versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.3 Rio de Janeiro mar. 2020 Epub 06-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020253.15122018
This article describes the relationship of bereaved mothers with eating habits, based on the existential phenomenology considering that the family food space, led by the matriarch, can be disturbed due to the loss of a child. Interviews were conducted with fifteen women attending non-governmental bereavement support groups, aged between 40 and 61 years of age. Based on the analysis of the interviews, four thematic categories emerged revealing how grieving mothers behave: loss of appetite and pleasure in eating food; the action of sharing meals versus maternal mourning; the confrontation with the “empty chair”; and reactions due to the culinary act that symbolizes the memory of the child. The influence of grief on the relationship between mothers and food was verified in several ways, either in the loss of appetite, the body weight change or in the absence of the child in the social interactions during shared meals, which represent the challenges of the mother facing the “table that shrank,” calling for the mothers to find new meanings for eating. It is understood that the relationship of the bereaved mother with food is surrounded by conflicts that expose the mother to nutritional risks and demands support from professionals who are both sensitive and well informed about this condition.
Key words Death; Mourning; Maternal health; Eating habits
O processo do luto, a depender de suas particularidades - tipo, causa do óbito e vínculo afetivo estabelecido - e do mecanismo individual de enfrentamento, desencadeia uma série de reações no organismo que têm implicações na alimentação1. Não somente no aspecto fisiológico, mas também no comportamental, haja vista o luto ser uma vivência que aparece com uma forte exigência de ressignificação do mundo-da-vida, onde o que é perdido pelo enlutado não é apenas um ente querido, mas, também, formas próprias de ser-no-mundo2. Apesar de não ser possível generalizar essa vivência2, pois cada indivíduo é único em resposta de enfrentamento3,4, é possível teorizar tendências de comportamentos em circunstâncias especiais de luto.
O luto parental pela perda de filho é referenciado como de longo prazo, por ser um processo difícil e complexo que abala as formas de existência dos pais5,6. Diante dessa perda, a capacidade adaptativa dos pais ao estresse é insuficiente7, o que provoca reações cognitivas, comportamentais e afetivo-emocionais depressivas de média a longa duração6, com repercussões na vida pessoal8 implicando em mudanças nas suas atividades diárias, dentre as quais se insere a questão da ingestão alimentar1 e dos relacionamentos familiares e sociais.
Embora existam estudos na temática que circundam a morte de entes queridos e o luto, a questão alimentar carece de investigação e de conhecimentos. Entender a relação do enlutado com o alimento requer aprofundar os conhecimentos nessa área, com vista a abranger sentimentos, concepções e intenções que mais imperam no ato da ingestão. Pelo fato da morte de filho estar entre as piores perdas8, exigindo dos pais uma reestruturação profunda da conjuntura de vida2,5, salienta-se a escolha pelo sujeito mãe. Em situação de elevado estresse, como na vivência da morte de um filho, refletir sobre o luto materno a partir do ponto de vista da alimentação, descrevendo os aspectos que influenciam nas decisões maternas, os quais revelam o modo de ser no mundo da mãe enlutada, possibilita compreender o comportamento alimentar dessas mães.
A questão do(a) enlutado(a) vem sendo discutida no âmbito do estresse pós-traumático, o que vem evidenciando a vulnerabilidade no aspecto da saúde desses indivíduos. No entanto, esse grupo não tem sido ainda contemplado no estabelecimento das prioridades da saúde coletiva. Tal condição aponta a necessidade de maior investimento de estudos que ampliem o conhecimento e explicitem as demandas desses indivíduos. No campo da nutrição, presume-se que a relação do enlutado com a alimentação seja influenciada por emoções e representações próprias da condição do enlutamento, e que isso resulta em riscos nutricionais, impactando a saúde. Este conhecimento pode favorecer o direcionamento de ações mais especializadas na assistência alimentar em situação de luto. Ressalta-se ainda a carência na literatura científica de abordagens relacionadas aos fatores que afetam a alimentação deste grupo.
A partir do exposto, esta pesquisa orienta-se pela questão: como mães enlutadas estabelecem a relação com a alimentação? Assim, o objetivo do estudo foi descrever a relação das mães que vivenciaram experiências de luto por filho com a alimentação, concebendo que o enlutamento implica em mudanças no modo de ser e de estar no mundo.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, fenomenológica, ancorada na entrevista não diretiva9,10, devido à importância das enunciações verbais geradas com esta abordagem para análise compreensiva das múltiplas dimensões que o fenômeno do luto materno envolve. Dada a singularidade comportamental, emocional e situacional de cada mãe, a abordagem não diretiva permitiu aprofundar a significação do luto materno em associação com as atitudes alimentares, na concepção das mães. O estudo é parte de uma pesquisa maior sobre a nutrição e o comportamento alimentar de mães com vivência em perda de filho(a).
