versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.05202018
No mundo, 1,1 bilhão de pessoas são fumantes1 e cerca de um terço dos adultos e metade dos jovens são regularmente expostos à fumaça do tabaco1,2. Estima-se que o tabagismo esteja relacionado a aproximadamente 50 doenças3 e a seis milhões de óbitos anuais1. São preocupantes o elevado custo econômico anual do tabagismo, correspondente a 1,8% do Produto Interno Bruto mundial1, e os danos ambientais relacionados ao tabaco, envolvendo a contaminação do solo, incêndios e o desmatamento4,5.
A partir dos anos 2000, constata-se a expansão de políticas públicas que buscam reduzir o impacto negativo do tabagismo em vários países6. O Brasil é considerado uma referência internacional no controle do tabaco, com ações implementadas há mais de três décadas7.
Este artigo apresenta um balanço da política brasileira de controle do tabaco de 1986 a 2016, baseando-se em contribuições dos referenciais da economia política8 e da análise de políticas públicas9,10 com destaque para o institucionalismo histórico11,12. O estudo apresentou natureza predominantemente qualitativa, compreendendo: revisão bibliográfica; análise documental; análise de bases de dados secundários; observação direta de eventos nacionais da política brasileira de controle do tabaco; e realização de entrevistas semiestruturadas com atores-chave da política.
A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT) corresponde ao primeiro tratado internacional de saúde pública negociado sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS)13. Adotada por consenso na 56ª Assembleia Mundial da Saúde, em 2003, e em vigor desde 2005, a CQCT abrange 181 Estados Partes14. A medidas elencadas pela CQCT visam à redução da demanda e da oferta do tabaco, à cooperação científica e técnica, à proteção ao meio ambiente e a medidas legislativas e legais para tratar da responsabilidade penal e civil13. O fortalecimento da implementação da CQCT foi elencado como um dos componentes da ‘Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável’15.
Considerando o balanço da implantação da CQCT em 2016, realizado a partir dos informes prestados pelos Estados Partes, as ações mais frequentes em todo o mundo referem-se à proteção contra a exposição à fumaça do tabaco (citadas por 88% dos Estados Partes), seguidas pelas medidas relacionadas à embalagem e etiquetagem de produtos de tabaco e a sua venda por e para menores de idade (citadas, respectivamente, por 76% e 71% dos Estados Partes). No entanto, algumas medidas previstas na CQCT foram reportadas como tendo baixa adesão, como as referentes à responsabilidade penal e civil (30%). As atividades de apoio a alternativas economicamente viáveis envolvidas no sustento aos fumicultores, trabalhadores e vendedores de produtos derivados do tabaco foram as menos citadas pelos Estados Partes (15%). Já entre os países das Américas, as ações voltadas para o combate ao comércio ilícito e para a pesquisa, vigilância e intercâmbio de informação foram citadas por 87% dos Estados Partes. Assim como observado no total de Estados Partes, o apoio a atividades alternativas economicamente viáveis foi a medida menos frequente, citada por 13% dos países das Américas (Figura 1).
