citarabina em dosagem elevada.

Um segundo ciclo de consolidação foi administrado após a recuperação da contagem, utilizando, contudo, uma dose mais elevada de daunorrubicina de 60 mg/m2. Após um ano em remissão, o paciente sofreu uma recaída de LMA e submeteu-se a dez dias de decitabina, o que o levou a uma segunda remissão. O paciente foi então colocado em manutenção de longo prazo com decitabina. Foi considerada a possibilidade de se executar um transplante duplo de rim e medula óssea, mas seu fraco status funcional representava uma limitação significativa.

Discussão

A população pós-transplante apresenta incidência aumentada de malignidade ao longo do tempo. Além disso, Hall et al.3 relataram uma maior incidência cumulativa de malignidades nos transplantes realizados mais recentemente (2000-2008) em relação à era anterior (1987-1999). Esse achado pode ser atribuído ao aumento da expectativa de vida da população transplantada, além do uso de imunossupressores mais potentes nos últimos anos. Atualmente, malignidade é a terceira, segunda e quarta causas de morte em receptores de transplante de rim, fígado e pulmão, respectivamente, após cinco anos do transplante.3

Algumas das neoplasias malignas mais comumente diagnosticadas incluem linfoma, câncer de pele não-melanoma, sarcoma de Kaposi, câncer renal, geniturinário, oral, pulmonar (especialmente em receptores de transplante de pulmão) e hepático (em pacientes de transplante de fígado). Numa meta-análise recente de cinco estudos populacionais, Vajdic e van Leeuwen demonstraram que 23 dos 28 tipos de neoplasias examinadas apresentavam incidência aumentada em receptores de transplante em comparação com a população geral.8

Embora a leucemia não esteja entre as neoplasias malignas mais comuns após o transplante de órgãos sólidos, sua incidência parece estar aumentando.9 A LMA é causada pela proliferação clonal de precursores mieloides, resultando no acúmulo de formas imaturas de blastos na medula óssea e consequentemente um declínio na produção de outras linhagens celulares maduras.

As manifestações mais comuns de LMA se devem a complicações da pancitopenia, que incluem fadiga, infecções secundárias e sangramento. Citopenias não são incomuns na população transplantada de órgãos e podem se dever a medicamentos ou infecções virais. Como resultado, o diagnóstico de LMA pode ser inicialmente desconsiderado ou perdido.

O exame de esfregaço de sangue periférico deve ser pedido quando o paciente transplantado apresenta citopenia. Os painéis de citometria de fluxo específicos para leucemia (caso os blastos se apresentem perifericamente) ou linfoma também devem ser considerados. O diagnóstico deve ser confirmado por biópsia da medula óssea. Os critérios da OMS exigem a presença de mais de 20% de mieloblastos na medula óssea para o diagnóstico de LMA.

Os regimes de tratamento mais comuns incluem a combinação de uma antraciclina (daunorrubicina ou idarrubicina) com citarabina endovenosa. Os benefícios do transplante alogênico de células-tronco hematopoiéticas em regime de consolidação para AML foram bem descritos em pacientes com baixos níveis de marcadores moleculares ou citogenética de alto risco.10 Infelizmente, a transição deste paciente para hemodiálise devido à falência do enxerto o impediu de receber um transplante alogênico de medula óssea. Foi considerada a possibilidade de se realizar um transplante duplo de rins e células-tronco, mas tal opção não se concretizou.

Rashidi e Fisher revisaram sistematicamente 51 relatos de caso publicados sobre LMA pós-transplante.11,12 Destes pacientes, 23 eram receptores de transplante renal, 20 de transplante hepático, seis de transplante cardíaco e dois de transplante de pulmão. O tempo médio entre o transplante e o desenvolvimento de LMA foi de 3,8 anos, e mais de 70% dos casos ocorreram nos primeiros cinco anos após o transplante.