A perspectiva teórico-metodológica adotada se fundamenta na fenomenologia existencial Heideggeriana11 (detendo-nos aos conceitos existenciais de Dasein “ser-aí”: ser-no-mundo; ser-com-outro e ser-para-a-morte) para aproximar dos significados e sentidos pessoais da vivência das mães com o luto materno, compreendendo as suas intenções frente à alimentação e considerando como esse processo é vivido por elas, em seu estar-no-mundo para elas. Neste estudo, o Dasein indica o modo de ser presente da mãe na alimentação diante do luto materno, buscando-se problematizar os sentidos que as mães atribuíram a suas experiências vividas com o enlutamento delas, e em como esta vivência se constrói nas práticas alimentares em função do contexto das relações com outros filhos, cônjuge ou outros entes. Desta maneira, as concepções das mães sobre o maternar12 e a compreensão da relação entre mãe e filho foram observações ponderadas para se articular melhor o contexto em que a vivência do luto materno se insere na alimentação. Igualmente, o conceito de espaço social alimentar13 na dimensão do espaço do culinário - contemplando, especificamente, o ambiente onde se realizam as operações culinárias e as inter-relações entre os comensais - orientou a análise da relação das enlutadas com a alimentação.
O critério para o recrutamento das participantes foi ter vivenciado a perda de filho e frequentar Organizações Não Governamentais de apoio ao luto, sem vínculo religioso. Esta estratégia foi utilizada por favorecer chances de captação e adesão ao estudo; embora, nem todas as mães tenham aderido ao estudo por receio de remeter a fatos e emoções advindas dessa rememoração, especialmente aquelas no primeiro ano de luto. A definição da amostra deu-se pela constatação da saturação teórica14 - critério que interrompeu a captação de novas componentes, totalizando 15 mães. As mulheres que fizeram parte do estudo são provenientes de ONGs de Belo Horizonte e da Zona da Mata Mineira.
As entrevistas só foram feitas quando autorizadas e indicado o dia e o horário mais adequado, procurando realizá-las nas residências das mães e, especificamente, no ambiente de refeições. Por este ambiente ser o local dos atos, concomitante às narrativas, as mães descreveram, com mais propriedade, suas reações. As mães foram motivadas a falar a partir de questões abertas norteadoras que esclarecessem aspectos da ingestão e das atitudes alimentares após a morte de um filho. Observando as reações, registrando relatos e minimizando constrangimentos, foi possível aprofundar nas questões alimentares. As questões temáticas que subsidiaram este estudo foram: alterações na alimentação; mudanças nas atitudes vinculadas ao ato de alimentar-se; descrição das sensações de sede, fome, apetite e saciação; sentimentos e emoções vivenciados no ambiente de refeições; identificação de alimentos que simbolizam a memória do(a) filho(a); ausência do(a) filho(a) no momento das refeições; identificação de alterações das atitudes alimentares do início do luto para o atual momento. A entrevista foi norteada com a seguinte pergunta: Como foi para você lidar com a alimentação e a perda do(a) seu(sua) filho(a)? Concebendo que intervenções em entrevistas não diretivas devem apenas sugerir a temática15, assuntos não mencionados espontaneamente foram inseridos conforme explicitado: fale-me sobre a sua alimentação, após a morte do(a) seu(sua) filho(a); conte-me sobre suas atitudes frente às refeições; fale-me sobre os alimentos ou as preparações preferidas do(a) filho(a) falecido(a) - o que, em sua opinião, seria relevante eu ter o conhecimento.
As entrevistas foram transcritas de forma a respeitar as expressões das falas originais das mães e expressões não verbais do estado emocional, formatando-se a versão interpretativa que compõe este artigo. Codificaram-se as mães com a letra “M”, seguida do número atribuído a cada uma. O percurso da análise compreendeu a apreensão das ideias presentes, releitura das transcrições, agrupamento em unidades de significação de acordo com sua semelhança e interpretação das falas com base nas observações12,13 e na fenomenologia existencial11. Das falas individuais foram selecionados trechos que formam o corpus deste artigo e que contemplam as temáticas trazidas pelas mães. Apresentam-se os conteúdos mais mencionados, bem como as palavras que se destacaram em recorrências e nos contextos em que estas apareceram. Isso permitiu obter as semelhanças enunciativas sobre as questões temáticas das entrevistas, antes e após o luto. O antes e o depois foi uma estratégia de pesquisa posta no diálogo com vistas a realçar percepções de mudanças.
Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa que envolve seres humanos da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
Participaram do estudo quinze mães, com mediana de 48 anos (mínimo 40 anos e máximo 61 anos) e com vivência de perda do(a) filho(a) por tempo mínimo de um ano. A causa de óbito do(a) filho(a) foi por acidente de trânsito (79,9%), doença neurológica grave (6,7%); homicídio (6,7%) e suicídio (6,7%). Dentre as participantes, 73,33% tinham mais filhos (Tabela 1).
Tabela 1 Caracterização das mães entrevistadas e do(a) filho(a) falecido(a).
Codificação das Mães | Idade (anos) |
Filho(s) | Idade do(a) filho(a) falecido(a) (anos) |
Causa do Óbito* |
Tempo decorrido do falecimento do(a) filho(a) (anos) |
|
---|---|---|---|---|---|---|
Filho único | Outros filhos | |||||
M1 | 49 | Não | 1 | 21 | AT | 8 |
M2 | 61 | Não | 1 | 18 | AT | 17 |
M3 | 57 | Não | 4 | 27 | H | 5 |
M4 | 44 | Não | 1 | 17 | AT | 2 |
M5 | 42 | Sim | 0 | 13 | DGN | 5 |
M6 | 54 | Não | 3 | 14 | AT | 7 |
M7 | 54 | Não | 2 | 20 | AT | 1 |
M8 | 61 | Não | 3 | 27 | S | 5 |
M9 | 55 | Não | 1 | 18 | AT | 7 |
M10 | 43 | Não | 2 | 19 | AT | 2 |
M11 | 46 | Sim | 0 | 21 | AT | 4 |
M12 | 45 | Não | 3 | 22 | AT | 6 |
M13 | 40 | Sim | 0 | 18 | AT | 3 |
M14 | 42 | Sim | 0 | 11 | AT | 3 |
M15 | 48 | Não | 2 | 16 | AT | 9 |
*AT = acidente de trânsito. H = homicídio. DGN = doença neurológica grave. S = suicídio.
Os resultados foram organizados em quatro eixos temáticos que indicam como a mãe enlutada se comporta no contexto da alimentação. As enunciações revelaram atitudes alimentares delineadas pelo sofrimento materno, bem como elucidam a forma particular de enfrentamento da alimentação no luto.
Todas as depoentes foram unânimes em enfatizar que, nos meses subsequentes ao falecimento, houve a perda da sensação de fome e do prazer com o ato de alimentar-se.
Perante a ingestão alimentar, a sensação de estar com “um nó”; “algo parado”; “um bolo” ou “um novelo de fio enrolado” na garganta foi mencionada como algo que as impedia de querer comer. A sensação que eu tinha era de um bolo, eu não conseguia engolir. A sensação de aperto na garganta era muita (M2); não sentia vontade de comer. Havia uma sensação na garganta de algo parado (M4); a gente não sente fome. A boca fica ruim e dá um nó na garganta (M7); a gente perde o apetite, perde até o gosto. Você não consegue nem engolir, a garganta trava (M8); a boca fica seca e a garganta fica como se tivesse um novelo de fio enrolado... Entala... O alimento não desce fácil (M9). Diante dessas circunstâncias, alimentos ofertados na forma líquida foram os de mais fácil aceitação, como mencionado: eu tinha a informação de beber algo... Mas, comida, eu não conseguia comer (M2); beber é mais fácil. O líquido desce melhor (M13).
Apesar de se sentirem de alguma forma saciadas ou bloqueadas na garganta, as mães se impuseram a reação a esta condição, seja aceitando a oferta de alimentos providos por familiares ou por uma decisão própria de se alimentar, com base nas suas intenções. Como explicitado: o pilar da família está aqui [ela, a mãe]. Eu tinha que sobreviver... Alimentava, mesmo sem sentir fome (M3); [...] eu tenho um pequeno [outro filho] para cuidar (M4); um dos filhos me disse: [...] mas nós também somos seus filhos (M6); eu fingia estar comendo para os outros filhos (M15).
Porém, duas mães apresentaram indagações que expressam a dicotomia da morte do filho versus a vida da mãe. Elas se sentiam culpadas pelo fato de estarem vivas podendo usufruir da vida, especialmente, da culinária - meu filho morreu, por que eu tenho que comer? [...] Eu achava que era egoísmo da minha parte (M5); tenho, ainda, muita tristeza, por que eu como e ele não? [choro]. (M7).
