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A Polissemia da Governança Clínica: uma revisão da literatura

A Polissemia da Governança Clínica: uma revisão da literatura

Autores:

Romeu Gomes,
Valéria Vernaschi Lima,
José Maurício de Oliveira,
Laura Maria Cesar Schiesari,
Everton Soeiro,
Luciana Faluba Damázio,
Helena Lemos Petta,
Marilda Siriani de Oliveira,
Silvio Fernandes da Silva,
Sueli Fatima Sampaio,
Roberto de Queiroz Padilha,
José Lúcio Martins Machado,
Gilson Caleman

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.8 Rio de Janeiro ago. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015208.11492014

Introdução

No cenário mundial contemporâneo, tanto sistemas de saúde públicos como sistemas privados enfrentam desafios tais como a insuficiente resposta às necessidades de saúde das pessoas ou populações e o custo crescente, com baixa produtividade e qualidade inconstante. Sendo os sistemas de atenção à saúde organizações construídas pela sociedade para dar respostas às necessidades de saúde das pessoas e populações, sua gestão e a organização do cuidado refletem os princípios e a lógica por meio dos quais as sociedades explicam e interveem no processo saúde-doença1,2.

Nesse sentido, Foucault destaca o componente biopolítico da gestão e faz uma contraposição à “cientificidade” da normalização da saúde das pessoas e sociedades, ao considerar que o biológico se reflete no político3.

A lógica da normalização associada à redução de custos e aos resultados financeiros originou, nos anos 1980, a atenção gerenciada ou managed care nos Estados Unidos. Ao visar os resultados econômico-financeiros na gestão da saúde, esse modelo passou a regulamentar a atuação dos profissionais, especialmente médicos, praticamente anulando sua autonomia, por meio da regulamentação da tomada de decisão1.

Paralelamente à natureza prescritiva das normas que visam ajustar e, muitas vezes, submeter os indivíduos a determinados padrões, uma das dimensões da normalização, aplicada aos processos no cuidado à saúde, deu ênfase à garantia da qualidade e da segurança dos pacientes e profissionais na prestação de serviços.

Segundo Christensen et al.4, com o florescimento da saúde baseada em evidências e das tecnologias de informação, a padronização vem permitindo transformar problemas, cuja solução requereria o aporte de profissionais de alto custo, em intervenções orientadas por protocolos e diretrizes clínicas. Essas tecnologias de gestão vêm reduzindo custos e aumentando a qualidade das ações de saúde. Nesse sentido, seguindo as melhores práticas para o alcance de melhores resultados, “A força transformacional [capaz de trazer] disponibilidade e acessibilidade para outros segmentos [assim como para a saúde] é a inovação por ruptura [incluindo o modelo de gestão]”4.

A partir do final da década de 1990, o conceito de governança clínica ou gestão da clínica trouxe novos elementos para a discussão da gestão em saúde, com foco na responsabilidade do sistema pela melhoria da qualidade da atenção à saúde. Os autores de língua inglesa utilizam mais frequentemente o termo governança clínica5 e exploram a organização do sistema de saúde em torno da articulação e regulação de ações e serviços, visando a efetividade, eficiência e o desenvolvimento de padrões nacionais de qualidade para ações e serviços de saúde e a qualidade6.

No Brasil, a utilização do termo gestão da clínica é ainda mais recente. A maior parte dos artigos e produções destinadas à discussão de sistemas de saúde, modelos de gestão e de atenção à saúde não utilizam esse descritor, embora problematizem esses e outros elementos como os conceitos de cogestão e de clínica ampliada. Nesses enfoques, a valorização da relação singular construída entre usuários e profissionais de saúde e a construção de protagonismo desses sujeitos no processo de reforma e reorganização da atenção à saúde tem sido colocada como um modelo de gestão e de cuidado alternativos à excessiva valorização da gerência na atenção à saúde7.

Com base numa primeira aproximação conceitual, destaca-se como premissa a ser estudada que a gestão em saúde e, mais especificamente, a gestão da clínica, tem traduzido as tensões produzidas no diálogo entre: controle-autonomia e normalização-singularização na atenção à saúde. Nesse contexto, o desafio de ampliar o acesso e a disponibilização de ações e serviços de saúde mais qualificados permanece atual e continua demandando a produção de inovações nas práticas de gestão e de cuidado.

