Compartilhar

A música como instrumento de cuidado transpessoal - percepções de indivíduos hospitalizados assistidos na extensão universitária

A música como instrumento de cuidado transpessoal - percepções de indivíduos hospitalizados assistidos na extensão universitária

Autores:

Emanuelle Caires Dias Araújo Nunes,
Fabiana Aguiar de Oliveira,
Juliana Xavier Pinheiro da Cunha,
Sabrina Oliveira Reis,
Gizelia da Gama Meira,
Regina Szylit

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.24 no.2 Rio de Janeiro 2020 Epub 13-Jan-2020

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0165

INTRODUÇÃO

A palavra “música” vem do grego mousiké, que significa arte e ciência de combinar os sons de modo agradável à audição.1 Este conceito se amplia na compreensão de que a música é parte do ser humano, um instrumento de união que agrega pessoas, famílias, costumes e culturas e que acalenta a alma, propiciando momentos de prazer e bem-estar.2

Além disso, a música estimula áreas do cérebro, como o sistema límbico - região responsável por ânimo, encorajamento, afetividade, emoções e comportamento social. Ao se escutar qualquer melodia, pode-se ter a sensação de bem-estar e prazer que, por sua vez, poderá promover mudanças físicas e psicológicas no indivíduo.3

Diversas situações, como medo, desânimo, ansiedade, preocupação, estresse e saudades, além dos agravantes físicos, podem acometer um sujeito durante o seu período de internamento. Por proporcionar serenidade e maior aceitação do tratamento e da hospitalização, a música é considerada um instrumento de efeito terapêutico não farmacológico.4

Neste sentido, ela é referida como musicoterapia; ou seja, o uso da música com o objetivo de alternar, aos incômodos físicos e psicológicos, a tranquilidade, o bem-estar e algum alívio da ansiedade,5 através da sua capacidade de afetar as emoções, as atitudes e os comportamentos geradores de uma atmosfera favorável à resiliência.6

O Agrupamento Multidisciplinar de Acolhimento (AMA) - ação de ensino-pesquisa-extensão ao cuidado que enfrenta o risco de morte hospitalar - possui, como um de seus objetivos, acolher as famílias com pessoas hospitalizadas em risco de morte a partir da práxis sistematizada do cuidado transpessoal-sistêmico. O projeto é formado por discentes dos cursos de enfermagem e psicologia da Universidade Federal da Bahia. Tem, como cenário de atuação, um hospital público do interior da Bahia. Entre as atividades desenvolvidas junto às famílias, está a Visita Musical inspirada no Cuidado Transpessoal, que visa o exercício do cuidado integral; ou seja, aquele capaz de alcançar o bem-estar físico, mental e espiritual do paciente e de sua família.

Esta iniciativa vem ao encontro do complexo contexto da hospitalização que envolve pacientes e familiares fragilizados física e emocionalmente, os quais, diante de uma adversidade, como a doença, enfrentam um novo processo de autoconhecimento, capaz de revelar estratégias de alívio da dor e ressignificação do momento vivido. A música, neste sentido, representa um importante dispositivo capaz de proporcionar alívio, auxiliando a evocar sentimentos e energia propícios ao otimismo e à esperança necessários nos momentos de hospitalização.7

Diversos estudos nacionais e internacionais indicam relevantes benefícios de se agregar música ao cuidado como: redução de estresse, ansiedade e dor; aumento da qualidade de vida de pacientes e familiares; melhora das relações interpessoais; e redução do estresse típico do ambiente hospitalar.3,8-10

Neste sentido, o cuidado musical se afina com a perspectiva do Cuidado Transpessoal, ao contrapor o modelo excessivamente centrado nas tecnologias que desprivilegiam o real sentido do cuidado. Frente a essa realidade, é de suma importância que, durante o cuidado em saúde, sejam adotados elementos criativos, como a música, otimizadores de uma postura humanizada, voltada ao olhar amoroso que, para além do físico, compreende a intersubjetividade do sujeito. O Cuidado Transpessoal de Watson almeja um modelo de cuidar caritas, capaz de apreciação mais profunda da complexidade e das experiências humanas, valorizando o cuidado do corpo-mente-alma da pessoa humana, alcançado a partir de imersões interiores em sua própria vida e do desenvolvimento de significados e respostas intersubjetivas para o cuidado, a cura, a enfermidade, o desespero, a doença e a morte.11-12

Salienta-se que existem muitas contribuições na literatura acerca do uso da música no contexto de saúde, mas a relevância deste estudo se mostra pela sua fundamentação teórica - o Cuidado Transpessoal e o contexto analítico a partir da extensão universitária, características pouco observadas em outras pesquisas encontradas nas bases Scielo, LILACS e PubMed, no recorte dos últimos cinco anos.