Fonte: Elaborada pelos autores com base no relatório geral de acompanhamento da CQCT de 20161e relatórios nacionais de implantação da CQCT2. 1. WHO Framework Convention on Tobacco Control. 2016 global progress report on implementation of the WHO Framework Convention on Tobacco Control. 2016. 2. WHO FCTC Implementation Database [Internet]. [citado 30 de outubro de 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/fctc/implementation/database/
Figura 1 Proporção de Estados Partes segundo medidas da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco implantadas nas seis regiões definidas pela Organização Mundial da Saúdea e na Região das Américasb, 2016.Nota: a Inclui os 133 Estados Partes que enviaram, ao Secretariado da CQCT, os seus relatórios de progresso de implantação do ciclo de 2016: Afeganistão, África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argélia, Antígua e Barbuda, Austrália, Áustria, Azerbaijão, Bahamas, Bahrein, Bélgica, Belize, Benin, Butão, Bósnia e Herzegovina, Brasil, Burkina Faso, Burundi, Camarões, Canadá, Chile, China, Colômbia, Congo, Cook Ilhas, Costa Rica, Costa do Marfim, Croácia, Chipre, Dinamarca, Djibouti, Dominica, Equador, Egito, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Eslováquia, Espanha, Estônia, Filipinas, Finlândia, França, Gabão, Gâmbia, Geórgia, Gana, Grécia, Granada, Guatemala, Guiné, Guiana, Honduras, Hungria, Islândia, Índia, Irã, Iraque, Irlanda, Itália, Jamaica, Japão, Jordânia, Kuwait, Letónia, Líbano, Líbia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia, Madagáscar, Malásia, Maldivas, Mali, Malta, Mauritânia, Maurício, México, Micronésia, Moldova, Montenegro, Myanmar, Nova Zelândia, Nicarágua, Níger, Nigéria, Noruega, Omã, Países Baixos, Paquistão, Palau, Panamá, Papua Nova Guiné, Paraguai, Polônia, Portugal, Quénia, Quiribati, Quirguistão, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, República da Coreia, República Tcheca, República Democrática do Congo, Rússia, Santa Lúcia, Samoa, São Marinho, Senegal, Sérvia, Seychelles, Serra Leoa, Singapura, Sri Lanka, São Cristóvão e Neves, Síria, Suriname, Suazilândia, Suécia, Tanzânia, Tailândia, Togo, Tonga, Trinidad e Tobago, Tunísia, Turquia, Turquemenistão, Uganda, Ucrânia, União Europeia, Vanuatu, Vietnam, Iémen e Zimbábue. b Inclui os 23 Estados Partes da Região das Américas que enviaram, ao Secretariado da CQCT, os seus relatórios de progresso de implantação do ciclo de 2016: Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, São Cristóvão e Neves, Santa Lúcia, Suriname e Trinidad e Tobago.Legenda: CQCT- Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.
O Brasil teve um papel central desde o princípio nas negociações da CQCT (1999-2003). Por já apresentar um programa de controle do tabagismo robusto nessa época e ser um país em desenvolvimento produtor de fumo, foi indicado como vice-presidente do grupo de trabalho aberto aos Estados Membros da OMS que preparou a primeira proposta de texto do tratado. Além de presidir o Órgão de Negociação Intergovernamental da CQCT, o Brasil liderou o grupo de trabalho que preparou a primeira Conferência das Partes, estrutura formada por todos os Estados Partes do tratado que guia o trabalho do Secretariado e negocia as bases de implementação do tratado em reuniões bianuais16. O país manteve-se como uma liderança internacional do controle do tabaco nos anos subsequentes, com destaque para a nomeação de uma brasileira como chefe do Secretariado da CQCT em 2014.
Em que pese a heterogeneidade da implementação das medidas de controle de tabaco, a política brasileira é uma das mais avançadas no mundo17,18. O Brasil é uma referência internacional no controle do tabaco, sendo um dos primeiros países a regular a descrição, o conteúdo e as emissões dos produtos derivados do tabaco e a adotar imagens de advertência nas embalagens de cigarros19.
A partir de uma perspectiva da economia política, que considera três dimensões da política de saúde – de proteção social, econômica e de poder20 – cabe destacar a complexidade do controle do tabaco, que envolve diferentes organizações, estratégias, atores e interesses (Figura 2).
Fonte: Elaborada pelos autores.
Figura 2 As três dimensões da política de controle do tabaco.Nota: A elaboração da figura destina-se à contextualização do controle do tabaco no Brasil, incorporando resultados de ampla revisão bibliográfica sobre o tema e alguns resultados iniciais do trabalho de campo, que contribuíram para o aprimoramento do referencial analítico. No entanto, a pesquisa não teve a pretensão de esgotar todas as dimensões e aspectos elencados na figura.
O primeiros movimentos do controle do tabagismo no país tiveram início na década de 1960, a partir do debate sobre as doenças relacionadas ao tabaco21. Nas décadas seguintes, observam-se esforços de alguns estados no empreendimento de ações de combate ao fumo e acontecimentos em nível nacional que favoreceram a conformação do controle do tabaco como política de destaque (1979: elaboração da ‘Carta de Salvador’ e do ‘Programa Nacional Contra o Fumo’; 1980: realização da ‘1a Conferência Brasileira de Combate ao Tabagismo’; 1985: formação do ‘Grupo Assessor para o Controle do Tabagismo no Brasil’)7,22.
