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A Medicalização da Vida como estratégia de biopolítica

A Medicalização da Vida como estratégia de biopolítica

Autores:

Ana Maria Canesqui

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.6 Rio de Janeiro jun. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015206.13022014

A medicalização da vida desperta reflexões das ciências sociais e humanas, sob múltiplos olhares. Alguns focam os efeitos e os impactos dos saberes, técnicas e intervenções da medicina sobre a normalização das vidas e das sociedades, sem se restringirem aos impactos negativos apenas, à medida que incidem sobre as condições de saúde individuais e coletivas. Na coletânea resenhada, a biopolítica, a ética e a medicalização da vida foram abordadas por cientistas sociais (filósofos, antropólogos e sociólogos), assistentes sociais e pesquisadores das ciências da saúde (médicos, enfermeiros e nutricionistas).

O tema derivou do Simpósio Biopolítica e Medicalização da Vida, realizado em 2012 pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Os oito capítulos oferecem ao leitor a diversidade do conceito de biopolítica, considerando Foucault e os filósofos contemporâneos Giorgio Agambem e Roberto Exposito; os problemas médicos e políticos sobre a medicalização da vida, a loucura, as classificações psiquiátricas de sofrimentos, os transtornos psíquicos e as doenças; os experimentos científicos em torno da sífilis e os discursos sobre o risco e a doação de órgãos.

O conceito de medicalização, revisto anteriormente por Tesser1, abarca o crescimento do número de hospitais, indústrias, laboratórios e profissionais médicos; a maior produção, variedade e distribuição de medicamentos; a incorporação de temas pela racionalidade biomédica; o controle dos indivíduos através da medicina; as novas técnicas terapêuticas e a incorporação de aspectos da condição humana (social, econômica e existencial) aos diagnósticos, cura, terapêutica e patologias médicas. O autor foca as contribuições de Foucault, de Friedson e Illich, suas divergências e convergências sobre a medicalização, desde o nascimento da medicina moderna à legitimação da corporação médica e sua associação com o Estado e a extensão e invasão da racionalidade biomédica em todos os campos da sociedade.

A coletânea centra-se na biopolítica e medicalização da vida que é o segundo polo do bipoder, posto por Foucault sobre os controles reguladores, como a bipolítica da população, atingindo as espécies de corpos e o corpo imbuídos nos mecanismos da vida: nascimento, morbidade, mortalidade, longevidade2. A unificação, no século XIX, dos dois polos do biopoder de Foucault (o da anátomo-política do corpo humano, que maximiza suas forças e o integra os sistemas eficientes, e o segundo, acima referido) em grandes tecnologias de poder acirram as disputas políticas contra os controles, reivindicando o direito à vida, ao próprio corpo, à saúde e à satisfação de necessidades humanas.

Cada capítulo traz contribuições originais sem descartar os referenciais clássicos, introduzindo novas reflexões. A medicalização da loucura e das classificações psiquiátricas ocupa três capítulos, comentados, inicialmente, pela similaridade temática e não obedecendo a ordenação dos capítulos, posta pelos organizadores da coletânea. O primeiro, assinado por Angel Martines-Hernáez da Universidade de Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha, intitulado Fora de Cena: a Loucura, o Obsceno e o Senso Comum associa a loucura na Europa a duas práticas: o trânsito e o confinamento que não resolvem o problema errante da loucura.

A mobilidade da loucura não foi solucionada com os movimentos de desospitalização e desinstitucionalização à medida que ela continua impertinente socialmente e obscena, isto é, “fora de cena”. Reconstituindo a história de vida de Babu, um paciente psicótico crônico de Barcelona, habitante de um residencial terapêutico, o autor mostra sua experiência de vida e com o adoecimento e a ação dos dispositivos assistenciais e da gestão estigmatizante dos submetidos aos sistemas de especialistas que os tratam para minimizar seus sofrimentos.

Myriam Raquel Mitjavila (socióloga) e Priscila Gomes Mathes (assistente social) no sétimo capítulo sobre A Psiquiatria e a Medicalização dos Anormais: o Papel da Noção de Transtorno de Personalidade Antissocial refletem sobre a associação da loucura com a periculosidade; as ideias de normal/anormal e a noção imprecisa de “transtorno” e seus tipos, usados na Clínica e na Psiquiatria.

A Psiquiatria, no decorrer de sua história, ocupou-se da administrar os comportamentos ameaçadores à ordem social. Exerceu o controle individual e social sobre os comportamentos indesejáveis, no contexto da modernidade tardia, medicalizando as condutas, sofrimentos e desvios, desde o século XIX. Os diferentes “transtornos” são novas categorias classificatórias, criadas nos últimos trinta anos pela Psiquiatria, evidenciando a continuidade da avaliação dos comportamentos e práticas ameaçadores da vida social e cultural.