Deste modo, tem-se, como problema, a questão: “Qual o significado de cuidado percebido por pacientes hospitalizados após a experiência de Visita Musical realizada pelo projeto extensionista ‘Agrupamento Multidisciplinar de Acolhimento’?”.

A partir da pergunta norteadora, emerge como objetivo geral analisar a percepção de pacientes hospitalizados sobre o cuidado recebido por meio de uma visita musical extensionista, sob as lentes da Teoria do Cuidado Transpessoal. Conhecer a percepção de pacientes hospitalizados do cuidado recebido por meio da visita musical e relacionar o cuidado musical percebido através da visita musical com os pressupostos teóricos do Cuidado Transpessoal são objetivos específicos.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa, realizada em um hospital geral do interior da Bahia, especificamente nos seus setores de internamento médico-cirúrgicos, os quais possuem o total de 90 leitos. A pesquisa seguiu o referencial teórico da Teoria do Cuidado Humano de Watson, tratada, neste estudo, como Cuidado Transpessoal. Como referencial metodológico, adotou-se a Teoria das Representações Sociais que sustenta a técnica analítica escolhida. Tal referencial possui uma dimensão cognitiva, pois favorece uma experimentação do mundo e sobre o mundo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social, sendo uma maneira específica de compreender e comunicar o que se sabe. Nesse aspecto, a música é um fenômeno que contribui para essa comunicação social, para as trocas de mensagens linguísticas e não linguísticas entre os sujeitos e grupos, que buscam abstrair sentido a partir das interações sociais e introduzir no mundo ordem e percepções assumidas como significativas.13-14

A realização do estudo seguiu os procedimentos previstos na Resolução 466/12. A aprovação em Comitê de Ética em Pesquisa se deu mediante o Parecer 2.647.073, de maio de 2018, envolvendo 15 pacientes internados nos referidos setores. Os critérios de inclusão foram: ter o paciente recebido a visita musical do projeto AMA há, no máximo, 24 horas, possibilitando a memória recente dos sentimentos mobilizados; estar lúcido, orientado e com sua capacidade de verbalizar preservada. A seleção dos participantes foi de natureza não probabilística, pois a escolha foi feita por meio de métodos aleatórios, com escolha dos indivíduos mais acessíveis ao pesquisador, seguindo parâmetros de conveniência. A pesquisadora responsável pela coleta era integrante do projeto AMA, entretanto não participou da visita musical que seria referência para a coleta de dados. Assim, ela realizou as entrevistas no período de até 24 horas após a visita musical, trajada de maneira diferente em relação aos integrantes da trupe, a fim de desvincular a sua imagem da atividade a ser analisada. Tal entrevistadora possuía experiência com o método e o assunto do estudo, e abordou os pacientes que estavam acordados e sem queixas no momento. Após confirmar que o paciente recebera/participara da visita musical, a pesquisadora apresentava-lhe a pesquisa, convidando-o individualmente, através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a participar conforme fosse seu desejo pessoal. Os sujeitos anuentes assinaram o TCLE e foram entrevistados à beira-leito, sendo excluídos do convite ao estudo todos os pacientes internados ao lado de cada entrevistado, a fim de reduzir influências no seu discurso pela proximidade espacial entre eles. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas para a análise na íntegra. O total de entrevistas foi definido mediante saturação teórica dos dados.

A entrevista realizada foi do tipo semiestruturada, com as seguintes questões: “Como está sendo sua experiência de internamento aqui?”; “Como foi para você receber uma visita musical aqui?”; “O que você sentiu enquanto ouvia as músicas?”; e “O que significou este momento pra você?”.

A análise de dados foi feita através do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que é uma proposta de organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal fundamentada na Teoria das Representações Sociais, a qual endossa o sentido de discurso socialmente atribuído a um grupo de pessoas que possuem algo em comum, neste caso, a hospitalização. O DSC foi escolhido por organizar os dados de modo conciso, mas simultaneamente aprofundado, ao reunir o máximo de expressões dos sujeitos, de acordo com as ideias centrais ou as ancoragens identificadas no processo de análise. As ideias centrais (IC) são expressões linguísticas que descrevem, de maneira precisa, o sentido do depoimento ou um conjunto de depoimentos. A ancoragem (AC) é uma manifestação linguística explicita de uma dada ideologia ou crença do autor do discurso, que é usada para enquadrar uma situação específica. A IC e a AC funcionam como temas convergentes com a categorização das falas. As expressões-chave (ECH) são trechos do discurso destacadas, os quais são organizados de acordo com a IC ou a AC de referência, viabilizando a reunião de trechos afins, procedentes de sujeitos diferentes, os quais confluem em um único discurso, ajustado na primeira pessoa do singular, embora carregue expressões de múltiplos participantes. Chama-se Discurso do Sujeito Coletivo - DSC o discurso coerentemente arrumado.15