A partir de então, a institucionalização do controle do tabaco no Brasil foi marcada por mudanças mais gerais da política de saúde e por eventos específicos relacionados ao tema (Figura 3). Um primeiro marco a ser destacado é a criação do Programa Nacional de Combate ao Fumo (PNCF) em 1986, que passou a guiar a atuação da União no controle do tabaco com o apoio técnico do ‘Grupo Assessor’. O PNCF teve gestão compartilhada entre o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social e o Ministério da Saúde23.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Figura 3 Linha do tempo - institucionalização do controle do tabaco no Brasil.Nota: Parte superior- marcos gerais da política de saúde do Brasil. Parte inferior- marcos específicos do controle do tabaco.Legenda: Anvisa- Agência Nacional de Vigilância Sanitária; CONTAPP- Coordenação Nacional de Controle do Tabagismo e Prevenção Primária de Câncer; CNCT- Comissão Nacional para o Controle do Uso do Tabaco; CONICQ- Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco; CQCT- Convenção Quadro para o Controle do Tabaco; PNCF- Programa Nacional de Combate ao Fumo; PNPS- Política Nacional de Promoção da Saúde; SUS- Sistema Único de Saúde.
A Constituição Federal de 198824 foi importante para o controle do tabaco no país, como base para justificar medidas legislativas antitabaco posteriores21. A concepção de saúde como direito de todos e dever do Estado e a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) configuraram um relevante pano de fundo para o desenvolvimento de medidas de prevenção do tabagismo e apoio à cessação do tabagismo. O SUS, explicitado pela Lei Orgânica da Saúde25,26, abrange ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde, além de abarcar a vigilância em saúde, o controle de vetores e a educação sanitária. O sistema se orienta pelos princípios de descentralização, integralidade e participação da comunidade, e prevê a articulação intersetorial na condução de políticas e programas de interesse para a saúde26.
Nesse cenário, o Instituto Nacional de Câncer (INCA), vinculado à Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, assumiu em 1989 a coordenação das ações nacionais do Programa Nacional de Controle do Tabagismo27. O Programa buscava reduzir a aceitação social do tabagismo a partir da prevenção à iniciação ao fumo, da proteção da população contra a exposição à fumaça do tabaco e do apoio à cessação do tabagismo28. Entre 1990 e 1993, o Programa foi coordenado pela direção central do Ministério da Saúde em Brasília, voltando então a ser gerido pelo INCA. Em 1996, foi criada a Coordenação Nacional de Controle do Tabagismo e Prevenção Primária de Câncer (CONTAPP), abrangendo o Programa Nacional de Controle do Tabagismo e demais programas de prevenção de fatores de risco para o câncer29.
A criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 1999 possibilitou ações de controle e fiscalização dos produtos derivados do tabaco mais eficazes do que as desenvolvidas até então pelo Ministério da Saúde21. Nesse mesmo ano, formou-se a Comissão Nacional para o Controle do Uso do Tabaco (CNCT) a fim de representar o país nas negociações internacionais da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT)30.
Nos anos 2000, os acontecimentos relacionados à CQCT marcaram a trajetória do controle do tabaco no Brasil. Em 2003, com a adoção do tratado, a CNCT foi substituída pela Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CONICQ), sendo incorporados novos órgãos de diversos setores31. Com a ratificação da CQCT pelo Brasil em 2005, e a sua entrada em vigor nacionalmente em 2006, as diversas ações voltadas para o controle do tabaco passaram a integrar a Política Nacional de Controle do Tabaco (PNCT)32. Configurou-se, assim, uma política de Estado intersetorial e articulada entre os três entes federativos33.
No contexto da política nacional de saúde, algumas iniciativas potencializaram a implementação de medidas de controle do tabaco no país. No Pacto pela Saúde de 2006, o combate ao tabagismo foi destacado como uma das prioridades para a promoção da saúde34. No mesmo ano, a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) incluiu a prevenção e o controle do tabagismo, abrangendo ações educativas, legislativas, econômicas, de promoção de ambientes livres da fumaça de tabaco e de apoio à cessação do tabagismo35. Medidas educativas e legislativas também foram pautadas no programa ‘Mais saúde: Direito de Todos’, lançado em 200836.
Na segunda década do século XXI, o controle do tabaco permaneceu em destaque na política nacional de saúde. O ‘Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis no Brasil, 2011-2022’ apresenta a redução da prevalência de fumantes como uma de suas metas e prevê ações de vigilância, pesquisa e promoção da saúde relacionadas ao tabagismo37. Por sua vez, a revisão da PNPS em 2014 manteve o controle do tabaco como prioridade, sendo estimuladas ações educativas, legislativas, econômicas, ambientais, culturais e sociais38.