Concomitante à descrição da ausência de fome, emergiram relatos sobre o peso corporal. Independente da não precisão da perda de peso corporal em semanas ou meses, identifica-se a condição física do emagrecimento que, na percepção das mães, foi intensa. Como pôde ser amplamente percebido nas falas: emagreci muito, em poucos meses (M1); eu tive uma perda de peso muito significativa (M2); no início, eu perdi muito peso. Depois de um tempo, adquiri peso (M3); nunca perdi tanto peso. Fiquei seca por dentro e por fora (M14). Na menção emagreci muito ou perdi muito há uma referência à rapidez com que a perda de peso corporal ocorreu. Outras frases se revelam, dando suporte a esta ocorrência: eu não queria comer (M3); quando estou triste, não consigo comer (M10). As afirmativas de não querer ou de não conseguir sinalizam que a ingestão alimentar da mãe diminuiu comparada ao que era antes da morte do filho. Somente uma depoente (M8) relatou que não chegou a perder peso, mas chegou a ter perda óssea dentária e a aumentar o peso depois de transcorridos dois anos do falecimento do filho. Não alimentava direito, mas não cheguei a perder peso... Depois, eu ganhei peso (M8). Um aumento expressivo de ganho de peso, depois de certo tempo de luto, também foi pronunciado por outras mães: depois, cheguei a adquirir muito peso... Buscava o que faltava na alimentação (M3); 20 Kg em cinco anos (M5).
As mães (M4, M5, M6, M13 e M15) ao relatarem a perda ponderal ou o ganho de peso expressaram a consciência de que suas atitudes alimentares resultaram em maus tratos ao seu corpo. Na fala morte influencia na alimentação, com isso, eu me maltratei (M5), observa-se a consciência das atitudes alimentares que se manifestaram após a morte do filho, cuja ênfase dada ao me maltratei faz referência aos comportamentos que, de início, resultaram na perda ponderal (cheguei a emagrecer) e depois, em um ganho de 20 kg. Especificamente para as mães M4, M13 e M15, a tomada dessa consciência procedeu-se pela constatação de suas imagens refletidas diante do espelho, o que gerava descontentamentos e incômodos, incluindo o não reconhecimento de si. [...] incomodava-me olhar no espelho (M4); emagreci tanto que não conseguia nem me olhar no espelho (M13); quando me vi no espelho, não me via. Aquela não era eu... Mas era eu... Consumida e destruída (M15). A menção ao desnutri naquele dia (M6) constitui-se num marco divisório entre o antes e o depois da morte do filho e indica a dimensão dos efeitos desta perda para essa mãe.
Nas vozes autorizadas das mães, o ato de comer juntos fomenta diversas lembranças que reavivam a memória do filho falecido, o que as motiva a preservarem esse convívio.
A presença de outros filhos favoreceu, de forma mais rápida, reações proativas das mães à mesa e ao ato de se alimentar, mesmo que em quantidades menores, para restabelecer o convívio da família nas refeições. [...] eu tinha uma perda, mas não podia impor neles mais perdas (M3); eu escolhi... Não podia deixar a dor deteriorar a minha família (M8); precisei compartilhar o almoço, por eles [outros filhos] (M15).
As mães de filho único falecido (M5, M11, M13 e M14) tiveram que se dar mais tempo para resgatar a sua presença à mesa de refeição. Para a M5 este foi o período em que a casa ficou doente e triste - a casa e as atividades intrínsecas a esta, incluindo o preparo da alimentação e as refeições, tornaram-se o reflexo do seu luto; em suas palavras: tudo ficava ruim. Para essas mães o tempo não aliviou o peso de sentar-se à mesa de refeições: refeições, para mim sozinha, são desafios todos os dias (M13); há dias ruins e dias melhores (M14).
As mães, com mais filhos ou não, apontaram seus desafios pessoais ante a sua decisão de permanecer à mesa de refeições: parece que está faltando presença [choro] (M1); prepara-se o alimento, põe na mesa e a pessoa que você ama não está lá [choro]. Eu cheguei a colocar o prato dele na mesa para ele (M7); difícil foi tirar o prato, o copo, os talheres dela [filha falecida] (M9); sentávamos de cabeça baixa, com lágrimas molhando o prato (M11); sempre haverá um a menos (M12).
A homenagem ao filho que partiu foi enunciada como motivo de resguardar as refeições compartilhadas: ele gostava de sentar à mesa. [...] faço isso por ele. É uma maneira de honrá-lo (M10).
Nesse enfrentamento, as mães conseguiram perceber que a vivência da perda de um filho levou a uma maior valorização do convívio alimentar. É lógico que isso fica muito mais valorizado depois que a mesa encolheu (M2); a morte me fez querer mais a família por perto nas refeições (M8); hoje, eu valorizo muito mais [...] cada refeição que podemos fazer juntos (M15).