RESULTADOS

Os resultados desta pesquisa compreendem 3 eixos identificados como: Cuidado Musical na interface com o Cuidado Transpessoal; A música como elemento de resgate da esperança durante a hospitalização; e Para além da música - um encontro entre cuidado, arte e relações humanas.

EIXO 1: Cuidado Musical na interface com o Cuidado Transpessoal

IC 1: Corpo: a música minimiza os sintomas e melhora a percepção física

A música tem o sentido de trazer mais conforto, a todo o momento música é boa. O internamento tá sendo muito bom, porque o hospital e a equipe acolhem a gente muito bem e eu acho que seria melhor que a equipe trouxesse mais a música para o hospital, porque até alivia mais a dor (DSC 1).

IC 2: Mente: a música mobiliza esperança e bem-estar

A música é bom demais, levanta o astral! É chato estar aqui, mas com a música a gente sente uma vontade de viver maior. Eu gostei desse cantar, anima mais, alegra a gente, me senti assim tão bem, me fez esquecer os problemas, deu uma alegria, uma confiança, uma vontade de viver. Eu mesma tenho meses internada e é a primeira vez que eu estou vendo, e é uma distração tanto para os pacientes quanto para os acompanhantes, porque chega uma hora que você vai pensando coisas e aí não tem mais o que pensar, conversa e não tem mais o que conversar, e a música alivia a mente, distrai muito (DSC 2).

IC3: Alma: a música desperta bons sentimentos e a espiritualidade

Ah, música é vida, é alegria, é paz, tranquilidade e, ao mesmo tempo, dá uma vontade de chorar porque senti a presença de Deus, muito bom vivenciar isso. A música dá certo ânimo, você tá triste aí ouve a música e sente um alívio, alegra a alma, além de ter um significado muito forte por mexer com o coração, serve pra você refletir, lhe acalma, a música é tudo, né? Dá vontade de ouvir mais e mais (DSC 3).

Os DSC acima demonstram a relação feita pelos entrevistados com o cuidado transpessoal ao evocarem, em suas falas, o conforto sentido em relação ao corpo, à mente e à alma - elementos prezados pela teoria de Watson. Desta forma, os DSC evidenciam a importância da atividade musical dentro do ambiente hospitalar, sendo esta capaz de promover alívio da dor e conforto ao paciente e à sua família. Neste sentido, observa-se a valorização de atividades lúdicas, o que reforça a necessidade de a equipe de saúde inovar a sua práxis do cuidado no direcionamento de uma assistência integral e transpessoal ao indivíduo.

EIXO 2: A música como elemento de resgate da esperança durante a hospitalização

IC 4: Memórias positivas

A música traz boas lembranças durante esse momento difícil que é estar preso aqui no hospital. Me permite sentir alegria, lembrar e reviver bons momentos que agora não são possíveis, mas que renovam minha esperança de sair logo dessa. Por isso é tão lindo e tão maravilhoso ouvir música, porque mexe muito com a gente, com as emoções, vem aquela vontade de chorar e aquela força de acreditar que tudo vai ficar bem. Deveria ter mais atividades assim aqui no hospital (DSC 4).

IC 5: Saudosismo familiar

Eu ouvi e fui pra porta, depois entraram no quarto, e foi lindo. A gente lembra da nossa casa, e dá saudade, vem uma vontade de ir embora, de estar em casa, abraçando os filhos, vontade de estar próximo à família. Nessa hora, percebemos que, apesar de ser difícil estar aqui, a música me fez sentir um alívio, porque traz um pouco da presença da família, traz tranquilidade. Então, assim, se houvesse mais ações como essa, seria muito melhor (DSC 5).

O eixo 2 evidencia o quanto a música mobiliza os sentimentos. No contexto da hospitalização, é capaz de fazer o ouvinte rememorar e exaltar as vivências prévias - que têm o poder de renovar as energias e motivar o indivíduo a enfrentar melhor as dificuldades da vida, como a doença. Assim, se torna especial a experiência de ser cuidado com elementos lúdicos como a música.