O arcabouço legal e normativo contribuiu para a institucionalidade do controle do tabaco no período. A Lei Federal no 9.294/1996 e sua regulamentação posterior (Decreto no 2.018/1996, Lei no 10.167/2000, Lei nº 12.546/2011 e Decreto nº 8.262/2014), permitiram avanços significativos em relação à divulgação de advertências, à restrição da propaganda dos produtos derivados do tabaco e à proibição do fumo em ambientes coletivos fechados. Destacam-se no rol de dispositivos normativos das últimas décadas diversas portarias do Ministério da Saúde e resoluções da Anvisa (destinadas à regulação de produtos de tabaco) e do Banco Central (voltadas à regulamentação da produção de fumo).
Várias medidas de controle do tabagismo foram implementadas no Brasil nas três últimas décadas, em sua maioria relacionadas à redução da demanda de tabaco. Uma das principais ações refere-se aos reajustes periódicos dos principais impostos sobre cigarros e dos preços da venda desses produtos no varejo. Ressaltam-se as mudanças ocorridas em 2011 envolvendo o recolhimento do Imposto sobre Produtos Industrializados e o estabelecimento de um preço mínimo de venda de cigarros. Apesar do comércio ilícito de produtos de tabaco, a experiência brasileira sugere que o aumento dos impostos pode expandir as receitas do governo e reduzir a prevalência de fumantes39.
A promoção de ambientes livres da fumaça de tabaco representa uma das medidas de maior sucesso da política brasileira. A partir do fim dos anos 1980, a restrição do fumo avançou no país subsidiada por legislações nacionais, estaduais e municipais. Desde 2011, não é permitido fumar em ambientes coletivos fechados, privados ou públicos, salvo algumas exceções (locais de culto religioso, tabacarias, estúdios e instituições de saúde)40,41.
As advertências sobre os malefícios do tabagismo nas embalagens e publicidade dos maços de cigarros, adotadas a partir de 1988, foram reformuladas com a inclusão de imagens para sensibilizar a população. Com a criação da Anvisa, em 1999, a regulação de produtos de tabaco passou a ser um importante componente da política brasileira, abrangendo o controle do registro, embalagens e conteúdo dos produtos. O Laboratório de Tabaco e Derivados, inaugurado em 2012, é o sexto laboratório público no mundo e o primeiro da América Latina voltado exclusivamente para análises de produtos derivados do tabaco42.
A conscientização e a educação da sociedade sobre o impacto negativo do tabagismo têm como estratégia fundamental a realização de campanhas nas principais datas comemorativas relacionadas ao controle do tabaco. O Dia Nacional de Combate ao Fumo (29 de agosto, instituído em 1986) e o Dia Mundial sem Tabaco (31 de maio, instituído em 1987) mobilizam atores nas três esferas de governo para a promoção de atividades de prevenção ao tabagismo e incentivo à cessação do tabagismo. Ressalta-se também o desenvolvimento de ações educativas em escolas, unidades de saúde e ambientes de trabalho, como o Programa Saber Saúde, que já atingiu 2.389.126 alunos de 14.280 escolas em 1.212 municípios33. Desde o lançamento do Curso de Educação à Distância (EAD) do Saber Saúde, em 2012, foram capacitados 1390 profissionais que atuam na área da educação em todo o país43. Por sua vez, a criação de observatórios tem colaborado com o compartilhamento de conhecimento relacionado ao controle do tabaco. Desde 2011, o ‘Observatório da Política Nacional de Controle do Tabaco’ disponibiliza informações atualizadas sobre os diversos setores envolvidos com a implementação da CQCT no país. Já o ‘Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco’, lançado em 2016, compõe um projeto global estabelecido pelo Secretariado da CQCT que busca monitorar, analisar e divulgar as atividades da indústria do tabaco44.