O costume de manter a mesma disposição dos familiares à mesa de refeição foi evidenciado e favoreceu a referência nos diálogos ao local ocupado pelo(a) filho(a). As mães (M1, M3, M4; M7 a M10; M12 e M13) ao relatarem a disposição da família à mesa de refeição, fizeram menção à cadeira que antes era ocupada pelo filho que faleceu. A referência a essa cadeira desencadeou, nestas mães, sentimentos e emoções atrelados às falas, nas quais foram identificadas tensões emocionais transmitidas por sinais paralinguísticos (pausas; choro). As mães utilizaram palavras como forte, difícil, sofrível, angustiante e dor para descrever suas sensações à mesa, sendo que estas impressões foram proferidas com o reforço da intensidade (combinadas ao muito, bem ou mais). Explicitando a fala da M1: sempre que eu sento aqui, eu me lembro dela “filha falecida” ali “aponta para a cadeira”. “choro” . Às vezes eu disfarço... Olho para o outro lado “referindo-se a outra direção” . Eu tento disfarçar... Esconder a dor “choro”.
A presença e a ausência são uma constante nas falas das mães referente a ocupação da cadeira: Ele “filho falecido” gosta de ficar sentado neste cantinho (M4). Algumas mães relataram não suportar sentar à mesa de refeição, se a cadeira antes ocupada pelo(a) filho(a) falecido(a) estiver vazia ou se a mesma estiver posicionada à sua frente. A estratégia de se sentar à mesa, ocupando esta cadeira foi utilizada como recurso para não terem que se defrontar visualmente com a cadeira vazia: eu sento no lugar dele “choro” Eu sentando, não tenho que olhar para aquele lugar (M7).
As mães revelaram grandes dificuldades em lidar com os alimentos ou preparações prediletas do filho. Palavras como difícil, desafio, estressante e esforço foram utilizadas para enunciar as reações sentidas frente ao ato de preparar, de degustar ou de ingerir esses alimentos. Algumas falas se destacaram pela relevância com que as mães expressaram suas dificuldades: lidar com seus alimentos favoritos foi muito difícil. Gritar com a geladeira e com as escolhas dela “filha falecida” foi muito difícil. Lembro-me muito bem que a geladeira estava lotada de alimentos que ela gostava e eu tive de consumir alguma coisa. Degustar esses alimentos foi um desafio (M2); eu passei sete anos comprando o biscoito e o iogurte dele “filho falecido” . Chegava a perder (M6); é muito estressante lidar com os alimentos preferidos do filho que não está mais aqui (M14); comer esses alimentos foi um desafio, dia após dia (M15).
Esta restrição é maior para com os alimentos que eram adquiridos ou preparados para o filho falecido. Somente a bebida isotônica, ainda, eu não consigo beber. Ela “filha falecida” gostava muito (M2); era uma torta feita especialmente para esse filho. Depois da morte dele “filho” esta torta não voltou ao lar (M3); eu não consigo comer quindim. Ele “filho falecido” era apaixonado por esse doce (M7).
Com o uso das expressões aquilo e coisa, a narrativa ganha uma conotação de distanciamento. A M5 evitou mencionar os alimentos tidos como preferidos do filho único falecido, pronunciando aquilo ou coisa. A explicitação dos alimentos preferidos só ocorreu no momento em que essa mãe salienta o seu convívio com o filho: era bom o meu quiabo com [nome do filho]. Purê de batata, também, comia o meu, a consistência que eu usava. Não gosto de purê mais.
Para algumas mães, a preservação da culinária foi encarada como uma forma de reverenciar a memória daquele que partiu: eu acho que eu sinto assim... Uma forma de fazer homenagem a ela “filha falecida” (M1); hoje, é uma forma até de referência a “nome da filha” (M2); [...] é uma homenagem, fica mais gostoso preparar este arroz (M8); hoje, quando eu faço esse bolo, eu tento escutá-la “filha falecida” em minhas lembranças (M15).
Alimentos e culinárias de tributo ao filho falecido quando apreciados por outros filhos beneficiou a sua preservação nas refeições. Se a gente parar de fazer alguma coisa que ela “filha falecida” gostava, aí eu vou prejudicar o outro “filho” também (M1); por causa do pequeno “outro filho” eu não deixei muito ausente esses alimentos (M4); para atender ao pedido de uma filha eu fiz um dos alimentos prediletos dele “filho falecido” (M7); por causa dos outros filhos, eu corto a carne, tempero e faço os bifes, do mesmo jeito que eu fazia antes (M10); independente das minhas reações com a carne, a carne não chegou a ser excluída da alimentação da casa (M12).