Ouvir música durante o internamento é referido como algo maravilhoso, mesmo quando o paciente se sente desesperançoso, e demonstra o quão difícil está sendo seu internamento, pois ela tem a capacidade de trazer de volta a esperança, a partir do encontro com boas lembranças do que já foi vivido.

EIXO 3: Para além da música - um encontro entre cuidado, arte e relações humanas

IC 6: Arte e Cuidado

Seria proveitoso se a equipe utilizasse mais coisas assim; não só a música, né, mas também teatro, palhaços. Anima muito a gente que tá aqui, porque aqui nós, pacientes, ficamos numa tristeza, e de repente chega um pessoal cantando. É muito bom, eu gostei muito (DSC6).

IC 7: Toque e Música

Como sugestão, acho que a visita musical deveria ser mais dinâmica, né, pegar no paciente, que é muito bom, abraçar o paciente, porque eu achei que isso faltou, achei que ficou muito distante, cantou e foi embora, acho que deve cantar e fazer movimentos com o paciente, de acordo à música; com isso, o paciente se sente melhor. Queria música o dia todo, se fosse o caso (risos), e que fosse mais tempo também: foi muito rápido. Queria que cantasse umas dez músicas ou mais. A música tem que ter sempre, nem que seja um rádio do lado, o que for (DSC 7).

O eixo 3 apresenta a expectativa dos entrevistados quanto à vontade de serem cuidados através do toque e de metodologias artísticas. Para eles, deparar-se com atividades desta natureza, durante seu internamento, representa um diferencial que querem estimular no fazer cotidiano dos profissionais que se propõem a cuidá-los em sua totalidade, promovendo bem-estar às suas mentes e almas, em uma atitude transpessoal.

DISCUSSÃO

Cuidado Musical na interface com o Cuidado Transpessoal

A integralidade do cuidado é evidenciada, por Watson, pelo comprometimento do cuidador em se envolver com o outro, a partir de uma interação subjetiva e humanizada, na qual considera-se o paciente em sua totalidade. Nesta perspectiva, o valor do cuidado está presente na capacidade do cuidador em transformar uma atitude em um compromisso assíduo com o ser cuidado.9

Com isso, deve-se valorizar o cuidado lúdico e expressivo, principalmente no âmbito hospitalar contemporâneo, destacando-se a necessidade do desenvolvimento de habilidades do enfermeiro no que se refere às práticas lúdicas.6,16 Entre elas, a música pode proporcionar alívio da dor e do sofrimento, ao viabilizar a mobilização da energia interior, a qual surge como uma chama de esperança frente aos problemas enfrentados no ambiente hospitalar.5

Assim, a utilização da música como uma estratégia complementar de cuidado é um recurso que estimula a alma no direcionamento de um comportamento mais resiliente diante às adversidades, ao estimular a espiritualidade dos pacientes frente ao medo e à angústia sentidos. Durante a escuta dessas músicas, vem à tona um desejo comum, entre eles, de ouvir músicas religiosas, por serem mais confortantes, os auxiliando no enfrentamento da doença. A crença e a prática religiosa atuam como facilitadoras do ajustamento psicológico. Assim, torna-se relevante que os profissionais da saúde acolham os contextos religiosos dos pacientes e de suas famílias, a partir da compreensão da influência da religiosidade sobre a saúde.17

Porém, independentemente do estilo das atividades musicais, sua implementação dentro do ambiente hospitalar proporciona prazer e interação aos pacientes e à equipe, além de contribuir na promoção à saúde e prevenção de agravos. Nesse contexto, o Processo Caritas/Cuidado Transpessoal proporciona uma visão ampliada de cuidado, ao valorizar aspectos subjetivos, criativos e artísticos no desenvolvimento de atividades musicais lúdicas, evidenciando uma nova maneira de exercer a enfermagem, ao potencializar a necessidade do cuidado lúdico.16

Deste modo, a musicoterapia se desvela como uma possibilidade fecunda para a promoção de um cuidado inovador que apreenda, além da dimensão física, a mente e a alma da pessoa humana, tendo em vista que seu potencial terapêutico é capaz de promover mudanças físicas e psicológicas, sendo um instrumento qualificado na promoção de saúde no contexto.18

Trazer a teoria de Jean Watson como embasamento para a assistência em enfermagem possibilita que o cuidado seja realmente prestado em todo seu contexto, já que essa assistência constantemente valoriza o outro em todos seus aspectos e necessidades. Quando o profissional torna-se apto a compreender a importância em aprimorar suas práticas assistenciais, seu campo de ação certamente será ampliado.19