Também vale destacar a evolução da restrição à publicidade e propaganda de produtos de tabaco. Ainda no fim dos anos 1980, iniciaram-se a restrição da publicidade dos produtos derivados do tabaco nos veículos de comunicação e a proibição de mensagens que induzam ao consumo dos produtos e a sua relação com o bem-estar. A Lei Federal nº 10.167/2000 proibiu o patrocínio de eventos culturais e esportivos por marcas de cigarros e a sua propaganda nos grandes meios de comunicação. Desde 2011, a publicidade está limitada à exposição dos produtos nos locais de vendas41.
O apoio à cessação do tabagismo também é um importante componente da PNCT classificado como medida de redução da demanda de tabaco. Desde 2004, o tratamento de fumantes é ofertado na rede do SUS, principalmente através das unidades básicas de saúde. O número de unidades que ofereceram o tratamento, o número de fumantes atendidos e que pararam de fumar, assim como as taxas de abandono e cessação, apresentaram avanços significativos. Em 2013, 1308 unidades ofereceram atendimento a 154.207 fumantes, sendo que 71.327 deixaram de fumar (Figura 4). As taxas de abandono e de cessação corresponderam a 28% e 53%, respectivamente. Houve expansão do fornecimento de medicação para a cessação de fumar, abrangendo 77% dos casos (Figura 5). Além disso, desde 2001 o Ministério da Saúde oferece um serviço por telefone de apoio ao fumante, atualmente correspondente ao ‘Disque Saúde 136’.
Fonte: Dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Câncer.
Figura 4 Tratamento dos fumantes no Sistema Único de Saúde de 2005 a 2013.
Fonte: Dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Câncer.
Figura 5 Evolução dos indicadores de abandono, cessação e uso de medicação de 2005 a 2013.
Entre as medidas destinadas à redução da oferta de tabaco, destacam-se o combate ao comércio ilícito de tabaco e a diversificação de produção em áreas plantadas de fumo. Apesar da forte interferência das empresas de tabaco para obstruir as ações de redução de tabagismo, especialmente na região Sul do país, houve avanços nos últimos 30 anos. No fim da década de 1990, definiram-se regras para a comercialização de cigarros, incluindo o registro especial, o uso dos selos de controle e o imposto de exportação. A partir da atuação integrada entre Receita Federal e Policia Federal contra o contrabando e a falsificação de cigarros, com destaque para a criação do Sistema de Controle e Rastreamento da Produção de Cigarros (Scorpios) em 2007, o combate ao mercado ilegal de cigarros vem apresentando resultados expressivos. Em 2016, o valor correspondente ao montante de cigarros destruídos, a partir da apreensão por infração fiscal, alcançou R$ 581 milhões45.
Considerando que o Brasil é o segundo maior produtor e o maior exportador de folhas de fumo do mundo46, em 2005, com a ratificação da CQCT, foi lançado o Programa de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco. Entre 2011 e 2016, previu-se o investimento de mais de R$ 60 milhões em ações de assistência técnica e extensão rural (Ater) para os principais municípios produtores de tabaco, envolvendo mais de 20 mil famílias47. Entre as estratégias para a diversificação de culturas, ressalta-se o estabelecimento de critérios para a concessão de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) aos fumicultores em regime de parceria ou integração com a indústria do fumo. Para a concessão do benefício, no ano agrícola 2016/2017 exige-se que a receita bruta gerada por outras atividades que não a produção de fumo seja de, no mínimo, 20%. Para o ano agrícola 2020/2021, a exigência mínima passa a ser de 50%48.
Por fim, ações de pesquisa e vigilância têm sido fundamentais para a PNCT. Desde 1997, o INCA atua como “Centro Colaborador da OMS para o Controle do Tabaco”, sendo uma referência na América Latina na produção de materiais, capacitação de recursos humanos e assistência técnica destinadas ao controle do tabagismo43. Várias pesquisas envolvendo o monitoramento de indicadores sobre o tabagismo são realizadas periodicamente no país, como o inquérito ‘Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico’ (Vigitel), aplicado desde 2006. Outros exemplos são: a ‘Pesquisa Especial sobre Tabagismo’ (Petab) em 2008; a ‘Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar’ (PeNSE) em 2009, 2012 e 2015; a ‘Pesquisa Nacional de Saúde’ (PNS) em 2013 e o ‘Projeto Internacional de Avaliação da Política de Controle do Tabaco’ (Projeto ITC) em 2009, 2012 e 2016/17. Vale ainda destacar o lançamento do ‘Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas não Transmissíveis no Brasil, 2011-2022’, que inclui ações de vigilância, pesquisa e promoção da saúde relacionadas ao tabagismo.