Para que essa demanda seja atendida, faz-se necessário explorar conceitualmente a expressão gestão da clínica. A problematização desse conceito poderá nortear tanto a elaboração de diretrizes políticas relacionadas ao modelo de atenção à saúde no Brasil, quanto subsidiar o desenvolvimento de estratégias para o uso do mesmo no quotidiano dos cuidados de saúde.

A partir dessa perspectiva, o presente estudo parte da seguinte questão: Quais são os sentidos atribuídos à gestão da clínica e quais são as categorias conceituais que envolvem tal expressão?

Assim, considerando a riqueza que envolve o tema, objetiva-se explorar a conceituação da gestão da clínica visando a melhor compreensão dos diversos sentidos que poderão ser atribuídos a essa expressão.

Essa discussão tanto pode contribuir para o planejamento e a organização dos serviços de saúde voltados para a gestão da clínica, quanto no estabelecimento de princípios para a elaboração de ações nessa área.

Metodologia

Este estudo caracteriza-se como uma revisão da literatura, aqui entendida como um estudo exploratório da produção do conhecimento acerca de um assunto ou tema. Privilegiou-se o artigo científico como fonte de análise.

Inicialmente, foram identificados na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) os descritores de assunto que correspondiam à gestão da clínica. Feito isso, centrou-se a pesquisa na base de dados Medline. Nessa base, em 25 de outubro de 2013, a busca foi feita com a seguinte estratégia: (gestão clínica) or “gestao clinica” [Descritor de assunto] and (governança clínica) or “governanca clinica” [Descritor de assunto] and “Artigo de Revista” [Tipo de publicação]’. Com essa estratégia foram encontrados 224 títulos de artigos. Em seguida, foram excluídos os títulos que não possuíam resumos na base, restando 164 artigos.

Para a leitura dos resumos, por se considerar que os estudos empíricos qualitativos ou os teórico-conceituais seriam mais apropriados para a resposta da questão da pesquisa, adotou-se os seguintes critérios de inclusão: artigos com método qualitativo, ensaio teórico, artigos de opinião ou conceituais e artigos de revisão da literatura qualitativa. Por outro lado, utilizaram-se os seguintes critérios de exclusão: artigo com método epidemiológico, revisões sistemáticas quantitativas (metanálises) e artigos quantitativos em geral.

Aplicados os critérios de inclusão e exclusão na leitura dos resumos dos artigos, foram identificados 92 títulos. Na busca dos artigos, resolveu-se retirar um estudo por estar publicado na língua tcheca. Assim, foram lidos na íntegra 91 textos. Nessa leitura, foram retirados os estudos que não traziam conceitos, definições ou considerações específicas sobre o assunto. Com isso, constitui-se o corpus analítico da revisão com 19 artigos.

Após a leitura de todo o acervo, cada artigo foi submetido a duas fichas de análise. A primeira – elaborada com o objetivo de caracterizar a produção – integrava as seguintes variáveis: ano de publicação, país de realização do estudo, área de conhecimento do estudo, desenho metodológico e tipo de fonte utilizado. No que se refere a desenho metodológico, por se tratar de estudos qualitativos ou teórico-conceituais, adotou-se a seguinte classificação: empírico qualitativo, teórico/conceitual, editorial/opinião e revisão qualitativa. Em termos de fonte, a classificação foi a seguinte: primárias, exclusivamente secundárias e opinião.

Na segunda ficha analítica, foram transcritos trechos conceituais ou considerações específicas sobre gestão clínica ou governança clínica do artigo.

As informações registradas na primeira ficha de cada artigo tiveram inicialmente um tratamento descritivo com a utilização de frequências. No conjunto das variáveis dessa ficha, priorizouse o tipo de fonte por considerar importante identificar se os conceitos e os modelos de gestão clínica ou governança clínica foram elaborados a partir de pesquisas de campo ou da literatura em geral.

Os conceitos e as considerações específicas sobre o assunto, registrados na segunda ficha de cada artigo, foram analisados a partir de uma adaptação da técnica de análise de conteúdo, modalidade temática, descrita por Bardin8. Para essa autora, o tema é uma unidade de significação que se liberta do texto analisado e pode ser traduzido por um resumo, por uma frase ou por uma palavra. Com essa técnica, é possível identificar o que está por trás dos conteúdos manifestos9. Nesta revisão bibliográfica, o tema está sendo entendido como uma categoria mais ampla que pode abranger mais de um núcleo de sentido. Em síntese, basicamente, foram percorridos os seguintes passos analíticos: (a) identificação das ideias centrais dos trechos transcritos de todos os artigos; (b) classificação dos sentidos subjacentes às ideias em temas que resumem a produção do conhecimento acerca do assunto estudado; e (c) elaboração de sínteses interpretativas de cada tema.