A música como elemento de resgate da esperança durante a hospitalização

O processo de hospitalização aflora sentimentos de medo e ansiedade no paciente. Frente a isso, a música se torna uma alternativa complementar de cuidado, quando inserida no contexto hospitalar, visto que, durante a hospitalização, ela proporciona conforto e sensação de bem-estar ao paciente, ampliando o cuidado do indivíduo.3 A música reduz os sentimentos negativos experimentados pelo paciente, como a angústia, além de possibilitar a expressão dos sentimentos mais íntimos, ao fazer recordar situações especiais vivenciadas no decorrer da vida.20-21

Antes da formação da imagem, tem-se a música e a sua capacidade de rememorar lembranças já vividas, lugares já conhecidos, além de contar histórias, emocionar e inspirar quem canta e ouve. Por isso, a música serve de instrumento para acessar o interior do paciente, fortalecer os laços criados durante a hospitalização e avivar os momentos bons, mesmo diante às circunstâncias que o cerca.22

Neste sentido, é importante considerar aspectos como a cultura, a variedade, a preferência musical e o quadro clínico dos pacientes no planejamento de intervenções musicais. Quando o grupo ou os profissionais desconhecem os efeitos que a música proporciona às pessoas, ou o contexto dos pacientes, a atividade pode tornar-se um grande desafio.23 Alguns pacientes referem que certas músicas resgatam sentimentos e recordações que eles não gostariam de ter no momento. Frente a isso, é necessária sensibilidade e individualização no que se refere à escolha musical, já que a música irá mobilizar lembranças e sentimentos que podem ou não auxiliar no enfrentamento da doença.16

A partir desses cuidados, a música se mostra uma eficiente e econômica ferramenta terapêutica, sendo acessível, de uso fácil e sem efeitos adversos, fazendo com que seja utilizada em múltiplos contextos e como adjuvante no tratamento do paciente.24 A música leva seus ouvintes a interagir com suas emoções, o que configura o momento de escuta como um momento de lazer e descontração, estimado pelos pacientes no cenário de tanta monotonia que consiste a internação hospitalar.12

Outra interface proporcionada pela música e expressa nesta categoria é a capacidade que este recurso tem de estabelecer comunicação com a família, em seus significados presentes no ser enfermo, que evoca a força e o amor, inerentes ao seu sistema familiar, como elementos de promoção de bem-estar mediados pela música.

Neste sentido, o encontro promovido pela música amplia as possibilidades de interação entre os sujeitos envolvidos no processo de cuidar; promove o diálogo, ao facilitar a expressão verbal e não verbal, subsidiando aos familiares a elaboração de estratégias de enfrentamento na transcendência de suas vicissitudes, angústias, tristezas e alegrias, principalmente quando se encontram longe de seus lares. No contexto familiar, a música surge como uma terapia complementar e multidimensional que influencia o estado de ânimo e o humor do ser que está doente, assim como uma terapia medicamentosa é para o seu sofrimento. A música alimenta espiritualmente, fazendo o paciente e o familiar experimentarem a presença de Deus e, assim, serem capazes de suportar a dor e a angústia das adversidades emergentes.25

O benefício da musicoterapia no contexto hospitalar se direciona também à família. A música traz melhoria nos entes fragilizados, já que emerge como instrumento capaz de acessar a subjetividade desses indivíduos, além de exercer papel terapêutico, ao amenizar os diversos sentimentos de medo e ansiedade do paciente e de seus familiares.25

Portanto, o cuidado musical é uma prática que motiva e resgata os vínculos afetivos, aumentando a interação do profissional, do paciente e da família, sendo capaz de estimular o indivíduo a enxergar sua condição clínica de maneira positiva, sem que se sobressaiam suas limitações, conduzindo todos à superação dos desafios no processo de cuidado desse sujeito.

Para além da música - um encontro entre cuidado, arte e relações humanas

A inserção da arte no contexto de cuidados à saúde é recomendada internacionalmente. Estudos afirmam que os hospitais precisam atender às necessidades cada vez mais complexas de seus pacientes, muitas vezes com longa permanência neste espaço. Esses estudos partem da compreensão de que a supervalorização do foco na doença física, na eficiência e nas tarefas, pode desviar a atenção do bem-estar psicossocial dos pacientes. Esta preocupação busca incentivar o uso de abordagens que reconhecem e valorizam a pessoa hospitalizada, sua história de vida, seus relacionamentos e o contexto do cuidado. Neste sentido, o estudo ressalta a importância das artes para a saúde e o bem-estar, alertando os profissionais da área para a busca por estas habilidades e para o exercício da criatividade no direcionamento de atender às necessidades da pessoa enferma.6