O nosso é um dos raros casos em que a LMA foi observada após mais de cinco anos do transplante. Outra diferença entre nosso paciente e a maioria dos pacientes no estudo de Rashidi é que, apesar da falha do transplante renal, nosso paciente ainda está vivo passados mais de dois anos do diagnóstico de LMA, enquanto no estudo de Rashidi a sobrevida global mediana foi de apenas três meses.11

Acredita-se que o uso de agentes imunossupressores seja o principal responsável pelo desenvolvimento de câncer em receptores de transplantes de órgãos sólidos. A imunodeficiência leva a uma redução da resposta imune contra as células malignas. Uma fisiopatologia semelhante também foi descrita em pacientes infectados por HIV, que apresentam maior risco de desenvolver câncer em relação à população geral.13

Se a imunodeficiência aumenta o risco de malignidade, fica evidente que quanto maior a imunossupressão, maiores as chances de desenvolver neoplasias malignas. O estudo de Gale e Opelz14 corrobora este conceito abordando especificamente o risco de desenvolvimento de LMA.

Em seu estudo, os dados de mais de 200.000 pacientes de transplante renal e mais de 30.000 receptores de transplante cardíaco foram analisados para risco de LMA em comparação a controles pareados de registros de câncer. Tanto os receptores de transplantes renais como os de transplantes cardíacos apresentaram maior incidência de LMA, sendo maior o risco entre os pacientes de transplante cardíaco (taxa de incidência normalizada de 5,1) em relação aos pacientes de transplante renal (taxa de incidência normalizada de 1,9).

A imunossupressão mais potente administrada para receptores de transplante cardíaco em relação a receptores renais corrobora a associação entre aumento da incidência de LMA e imunossupressão mais intensa.14

Uma análise retrospectiva limitada de receptores de transplantes do Brigham and Women's Hospital e do Massachusetts General Hospital realizada entre 2000-2014 identificou 21 casos de leucemia entre 2.403 receptores renais, correspondendo a uma incidência de 1,2% em 10 anos.

Apesar de transplantes hepáticos apresentarem incidência semelhante (1,5%), os pacientes de transplante cardíaco e de pulmão tiveram incidências mais elevadas (1,9% e 4,2%, respectivamente), sugerindo também uma possível associação entre desenvolvimento de LMA e maior intensidade de imunossupressão (dados pessoais não publicados). Além disso, medicamentos, independentemente de suas propriedades imunossupressoras, podem contribuir para o risco de malignidade pós-transplante. Sabemos que medicamentos que induzem dano ao DNA podem elevar a taxa de malignidades relacionadas ao tratamento.15

Offman et al.9 relataram presença de instabilidade de microssatélites em LMA relacionada a transplante, fator diagnóstico para defeito no reparo de pareamento errôneo de DNA. Também foi sugerido que a azatioprina pode contribuir para o desenvolvimento de LMA através da proliferação do reparo de pareamento errôneo de DNA nas células mieloides anômalas resistentes à azatioprina.

Naturalmente, nem todos os pacientes expostos a esta classe de medicamentos irão desenvolver uma neoplasia. Tal observação provavelmente indica uma susceptibilidade genética subjacente e/ou um evento adquirido,15 que pode predispor a polimorfismos no metabolismo destes medicamentos. O paciente do nosso relato não foi exposto a agentes alquilantes, como a ciclofosfamida, nem ao antimetabólito azatioprina.

O uso de inibidores da mTOR na LMA está sob investigação. Embora existam estudos preliminares sugerindo que os inibidores da mTOR possam trazer efeitos benéficos se somados à terapia de indução convencional,16,17 o sirolimus foi aparentemente incapaz de barrar o desenvolvimento de LMA em nosso paciente.