Resultados

Caracterização dos artigos analisados

Em relação ao ano de publicação, predominam artigos publicados em 2010 (42%), seguidos dos publicados nos anos de 2012 (32%), 2009 (5%) e 2013 (5%). Nesse sentido, pode-se considerar que a produção analisada acerca do assunto em geral é relativamente recente, abrangendo aproximadamente o período dos últimos cinco anos.

No que diz respeito ao continente em que foram desenvolvidos os artigos, predominam os realizados na Europa (68%), seguidos pelos da Oceania (21%), América do Norte (5%) e Ásia (5%). Como o maior número de estudos é oriundo do Reino Unido, situado na Europa, e considerando sua influência no continente oceânico, isso pode indicar a predominância da expressão governança clínica em detrimento do termo gestão da clínica ou gestão clínica.

Com relação à área de estudo, a Enfermagem destaca-se com 27% do conjunto dos artigos, seguida pela Medicina (26%), Odontologia (26%), Saúde Pública (16%) e Educação (5%). O predomínio das três primeiras áreas pode indicar que a discussão acerca do assunto fica mais no nível micro (práticas clínicas), do que nos níveis meso (organização e planejamento) e macro (políticas). O pouco envolvimento da área da educação também pode indicar a necessidade de se aprofundar a discussão sobre a formação profissional voltada para a governança clínica.

No que tange ao tipo de fontes utilizado, em geral, os artigos baseiam-se naquelas que são exclusivas secundárias, com 42%, seguidos pelos que utilizam as primárias (32%) e os baseados em opinião (26%). O predomínio de fontes secundárias pode indicar que o conceito de governança clínica é utilizado com base em outros estudos acerca do assunto, havendo menos investimento na construção do conceito a partir de situações empíricas. Ou talvez isso possa ser atribuído ao fato do tema ser relativamente recente e as experiências concretas de emprego do mesmo encontrarem-se em estágio de desenvolvimento e/ou consolidação.

A Tematização da governança clínica

Os autores dos artigos analisados empregam a expressão governança clínica e, por essa razão, tanto a apresentação dos resultados deste estudo quanto a sua discussão será desenvolvida em torno dessa expressão.

O conceito de governança clínica, em geral, é usado nos artigos para outros focos de discussão, que vão desde considerações sobre intervenções sobre agravos específicos até o planejamento e a organização dos serviços de saúde. Comumente, os autores estudados recorrem a aspectos conceituais formulados por outros autores. Scally e Donaldson5 são autores frequentemente citados pelos artigos. Cerca de 37% baseiam-se nesses autores para definirem governança clínica.

A análise dos conteúdos dos estudos revisados pode ser ilustrada por um mapa conceitual com áreas relacionadas a três círculos concêntricos, sendo que a área central refere-se ao conceito estudado; a intermediária - dividida em sete subáreas - abrange as temáticas e a externa integra os sentidos associados às temáticas com as referências dos autores dos estudos analisados. O percurso analítico iniciou com a identificação dos conteúdos da área externa, passando para a classificação dos da área intermediária para indicar o conceito-síntese governança clínica, que compõe a área interna (Figura 1).

Figura 1 Mapa conceitual. 

A gestão aparece como temática constituinte da governança clínica. A expressão gerenciamento também foi utilizada pelos autores, sendo os dois termos tratados sem diferenças.

Entre aqueles em que houve algum tipo de menção foram encontrados os seguintes núcleos de sentido: gestão de pessoas, gestão de processos e gestão com ação que visam correções. Dentre os autores que apontam a gestão de pessoas aparece o termo desempenho profissional10,11. Os que apontam como objeto a gestão de processos focam em benchmarking12,13. Outro núcleo de sentido é a conotação da gestão com a ação, assim: implantação de prescrição14 e intervenção10,15. Neste núcleo, os autores usam termos com conotações de ação para sanar baixo desempenho, mau desempenho e precariedades.

O propósito da gestão como elemento da governança clínica para esses autores é direcionado para a ação de transformação e atingimento de resultados (eficácia) através da correção de desempenhos profissionais insuficientes. Além disso, sinaliza-se que a governança clínica é um conjunto de práticas a serem aplicadas a todo o sistema de saúde.