Dentre os depoimentos, duas mães enunciaram a condição de aversão às carnes. Ambas tiveram limitações na ingestão, incluindo reações como presença de náuseas ao sentir o cheiro de carne (M10) ou só de visualizá-la (M12). Um cheiro que, para uma dessas mães (M10), remetia-se ao velório do filho: o cheiro da carne chegava a me dar náuseas. Era um cheiro ruim. Um cheiro que me lembrava ele [filho] morto no caixão.
No eixo temático ausência de fome e do prazer em se alimentar, as sensações evidenciadas pelas mães sinalizam uma experiência existencial construída na ruptura irreversível da relação física entre mãe e filho. Uma mudança que altera as maneiras de ser-no-mundo11 dessas mães, criando nas mesmas um desinteresse pelo mundo externo2 que, em articulação com a alimentação, repercute no desinteresse pela comida. Um tipo de “nó” ou de “bolo” resultante do desânimo, da tristeza, da dor da perda e da impotência para lidar com a finitude humana do filho, dentre outras reações afetivo-emocionais que se convergiram na sensação de estar com a garganta “bloqueada”. Dada a essas circunstâncias, o fato das mães preferirem alimentos líquidos sinaliza a necessidade de maior atenção com as preparações alimentares ofertadas aos enlutados nos dias subsequentes ao enterro, principalmente caso recusem a comer ou mencionem estar sem fome.
Nas falas das mães (M3, M4, M6 e M15) evidenciaram-se reações voltadas para a necessidade da mãe, em luto, demonstrar alguma postura de aceitação de alimentos diante do seu bloqueio com a fome. Por essas mães assumirem o papel de detentoras do cuidado familiar, há uma orientação intencional para com a sua postura de aceitar o alimento ou de fingir estar comendo. Na perspectiva relacional heideggeriana11, o cuidado é uma condição constituinte da existência, sendo que o cuidado aqui observado se remete ao modo de preocupação de fazer pelo outro16, considerando que a condição de aceitar comer ou de fingir estar comendo, restringiu-se, de início, ao contexto da necessidade de outros - filhos ou demais familiares. Seja pela questão do modo de cuidado16 ou do sentido da obrigação17 - eu tinha, eu tenho, eu precisei - o que impôs a elas a necessidade de reagir aceitando a alimentação, as mães expressaram que as suas reações, à época, foram necessárias.
No entanto, um sentimento de culpa ao comer foi expresso pelas mães M5 e M7, considerando que o filho falecido não mais se alimentará. Constituindo-se o alimento como fonte de sobrevivência, as indagações apresentadas por estas mães sinalizam conflitos pessoais vividos em direção à continuidade da vida que se encontra em descompasso com a morte do filho. Tais conflitos são sugestivos de que M5 e M7 se constituíram em um ser-com11 o filho morto, enquanto viventes no mundo enlutado, no qual a morte do filho prevalece a tudo. A adaptação de mães enlutadas à nova realidade alimentar perpassa pela autopercepção de estar no mundo-da-vida e, ao mesmo tempo, de existir-no-mundo enlutado materno. Essa nova condição existencial18 afeta a ingestão. A mãe, recém enlutada, precisa quebrar alguns paradigmas sobre o morrer e o viver, rompendo barreiras compreensivas em suas concepções, já que filhos morrem e a alimentação é essencial à vida. O estado melancólico das mães que perderam filhos fomenta diversas reações e indagações frente à necessidade das mesmas de terem que se alimentar, produzindo modificações em suas concepções de vida, de morte e no sentido que atribuem à alimentação. A perda do filho coloca as mães em estado melancólico; nos primeiros tempos, elas não querem sair da cama nem mesmo para comer ou tomar banho19. A morte do filho se contrapõe à experiência da maternidade, sendo que o sofrimento, o luto e a inanição são modos de estar com o filho, que, na disposição da angústia11 é o estar-lançado na morte.
As alterações de peso relatadas pelas mães coincidem com o esperado para essa situação, uma vez que uma perda de peso pode ocorrer em enlutados recentes1,20,21 e na angústia psicológica22. Por outro lado, o grau de ansiedade e persistência do estresse experimentado na perda do ente querido pode desencadear a compulsão alimentar1. Falas como buscava o que faltava na alimentação enunciam comportamentos de angustiante refúgio no alimento, por consequência à falta do filho. Mediante o reflexo das suas imagens, ou pela constatação das alterações no peso, as mães (M4, M5, M6, M13 e M15) reconheceram o seu modo de existir-no-mundo enlutado. Esse reconhecimento se deu ao perceberem o que fizeram ao lidar com a própria existência23, como procede nesta afirmativa: me maltratei.