Sandra Caponi, filósofa, no oitavo capítulo sobre Classificar e Medicar: a gestão Biopolítica dos Sofrimentos Psíquicos usa o conceito de biopolítica de Foucault não, somente, como estratégia e tecnologia de governo dos povos colonizados, mas na sua relação positiva com a vida que maximiza a força e o equilíbrio das populações ou as fontes de degradação da vida. Reconstitui este conceito e o de bios como saber, adotando o de biopolítica como governo da vida.

Dessa forma, examina algumas classificações psiquiátricas, os transtornos e a identificação precoce dos comportamentos de risco, dos sofrimentos psíquicos “leves”, geradores de novas patologias, interferentes na construção do processo de reconstrução reflexiva das subjetividades, segundo Foucault.

Os filósofos César Candiotto e Thereza Salomé D‵Espíndula, no segundo capítulo sobre o Bipoder e Racismo Político: uma Análise a partir de Foucault abordam um caso clássico de experimentação em seres humanos que durou de 1932 a 1972, entre negros de baixa renda, adoecidos de sífilis, moradores do Estado de Alabama nos Estados Unidos. Denunciado o experimento por uma jornalista, após a sobrevivência de poucos sujeitos, o fato impactou a sociedade norte-americana, conduzindo o governo a indenizar seus participantes. Biopoder e racismo político se uniram, dominando os que não tiveram chance de resistir à experimentação farmacológica e política sem serem informados de sua enfermidade.

O filósofo Marcos Nalli no terceiro capítulo sobre A Abordagem Imunitária de Roberto Esposito: Biopolítica e Medicalização analisa a contribuição deste filósofo italiano, que entende a biopolítica como objeto da política, centrado na realização da potência inovadora da vida, traduzida em um conjunto de ações e estratégias, visando promover e proteger a vida e a subjetividade, conduzindo à tanatopolítica. Dos seus efeitos positivos e negativos resultam o enigma, solucionado por Espolito, com o “paradigma imunitário”, que à semelhança da dinâmica do sistema imunológico de um organismo enseja a “produção negativa da vida”3. O autor critica Foucault por não ter esclarecido o paradoxo da biopolítica.

No quarto capítulo, o filósofo argentino Edgard Castro discorre Acerca de la (no) Distinción entre Bios y Zoé discutindo bios e zoé. Endossa a proposta de Pierre Hardot sobre o intercâmbio de significação destas expressões e seus significados, associando o bios ao mundo humano como duração da vida e modo de viver. O autor agrega reflexões sobre o processo moderno de politização da vida, comparando os diferentes entendimentos de Arendt e Foucault e de Angabem e Foucault a respeito.

Luiz David Castiel, médico epidemiologista no quinto capítulo sobre a Utopia/Atopia-Alma Ata, Saúde Pública e o “Cazaquistão” discute a promoção da saúde e o autocuidado. Demarca as conferências internacionais e suas diretrizes para as políticas de atenção primária (Alma Ata), apontando as resistências e as utopias, ao lado das recomendações neoliberais do Banco Mundial sobre os pacotes mínimos de saúde.

Admite a fragilização destes ideais utópicos e suas faces políticas; a produção de atopias, ancorada no paradigma imunitário biopolítico de Esposito sobre as faces políticas e a formulação de novas utopias contemporâneas, propondo comportamentos saudáveis, a saúde perfeita, o controle e a manutenção à distância dos riscos. Admite dificuldades de organizar as coisas do viver suscitadas pelas utopias desejáveis e indesejáveis.

O último capítulo de Fernando Hellmann (doutorando em Saúde Coletiva), Mirelle Finkler (odontóloga) e Marta Verdi (enfermeira) sobre a Mercantilização de Órgãos Humanos para Transplantes Intervivos sob a Ótica da Bioética Social é menos, explicitamente, articulado ao tema da coletânea, embora toque a vida e a morte. Eles traçam o debate e os argumentos bioéticos, expostos na literatura sobre o assunto, como a proposta do monopsônico, um modelo ancorado no mercado ético do corpo humano, proposto pelo inglês John Haris, que reivindica um mercado de órgãos com apenas um adquirente centralizado, na Inglaterra, no National Health Service, administrado sob princípios éticos. Os argumentos e as propostas são recusados pelas autoras devido à possibilidade da interferência da lógica de mercado, os riscos e os efeitos da venda de órgãos sobre as populações pobres e a valorização ética da vida de uns e a desvalorização da vida de outros.

A coletânea interessa aos cientistas sociais, profissionais de saúde, alunos, pesquisadores em geral e ao público leigo, que nela encontrarão questões éticas, sociais e políticas da biopolítica sobre a medicalização da vida, um processo em expansão.

REFERÊNCIAS

1. Tesser CD. Medicalização Social e Atenção à Saúde no SUS. São Paulo: Editora Hucitec; 2010.
2. Rabinow P, Rose N. O conceito de biopoder hoje. Rev Política & Trabalho 2006; 24:27-57.
3. Esposito R. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70; 2010.