Ainda que no conjunto das temáticas aparece - implícita ou explicitamente - a melhoria da qualidade, pode-se identificar uma temática específica sobre a promoção da qualidade. O foco central desta temática é constituído por sentidos que apontam para resultados que revelem a qualidade das práticas clínicas.

Em termos de estratégias para se chegar a qualidade da clínica, há estudos que se centram no desenvolvimento de protocolos13,14. Um desses estudos destaca a implantação de protocolos para orientar a prescrição de profissionais não médicos14. Já em relação aos estudos que focalizam a promoção da qualidade em resultados, destacam-se os que se voltam para a qualidade da prática clínica em si1517, a melhoria da qualidade assistencial18, serviços eficazes19 e a eficácia do cuidado13,1923.

Monitoramento ou auditoria clínica também emerge dos textos como temática. Essa expressão é utilizada pelos autores como um dos componentes da governança clínica. Em um estudo, a auditoria é considerada como um ponto chave da governança clínica24, enquanto outros mencionam esse termo como acompanhamento sem defini-lo13,20. Entre os autores que explicitam o significado dessa expressão, encontram-se os seguintes núcleos de sentido: abordagem sistemática para revisar a clínica10; avaliação regular dos procedimentos operacionais28 e regulação da prática médica16.

Utilizando termos como monitoramento, auditoria ou supervisão clínica, essa temática é apresentada com foco em serviços e equipes13 e na atuação clínica de profissionais médicos16, dentistas13 e enfermeiros27. Os propósitos da auditoria são direcionados à melhoria de desempenho, a partir da consciência da extensão e natureza do erro, assim como, da necessidade de melhorar padrões de prática e processos de trabalho. Quando esse propósito é abordado, no sentido de promover mudanças nas práticas dos profissionais, a auditoria tangencia a temática educação.

Educação, como temática, é outro componente da governança clínica. Para um dos autores, ela é considerada um elo crucial, íntimo e central da governança clínica11. Ainda nesse sentido, aponta como sendo uma alavanca para a melhoria da qualidade e correção do mau desempenho11. Como núcleos de sentido destacamse: compartilhamento de práticas15; mudanças de práticas e de comportamento dos profissionais13; fertilização cruzada de ideias25; desenvolvimento profissional contínuo11. Alguns autores apontam esse componente sem o qualificar20,24. Outros explicitam ferramentas ou dispositivos a serem utilizados para a aprendizagem e o desenvolvimento profissional, tais como: telecomunicação26, incidente crítico13 e pesquisa-ação13.

A responsabilidade pode ser apontada como outra temática que emerge dos textos. Tal expressão é empregada nos seguintes sentidos: ser responsável no exercício da clínica10, ser responsável pelas pessoas que são atendidas19, aumentar a responsabilidade social da governança clínica16 e ainda a responsabilidade das organizações na melhoria contínua da qualidade dos seus serviços12. Isto é feito por meio do estabelecimento e garantia da aplicação de elevados padrões que criam um ambiente que estimule a excelência do cuidado12. Assim sendo, a responsabilidade refere-se ao indivíduo, e ao próprio serviço (“ser responsável e ter compromisso”) frente à população alvo daquela atividade. Esta responsabilidade inicia-se a partir da definição da missão e visão, estendendo-se até a prestação de serviços de excelência. O foco da responsabilidade seria, aqui, o usuário dos serviços, além dos profissionais17.

A temática segurança no cuidado integra dois sentidos: gerenciamento de risco12,16,18,20,21,2426 e ambiente seguro14. A preocupação com segurança do paciente surge a partir da constatação da magnitude e natureza dos erros relacionados à prática médica e da necessidade de melhorar os padrões relacionados à prática e planejamento em saúde12,16,25. A segurança do paciente ajudaria os profissionais a gerir o risco, reduzindo assim as “ameaças” associadas ao cuidado24. A gestão do risco, por sua vez, é considerada um dos pilares da governança clínica21. Em relação ao segundo sentido, há um estudo14 que considera a perspectiva organizacional para assegurar um ambiente seguro para os profissionais.

Por último, destaca-se a dimensão sistêmica como temática da governança clínica. Três núcleos de sentido integram esta temática: suporte27, sustentabilidade27 e rede de apoio à distância25. Nos dois primeiros sentidos, a dimensão sistêmica configura-se quando se advoga uma supervisão clínica de apoio aos profissionais de enfermagem para que haja uma sustentabilidade da clínica28. Já o terceiro sentido advém da experiência de um programa que estrutura a governança clínica de forma a manter os serviços em locais remotos através de uma rede de apoio à distância25.