O ser humano não existe num estado neutro11,23, diante da realidade da morte e da perda de um ente querido as pessoas podem ser afetadas em seu modo de ser. Assim, entende-se a ausência de fome e do prazer em se alimentar nas mães, já que a condição de não querer comer é um modo de ser em um mundo enlutado, modificado com a supressão do convívio com o filho.
No eixo temático o ato de compartilhar refeições versus o luto materno, o propósito das mães envolveu um lento e contínuo elaborar da dor da perda, do seu sofrimento e das suas emoções, para reassumir a função de ser a mãe dos demais filhos. As mães conceberam que o permanecer ensimesmadas, enclausurando-se no luto, poderia implicar em prejuízos maiores. Movidas por suas intenções, expressaram o seu modo de ser mais próprio e pessoal16. As escolhas feitas por elas, em momentos de pesar, sustentaram-se no seu modo de ser no mundo compartilhado23, o ser-com-outro11. Isso revela que, apesar do sofrimento pessoal, o maternar12 se configura em motivação para o enfrentamento do luto materno. O fato de se dedicar ao cuidado de outros filhos pode ser um fator protetor na reação à perda de um filho24. Já as mães de filho único falecido enunciaram sentir-se na condição de ser desfilhadas25. Diante da experiência existencial de um mundo11 com o filho único falecido, verifica-se que estas mães enfrentam desafios diários na prática da alimentação. A morte de um ente querido impõe ao outro a necessidade de reorientar o sistema alimentar pessoal26, enquanto que para as mães enlutadas sem outros filhos essa é uma reestruturação contínua.
As mães que podiam compartilhar refeições com outros filhos manifestaram a valorização do convívio familiar e, consequentemente, expressaram enfrentamento ao luto e maior capacidade de resiliência27. A adaptação das mães à condição de uma doença grave de filho e, ou, de sua morte, é caracterizada por processos individuais e interpessoais entre atores e parceiros de enfrentamentos28 em que a mesma atua como protagonista. Estando num mundo compartilhado11 as mães vivem o ser-com-a-família, fortalece a sua presença à mesa de refeição e desenvolve a sua capacidade de resiliência27.
Ante a decisão de permanecer à mesa de refeição, as mães expressaram seus temores mais pessoais. Conseguiram encontrar na família razão para lidar com a nova realidade alimentar à mesa, ainda que ameaçadas pelo desfecho real da morte de um filho. Dentre as razões que motivaram as mães a reagirem à perda, o sentar à mesa de refeição em companhia dos seus era uma estratégia de ajuste de situação familiar ao enfrentamento do luto, pela relevância das inter-relações entre os comensais, além de ser um encontro. Este espaço, para além de uma dimensão física, se configura uma experiência existencial, que se constituiu num cenário de atividades alimentares maternas de enfrentamento ao luto. Revela-se, então, a importância da dimensão do espaço do culinário13, quando do restabelecimento da enlutada à mesa de refeição. Esse espaço exigiu das mães ressignificar a dor da perda para reassumir suas formas de ser-no-mundo11 e ser-com-outro11.
Na percepção das mães, o ato de sentar à mesa de refeição é também uma homenagem ao filho falecido, demonstrando a permanência imagética deste no ambiente alimentar, mesmo depois da sua morte. Em função da ausência do filho, a mãe reedita, emocionalmente, suas características e atitudes5 e demonstra ter um vínculo significativo com seus filhos falecidos que continuam sendo pessoas presentes em suas vidas29. O existir-no-mundo enlutado significa trilhar um caminho para sobreviver à ausência de um ente amado30, encontrando novas formas de ser-no-mundo11,18. No modo referencial, esta homenagem é uma forma das mães preservarem o seu vínculo com o filho falecido, pois a relação vivida anteriormente não pode ser vivida novamente18. O ato de compartilhar as refeições representa, ao mesmo tempo, o fortalecimento das relações da mãe com seus entes e a construção imaginária de homenagear o filho falecido.
As mães, ao serem lançadas num mundo enlutado, e diante da tomada de consciência da fragilidade do existir, a qual as remete à consciência do ser-para-a-morte11, valorizaram, no tempo presente, a convivência no espaço alimentar com os seus entes. O ser-para-a-morte é a experiência existencial de que a morte e o morrer são iminentes a cada instante11. Assim, sendo a morte uma possibilidade cotidiana, as mães se projetaram em convivência nos momentos de refeições compartilhadas com a família.
No eixo temático o confronto com a cadeira vazia, os sentidos e os significados das falas nos revelam que, mesmo com o passar dos anos, a cadeira vazia continuou sendo um obstáculo enfrentado por mães. Diante do luto de filhos, a cadeira vazia representa muito, pois é no ato de posicionar-se à mesa que a família se confronta com o vazio da cadeira e com tudo o que ela simboliza enquanto presença e ausência1.