A introdução da prática musical no hospital é uma das modalidades artísticas possíveis e oportuniza uma melhor interação entre equipe hospitalar, músicos, enfermos e seus acompanhantes; favorece o vínculo e promove um ambiente humanizado e integrador entre os atores envolvidos. A música mostra-se, então, como um meio benéfico às relações humanas, com a capacidade de transformar o sofrimento psíquico em um momento de descontração prazerosa e confortável, propiciando a assistência em saúde humanizada.6,24

Portanto, ela contribui para o cuidado mais amplo, em uma proposta biopsicoespiritual, o que eleva a sua pertinência junto ao fazer profissional na área de saúde, a partir do momento em que se coloca como uma forma interacional de tratamento ao indivíduo hospitalizado.25 A música promove a sensibilização não apenas no paciente, mas motiva o profissional de enfermagem com relação à responsabilidade de manter um ambiente terapêutico, mais comunicativo, respeitoso e ético.6

Assim sendo, as visitas musicais promovem importantes benefícios para o melhor relacionamento entre paciente, família e equipe. Para o paciente, observam-se a melhoria do humor; sorrisos; a melhora da autoestima; a distração; a oportunidade de esquecer, por alguns momentos, da situação de doença para lembrar momentos bons; a descontração; o relaxamento e a tranquilidade. Para a equipe de saúde, a música promove relaxamento, alegria e bem-estar, renovando a autoconfiança no processo de cuidado.26 A presença da música no ambiente hospitalar tem o poder de reduzir sensações de tristeza, insatisfação e desânimo, de modo que melhora a qualidade de vida da comunidade hospitalar, ou seja, transforma o ambiente formal do hospital em um local agradável e acolhedor.6

Por todas estas propriedades, a música pode ser utilizada como uma forma alternativa para aproximar e acolher as pessoas2, possuindo o poder de facilitar a comunicação, o vínculo e, também, o toque, através do qual se pode transmitir uma mensagem oportuna que independe de palavras entre aqueles que cuidam e que são cuidados.27

O toque é objeto de outros estudos, que já o classificam como terapêutico pelas suas propriedades em reduzir consideravelmente a ansiedade, fadiga, distúrbios do sono e estresse e por representar um tratamento útil no alívio de sintomas psicofisiológicos, revestindo-se de uma estratégia de cuidado integral cada vez mais discutida no contexto da saúde, mas que ainda não integra os protocolos de cuidados e as pesquisas de maneira efetiva.28

Nesse sentido, a intervenção musical, além de trazer benefícios aos pacientes, também desperta, nos profissionais, a reflexão em experimentar novas possibilidades de intervenção, além do fazer cotidiano, que resulte em autorrealização, momentos de felicidade, satisfação e prazer.6

Ao escolher o cuidado musical, o profissional amplia a sua filosofia de cuidado para além de um ato que começa e acaba em si mesmo. Ele se desafia ao cuidado enquanto uma atitude, que integra o desvelo, a gentileza, o zelo, o interesse e o empenho, a partir da sensibilidade, da valorização e do afeto pelo outro em suas múltiplas necessidades de cuidado.29

Assim, o cuidado transpessoal converge para o cuidado musical, ao almejar um modelo de cuidado científico que permita a emergência de uma enfermagem caritas evoluída, na qual a enfermagem desenvolva a apreciação mais profunda da complexidade e das experiências humanas, de imersões interiores em sua própria vida e do significado das respostas intersubjetivas para o cuidado, a cura, a enfermidade, o desespero, a doença e a morte. É este modelo que verdadeiramente honra e abre as portas para a união de mente-corpo-alma-espírito e nossa conexão humano a humano como ‘Fonte’ que une a todos.10

Caritas envolve o significado de apreciar e dar atenção - representa caridade, compaixão e generosidade. É de fato algo importante, que precisa ser cultivado e sustentado em cada indivíduo, visto que se preocupar com o outro e demonstrar amor é uma forma de cuidado transpessoal, na qual a relação entre amor e cuidado dá acesso para a cura interior do cuidador e do ser cuidado.30

Nessa perspectiva, a música, como uma intervenção de cuidado, propicia uma assistência humanizada e integral. Além de ser um recurso acessível aos hospitais, sua utilização viabiliza a interação entre a equipe e os pacientes, proporcionando o bem-estar físico e emocional destes indivíduos.

CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

O cuidado musical no contexto estudado contribuiu para motivar e resgatar os vínculos afetivos, aumentando a interação do profissional, do paciente e da família. A estratégia também foi capaz de estimular o indivíduo ao cultivo da espiritualidade, mobilizar suas fontes de resiliência e redimensionar a sua esperança.

Quanto às implicações para a prática, o estudo promove reflexão e orientação para um cuidado mais criativo, sensível e ousado no ambiente hospitalar, sugerindo maior uso da música pela equipe de saúde, ao encontro de um cuidado ampliado às necessidades humanas que transcendem às físicas.

Destaca-se a importância de os profissionais de enfermagem buscarem o desenvolvimento de habilidades artísticas, assim como o interesse em produzirem um cuidado criativo e ampliado que busque um encontro terapêutico com o corpo-mente-alma da pessoa hospitalizada. A busca pelo conhecimento de teorias da área ea implementação de suas metodologias devem ser cultivadas por esses profissionais, destacando-se a oportuna associação da Teoria do Cuidado Transpessoal como elemento disparador desta feliz experiência.

O estudo revelou a profícua relação entre o cuidado transpessoal e o cuidado musical, ambos partilhando o objetivo de promoção de esperança, fé e resiliência frente à doença ou à hospitalização, deixando explícitos os efeitos da música na totalidade corpo-mente-alma humana.

As limitações deste estudo relacionam-se ao restrito contexto de apreensão dos dados e às especificidades culturais e geográficas do cenário de estudo. Todavia, os resultados encontrados são relevantes, pois emergem de uma proposta de avaliação de ação extensionista fundamentada em Watson, que corrobora a literatura nacional e internacional.

Estimula-se o desenvolvimento de novas pesquisas e ações na área, no direcionamento de explorar outras nuances desta importante temática. Instiga-se o investimento na formação dos enfermeiros para a maior reflexão-ação artística na sua práxis de cuidado, seja mediante atividades curriculares ou mesmo extracurriculares (pesquisa, extensão, estágios), que maximizem os olhares e as ambições desses profissionais.