Um fator de confusão no histórico do nosso paciente foi a exposição prévia a timoglobulina. Embora tenha havido tentativas para determinar as diferentes susceptibilidades ao câncer com diferentes agentes imunossupressores, não houve diferenças estatisticamente significativas claramente demonstradas em relação ao tipo de imunossupressão e LMA.18-21

As infecções virais são possíveis fatores contribuintes para o desenvolvimento de neoplasias malignas após transplante. Em uma metanálise, a maioria dos tumores observados em pacientes transplantados apresentava causa infecciosa conhecida ou possível.8 Associações entre vírus Epstein-Barr e linfoma; herpes vírus humano 8 e sarcoma de Kaposi; e papilomavírus humano e tumores anogenitais/orofaríngeos foram bem descritas. Até a presente data, nenhum vírus foi associado ao desenvolvimento de LMA.

Curiosamente, parece que para algumas malignidades mediadas por vírus um estado imunossupressor subjacente é necessário. Este efeito foi sugerido por van Leeuwen et al.,22 num estudo em que foram analisados dados de receptores de transplante renal do Registro de Diálise e Transplantes de Austrália e Nova Zelândia. Estes pacientes foram seguidos a partir da redução da imunossupressão após seu retorno à diálise.

Os autores observaram que o efeito da imunossupressão sobre o risco de malignidade foi reversível para a maioria dos tumores associados a etiologia infecciosa.22 No estudo de van Leeuwen,22 a incidência de leucemia permaneceu elevada apesar do retorno à diálise e da redução da dosagem dos agentes imunossupressores, enquanto os achados relatados por Offman corroboram a associação entre LMA e imunossupressão mais intensa.9

Em pacientes com doença renal terminal, é razoável considerar o transplante duplo de rins e medula óssea. Embora esta opção não esteja amplamente disponível, seus benefícios para outras patologias hematológicas tais como o mieloma múltiplo começam a ser discutidos.

Spitzer et al.23 descreveram o seguimento por mais de 12 anos de sete pacientes com mieloma múltiplo e doença renal terminal tratados com transplante duplo de medula óssea e rim com compatibilidade HLA. Neste relato, todos os pacientes foram submetidos a um regime de condicionamento, que consistiu de ciclofosfamida, globulina antitimocítica e irradiação do timo.

Os pacientes continuaram no regime com ciclosporina após o transplante, que foi interrompido 73 dias após o procedimento. Quatro pacientes não apresentaram evidência de mieloma após 4-12 anos de seguimento, enquanto cinco tinham função renal normal ou quase normal. Destes, três estavam fora da imunossupressão e dois retomaram o tratamento com imunossupressores após desenvolver doença do enxerto contra o hospedeiro.

Este pequeno estudo piloto sugere que o transplante duplo de medula óssea e rins com compatibilidade HLA pode resultar em efeito prolongado anti-mieloma e tolerância ao aloenxerto renal.23 Mais pesquisas e experiências clínicas são necessárias para compreender se o transplante duplo de medula óssea e rins é benéfico para outras neoplasias malignas hematológicas como a LMA.

Finalmente, a biópsia do transplante renal de nosso paciente mostrou RMA crônica ativa, caracterizada por dano endotelial crônico (ex.: glomerulopatia após transplante) na presença de DSA circulante e evidências de interação entre anticorpos e endotélio (ex.: coloração de capilares peritubulares por C4d).24

É difícil entender por que tanto a LMA, geralmente associada a imunossupressão intensa, como a RMA crônica, geralmente associada a má adesão ao regime imunossupressor, ocorreram no mesmo paciente. Não podemos excluir a hipótese de que a LMA possa ter levado à ativação da imunidade inata com expressão aumentada do antígeno HLA e reduzido o limiar de ativação imunológica.

Em conclusão, apresentamos um caso de LMA após transplante renal em um paciente com febre, pancitopenia e disfunção aguda do enxerto. Para pacientes transplantados com pancitopenia nova, o diagnóstico diferencial deve incluir neoplasias malignas hematológicas. Diagnóstico e tratamento em tempo hábil são fundamentais para um bom desfecho da leucemia após transplante de órgãos sólidos.

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