Discussão dos resultados

Os sentidos atribuídos à governança clínica presentes nos artigos analisados não se distanciam do conceito acerca do assunto sistematizado por Scally e Donaldson5. Segundo esses autores, a governança clínica se associa à promoção contínua da melhoria da qualidade, assegurando elevados padrões de cuidado e criando ambiente voltado à excelência clínica. Para eles, a promoção da qualidade na governança clínica se relaciona ao conceito de qualidade da clínica da Organização Mundial da Saúde (OMS)29, que se traduz em quatro aspectos: qualidade técnica do desempenho profissional; eficiência no uso dos recursos; gestão de risco e satisfação dos pacientes com o serviço prestado. Para além desses aspectos, destaca-se a responsabilidade das organizações do sistema de saúde, na garantia de elevados padrões de atendimento clínico. Nesse sentido, os resultados positivos para o paciente orientam para uma dimensão sistêmica e uma organização da atenção à saúde em rede integrada de serviços e de profissionais.

Os elementos conceituais dos mencionados autores e os aspectos da OMS sobre o que se considera qualidade da clínica são estruturantes no quadro conceitual advindo do corpus analítico deste estudo. Isso se observa mesmo naqueles artigos que não citam Scally e Donaldson5, nem a OMS29 para estruturarem suas definições acerca do assunto.

As temáticas do quadro conceitual apresentado integram núcleos de sentidos relacionados praticamente às dimensões da discussão seminal dos mencionados autores5. No conjunto dos artigos, apenas a satisfação dos pacientes com os serviços que lhes são prestados não foi explicitamente focalizada no conceito de governança clínica. Apesar disso, a noção de responsabilidade apresentada está intimamente relacionada aos usuários. Aliás, a própria definição de governança reforça esta visão (um conjunto de atividades que assegura o funcionamento adequado dos serviços, o que permite honrar o compromisso assumido frente à população alvo)19. A satisfação dos pacientes entraria aqui como a constatação do quanto este compromisso foi adequadamente assumido e concretizado (ou não).

Nos artigos analisados, os sentidos atribuídos à governança clínica, em geral, relacionam-se às ações operacionais ou aos procedimentos que aproximam a lógica de gestão à lógica da clínica. Mesmo tendo o foco na instância operacional, os dispositivos abordados visam a melhoria da qualidade. Essa dimensão, com base em Campos e Amaral7, pode ser associada a um modelo de gestão, denominado teórico-operacional, vinculado a uma linha mais tecnocrática e gerencial.

Dentre os dispositivos operacionais, a auditoria, na governança clínica, foi apresentada de modo orientado à melhoria da atuação de profissionais, equipes e serviços, particularmente aqueles organizados de forma integrada. Apesar da coerência de propósitos no uso dessa ferramenta, não foi possível identificar plenamente a relação entre o grau de autonomia e controle no âmbito da auditoria.

No conjunto dos artigos revisados, há um destaque aos mecanismos de detecção das não conformidades das condutas profissionais e ao controle e padronização do trabalho profissional. Isso, de certa forma, reforça o predomínio na saúde do controle por meio de processos disciplinares e normativos, em detrimento de pouco ou nenhum investimento em mudanças de valores e posicionamentos profissionais7.

Para Cecílio30, a categoria “poder” deveria ser utilizada para analisar as relações e os modelos de gestão, no sentido de se verificar qual a possibilidade de negociação existente entre múltiplas racionalidades, interesses, disputas e saberes. Essa categoria, aplicada à análise dos processos de auditoria, poderia evidenciar em que grau o controle foi utilizado de modo a anular a autonomia profissional e em que medida os protocolos ou diretrizes clínicas são referências que permitem ou não sua contextualização e singularização.

Ainda em relação aos dispositivos, um dos artigos abordou os protocolos como ferramenta para apoiar a prescrição de não médicos, garantindo qualidade com menor custo. Cabe destacar que, quando os estudos revisados mencionam custos – implícita ou explicitamente – o fazem de modo coerente com as premissas de Christensen et al.4. Nesse sentido, a redução de custos foi combinada ao aumento da qualidade das ações de saúde, particularmente por meio do uso de protocolos clínicos.

Na temática educação, a explicitação das abordagens utilizadas foi distinta nos trabalhos estudados. Enquanto alguns autores indicaram processos educacionais voltados à construção de uma rede de apoio entre profissionais, com fertilização cruzada de ideias25 e práticas compartilhadas15, outros não qualificaram os processos de treinamento20,24 ou os de investigação e correção de comportamento10,15,16,28.