REFERÊNCIAS

1 Ferreira ABH. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2013.
2 Santos FR, Coronago VMMO. Uso da Musicoterapia como Terapia Alternativa no Tratamento da Doença de Parkinson. Rev Multi Psic [Internet]. 2017 May; [cited 2018 Nov 10]; 11(35):341-60. Available from:
3 Campos LF, Nakasu MV. Efeitos da Utilização da Música no Ambiente Hospitalar: revisão sistemática. Rev Sonora [Internet]. 2016; [cited 2018 Nov 10]; 6(11):9-19. Available from:
4 Paixão AB, Damasceno TAS, Silva JC. Importância das atividades lúdicas na terapia oncológica infantil. Cuid Arte Enferm [Internet]. 2016 Jul/Dec; [cited 2018 Nov 10]; 10(2):209-16. Available from:
5 Doro MP, Pelaez JM, Dóro CA, Antonechen AC, Malvezzi M, Bonfim CMS, et al. Psicologia e musicoterapia: uma parceria no processo psicoativo dos pacientes do Serviço de Transplante de Medula Óssea. Rev SBPH [Internet]. 2015 Jun; [cited 2018 Jul 15]; 18(1):105-30. Available from:
6 Silva KG, Martins GCS, Bergold LB. Therapeutic use music to nursing care in a pediatric unit. Rev Enferm UFPI [Internet]. 2016 Jul/Sep; [cited 2018 Nov 10]; 5(3):4-9. Available from: . DOI:
7 Tejon JL. Música, a esperança sem dor. In: Leão ER. Cuidar de pessoas e música, uma visão multiprofissional. São Caetano do Sul (SP): Yendis Editora; 2009. p. 1-10.
8 Nascimento CAA, Filho Crepalde NJB. A Música Como Recurso nos Processos de Humanização Hospitalar. Rev Form Doc [Internet] 2015; [cited 2018 Nov 10]; 7(1):24-35. Available from: DOI: 10.15601/2237-0587/fd.v7n1p24-35
9 Rohr RV, Alvim NAT. Intervenções de enfermagem com música: revisão integrativa da literatura. J Res Fundam Care Online [Internet]. 2016 Jan/Mar;8(1):3832-44. Available from: . DOI: 10.9789/2175-5361.2016.v8i1.3832-3844
10 Yurkovich J, Burns DS, Harrison T. The Effect of Music Therapy Entrainment on Physiologic Measures of Infants in the Cardiac Intensive Care Unit: Single Case Withdrawal Pilot Study. J Music Ther [Internet]. 2018; [cited 2018 Jul 15]; 55(1):62-82. Available from: . DOI:
11 Rosa W, Estes T, Watson J. Caring Science Conscious Dying: An Emerging Metaparadigm. Nurs Sci Q [Internet]. 2016 Dec; [cited 2018 Aug 1]; 30(1):58-64. Available from: . DOI:
12 Watson J. Enfermagem: ciência humana e cuidar uma teoria de enfermagem. Trad. João Enes. Portugal: Lusociência; 2002.
13 Vasconcelos A, Costa LMP. Representações sociais da música: formação x educação. Rev Ciênc Hum UNITAU [Internet]. 2018 Jun; [cited 2019 Aug 5]; 11(1):19-31. Available from: . DOI:
14 Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 9ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.
15 Lefévre F, Lefévre AMC. Discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (Desdobramentos). 2ª ed. Caxias do Sul: Educs; 2005.
16 Ford K, Tesch L, Dawborn J, Courtney-Pratt H. Art, music, story: The evaluation of a person-centred arts in health programme in an acute care older persons’ unit. Int J Older People Nurs [Internet]. 2018 Jun; [cited 2018 Aug 1]; 13(2):e12186. Available from: . DOI:
17 Silva SK, Passos SMK, Souza LDM. Associação entre religiosidade e saúde mental em pacientes com HIV. Psicol Teor Prat [Internet]. 2015 Aug; [cited 2018 Feb 10]; 17(2):36-51. Available from:
18 Sousa ADRS, Silva LF, Paiva ED. Nursing interventions in palliative care in Pediatric Oncology: an integrative review. Rev Bras Enferm [Internet]. 2019 Apr; [cited 2019 May 30]; 72(2):531-40. Available from: . DOI:
19 Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery [Internet]. 2016 Jan/Mar; [cited 2019 May 30]; 20(1):198-202. Available from: . DOI:
20 Fallavigna D, Bellaguarda MLR, Gaio TC, Rosa MC. A música na assistência à saúde de pacientes em cuidados paliativos. Rev Eletr Est Saúde [Internet]. 2016; [cited 2017 Apr 20]; 5(1):190-201. Available from:
21 Reychler G. Mottart F, Boland M, Wasterlain E, Pieters T, Caty G, et al. Influence of Ambient Music on Perceived Exertion During a Pulmonary Rehabilitation Session: A Randomized Crossover Study. Respir Care [Internet]. 2015 May; [cited 2018 Feb 10]; 60(5):711-7. Available from: . DOI:
22 Nogueira W, Escrich F, Figueiredo R, Saíde S, Ferrara T. Música na atividade clown. In: Leão ER, org. Cuidar de pessoas e música, uma visão multiprofissional. São Caetano do Sul: Yendis Editora; 2009. p. 309-20.
23 Silva MJP. A música no controle da dor crônica. In: Leão ER, org. Cuidar de pessoas e música, uma visão multiprofissional. São Caetano do Sul: Yendis Editora; 2009. p. 139-58.
24 Silva LAGP, Baran FDP, Mercês NNA. Music in the care of children and adolescents with cancer: integrative review. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 Nov; [cited 2019 May 30]; 25(4):E1720015. Available from: . DOI:
25 Silva VA, Marcon SS, Sales CA. Perceptions of family members of patients with cancer on musical encounters during the antineoplastic treatment. Rev Bras Enferm [Internet]. 2014 May/Jun; [cited 2017 Jul 12]; 67(3):408-14. Available from: . DOI:
26 Claro LBL, Netto DV, Valente LR. Perceptions of patients and health care professionals about the visits paid by the outreach program “good night, good morning HUAP”. Rev Con UEPG (Ponta Grossa) [Internet]. 2017; [cited 2018 Jun 20]; 13(1):66-83. Available from: . DOI:
27 Rezende RC, Oliveira RMP, Araújo STC, Guimarães TCF, Santo FHE, Porto IS. Body language in health care: a contribution to nursing communication. Rev Bras Enferm [Internet]. 2015 May/Jun; [cited 2019 May 30]; 68(3):490-6. Available from: . DOI:
28 Mello TCA, Brito RS. Efetividade do toque terapêutico no alívio de sintomatologia do paciente. Saúde (Santa Maria) [Internet] 2015 Jul/Dec; [cited 2018 Jun 20]; 41(2):45-52. Available from: . DOI:
29 Boff L. Saber cuidar. 20ª ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2014.
30 Watson J. Nursing: the philosophy and science of caring. Rev ed. Boulder: University Press of Colorado; 2008.