Dado que filho não é um objeto substituível, entende-se que o processo de desapego do filho falecido é algo bastante complexo19. Independente do tempo de morte, há uma presença da ausência do(a) filho(a) falecido(a) na dimensão do espaço do culinário13, que, de uma forma ou de outra, remete à ocupação de uma cadeira singular na mesa de refeição. A cadeira vazia é um símbolo que lembra às mães a ausência física do(a) filho(a) falecido(a), mas que marca a sua presença existencial11, conferindo às concepções extraídas dessa vivência lembranças emolduradas de uma família intacta.
No eixo temático a culinária que simboliza a memória do filho,percebe-se que na concepção materna, o luto por filho impõe desafios antes não experimentados perante os alimentos que compunham as refeições. Recordações que perpassam por afetos e sabores da comida, aguçando os dissabores que foram instituídos no processo da morte, da perda e do luto. Ao mesmo tempo, as falas das mães são reveladoras do valor conferido às preparações que se tornaram únicas por referenciar o(a) filho(a) falecido(a), sendo um fator que impõe dificuldades ainda maiores às mães neste resgate. Para enunciar a dimensão dos desafios enfrentados com esses alimentos, algumas dessas mães se expressaram de modo metafórico - gritar com a geladeira e com as escolhas dela foi muito difícil.
Embora as mães tenham apresentado limitações com um ou outro tipo de alimento, estavam dispostas a preservar os alimentos ou a culinária que simbolizam a presença de seus filhos mortos. A manutenção da culinária para a preservação da memória do(a) filho(a) é uma maneira de fazê-lo(a) presente à mesa de refeição. A menção a essa perpetuação da memória dos filhos surge também como uma tentativa de que o filho não seja esquecido pelos outros18. É preciso conceber que essas referências à memória do filho significam muito para essas mães. A menção a essas referências foi conjugada à valorização das refeições e das histórias alimentares em família, o que vincula a perpetuação da memória do(a) filho(a) ao convívio alimentar e, consequentemente, à presença do(a) mesmo(a) à mesa. A condição existencial da mãe em ser-com11 os demais filhos possibilitou a preservação da culinária que simbolizava a presença desses filhos falecidos.
A aversão às carnes define a singularidade do histórico alimentar de mães que choram seus filhos. A natureza do cadáver remete a algo que perdeu a vida11,16 - o odor da morte se converteu à morte do filho, representando o cessar desta vida. A deterioração de um corpo humano sem vida é a revelação da morte do outro, pois a morte se encarna na carne do cadáver31 e nos lembra que somos um corpo em carne.
A influência que o luto exerce na relação das mães com a alimentação foi evidenciada de diversas maneiras, seja na ausência de fome, na alteração do peso e na falta do(a) filho(a) nas refeições, representando os desafios da mãe perante uma “mesa que encolheu” e exigindo das mesmas novas significações frente à alimentação.
Essas mães justificaram as mudanças alimentares sucedidas ao luto pela representação do maternar, que é uma forma de ser-no-mundo e de ser-com-outro para restabelecer o convívio alimentar familiar, na concepção de mundo compartilhado. Apesar do luto ser uma experiência intransferível, compreender a mãe enlutada a partir do seu modo de ser na alimentação, após a perda de um filho, possibilita um diferente olhar sobre a alimentação no luto materno.
Na sua condição existencial de “ser-aí”, de presença, e de estar-no-mundo-enlutado, compreende-se que a relação da enlutada com a alimentação é permeada por conflitos que a expõe a riscos de desvios nutricionais, o que demanda apoio com profissionais sensíveis e esclarecidos sobre essa condição.
Mediante o entendimento da vulnerabilidade desse grupo e a necessidade de priorizá-lo nos estabelecimentos das políticas de saúde no país, é possível aprimorar a assistência proporcionada aos enlutados, incorporando esses conhecimentos nos cuidados relativos à alimentação. O luto tem influência, de maneira peculiar, no modo de ser das pessoas, com reflexos diretos na ingestão alimentar, e consequentemente, na saúde. Desta forma, a partir deste estudo, vislumbra-se a possibilidade de aprofundamento no conhecimento sobre comportamento alimentar de enlutados levando-se em consideração a causa do óbito e as situações de trauma por perda de entes queridos.
No que se refere às limitações do estudo, salienta-se a necessidade de estudos com mães em diferentes períodos de enfrentamento ao luto, o que pode contribuir para ampliar o conhecimento sobre as atitudes alimentares de mães com vivência em perda de filho(a) abrangendo as distintas fases do luto.