O grau em que os treinamentos ou correções de desempenhos relatados consideraram as características e especificidades de cada contexto e caso, e a perspectiva dos diversos atores envolvidos não foi apontado. Essa indicação seria essencial para permitir uma análise mais aprofundada sobre o papel da educação na governança clínica, considerando a utilização de abordagens diretiva ou construtivista da educação. Formas de seleção e organização de conteúdos educacionais ou escolhas de técnicas de ensino e avaliação refletem o entendimento sobre como as pessoas aprendem e se o conhecimento é utilizado como forma de libertar ou dominar o outro3133. Para Becker34 uma abordagem educacional construtivista se fundamenta na valorização e reflexão sobre a experiência do outro, como ponto de partida para a produção de novos saberes. De modo oposto, a abordagem educacional diretiva se orienta à transmissão de conhecimentos, com vistas à repetição dos conteúdos transmitidos.

Subjacente aos sentidos atribuídos à governança, observa-se o predomínio da dimensão biológica que institui um determinado modo de fazer a clínica e orienta a construção de protocolos e diretrizes clínicas, a partir dessa perspectiva. Desse modo, mesmo sendo constituintes do processo saúde-doença, as dimensões sociais, incluindo a biopolítica3 e a subjetiva7 não são mencionadas nos artigos estudados.

Talvez a opção pelo biológico tenha suas raízes nas origens da governança clínica, isto é, como uma resposta à falta de segurança e de qualidade do cuidado evidenciadas por meio de escândalos que abalaram a confiança do público no sistema de saúde, a exemplo do que ocorreu no Reino Unido, e a necessidade de dar resposta rápida ao questionamento que tais eventos suscitaram18. Hoje, anos depois, as limitações desta opção ficam claras diante da necessidade de valorização dos sujeitos e das outras dimensões que fazem parte do processo saúde-doença, para além da perspectiva biológica.

Considerações finais

Os sentidos atribuídos à governança clínica compõem um quadro polissêmico que se relaciona muito mais ao polo expressivo do termo do que à lógica comumente presente nesse conceito. Em outras palavras, em geral, a variação de sentidos relaciona-se à forma como os autores dos estudos revisados expressam ou desdobram os componentes conceituais estruturantes amplamente aceitos como governança clínica.

Apesar de, isoladamente, os artigos não fornecerem um aprofundamento teórico-conceitual especificamente voltado para a governança clínica, o conjunto deles - enquanto corpus analítico - traz subsídios importantes para a discussão do tema em questão. Ainda que haja aspectos comuns ou intersecções entre as ideias presentes nos conceitos dos artigos, constatam-se abordagens diferenciadas.

Nesse corpus observam-se as tensões entre controle-autonomia e normalização-singularização na atenção à saúde. Confrontar dialeticamente os primeiros componentes das tensões (controle e normalização) com os segundos (autonomia e singularização) é de fundamental importância para que sejam pensados o quê, o como e o para quê das mudanças da governança clínica.

Com base nos conceitos estudados, observam-se lacunas no conhecimento acerca do assunto investigado. Ainda que alguns autores tenham abordado questões da organização e do planejamento relacionadas à governança clínica, o predomínio da discussão se insere na instância operacional. Não foi observado um maior investimento em estudos sobre as esferas meso e macro relacionadas ao assunto. Em outras palavras, falta um maior foco em discussões sobre o planejamento e as políticas relacionados à governança clínica.

Em termos conceituais, ainda são necessárias reflexões acerca do emprego das expressões gestão e governança. Esses empregos revelariam uma sinonímia, distintas traduções entre idiomas ou perspectivas em relação à clínica?

Por último, observa-se um limite do presente estudo. Pela opção metodológica de se trabalhar com os descritores integrados da BVS e por se ter escolhido previamente análise de abordagens qualitativas, estudos importantes para o aprofundamento do assunto podem não ter sido revisados. Esse é um dos motivos para o fato de publicações nacionais sobre gestão da clínica — utilizadas como ponto de partida deste estudo — não terem aparecido na busca.

Conscientes dos limites, entende-se este estudo como um ponto de partida ou disparador para futuras análises sobre dois eixos de discussão acerca da governança clínica: relações entre esferas (políticas, planejamento e operacionalização) e maior investimento na autonomia e na singularização.

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