Ações intersetoriais visando ao controle do tabaco implementadas no Brasil nas últimas décadas favoreceram uma significativa redução da prevalência de fumantes (de 35% em 1989 para 15% em 2013)49-52. Vale destacar a mudança da aceitação social ao tabagismo, que passou de uma prática amplamente disseminada nas décadas de 1980 e 1990 para um contexto de rejeição a partir dos anos 200053-55.
A participação ativa do país no processo de concepção da CQCT foi decisiva para a conformação do seu protagonismo no controle do tabaco no âmbito mundial e o estabelecimento de parcerias com organismos internacionais. Além disso, foram fundamentais para conferir institucionalidade à política brasileira de controle do tabaco a sua inserção em um sistema público e universal de saúde, a construção de um arcabouço legal e normativo específico, a coordenação nacional da política com envolvimento de diversos setores, a implementação da CQCT e o processo de descentralização da política.
A criação da Anvisa com o mandato legal de regular produtos do tabaco no país e fiscalizar leis nacionais nesta área foi de extrema relevância. A consolidação da CONICQ como instância estratégica de coordenação governamental da política apresenta-se como um compromisso de responsabilização mútua entre diferentes órgãos governamentais pelo controle do tabaco56.
Ressalte-se também o papel da sociedade civil e dos meios de comunicação, com destaque para a Aliança de Controle do Tabagismo, a academia, as organizações do setor saúde (sobretudo as associações médicas) e as associações de defesa dos agricultores familiares e dos consumidores. Esses atores têm sido fundamentais para a PNCT por meio da realização de pesquisas sobre temas diversos, promoção de diferentes formas de capacitação e formação de públicos diversos, empenho nas campanhas nos dias comemorativos de controle do tabaco e realização contínua de ações de advocacy junto ao Executivo, Judiciário e Legislativo.
No entanto, persistem desafios importantes para a política57. São imprescindíveis o fortalecimento fortalecimento do Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco e a maior articulação dos atores envolvidos com esse tema, sobretudo os órgãos governamentais do setor agrário, sociedade civil e estados e municípios produtores. Em 2016, a transferência das competências do Ministério do Desenvolvimento Agrário para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, da Casa Civil, representa um obstáculo adicional para a mobilização de recursos humanos e financeiros para o Programa.
O combate ao comércio ilícito de cigarros e a proteção da PNCT da interferência da indústria do fumo também se configuram como desafios. Destaque-se a urgência de ratificação do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco, a destinação de recursos financeiros a atores envolvidos com a política promovida por empresas produtoras de tabaco, a expansão de novos produtos e a judicialização da política, sobretudo quanto à regulação de produtos pela Anvisa.
Também é importante fortalecer a capacidade de atuação da CONICQ. Para isso, cabe enfrentar limites como a baixa priorização do controle do tabaco na agenda de alguns órgãos que compõem a Comissão, os conflitos entre as perspectivas econômica e sanitária e as resistências da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Fumo, vinculada ao Ministério da Agricultura, e das organizações ligadas ao setor produtivo do fumo.
O estudo reforça a relevância de serem consideradas, na análise de políticas de saúde complexas, as relações entre contexto internacional e nacional e a articulação entre diferentes setores e atores governamentais e não governamentais. O Brasil apresentou iniciativas pioneiras e atores que influenciaram negociações para controle do tabaco no plano internacional. No entanto, após a entrada em vigor da CQCT, a política brasileira passou a ser fortemente influenciada pelo cenário internacional, estabelecendo, assim, uma relação de “mão-dupla”57. Além disso, apesar do controle do tabaco no Brasil ter se iniciado a partir de estratégias do setor saúde e seu reconhecimento ser pautado principalmente pelo combate à morbimortalidade relacionada ao tabagismo, os avanços na PNCT dependem fortemente do comprometimento de outros setores, sobretudo os relacionados à economia e agricultura. A articulação entre Executivo, Judiciário, Legislativo, mídia e sociedade civil também é fundamental para assegurar a institucionalidade do controle do tabaco no Brasil.
Por fim, em meio à dinâmica da agenda governamental e à instabilidade política e econômica que periodicamente impactam o país, a sustentabilidade da PNCT configura-se como um grande desafio. São fundamentais a manutenção da priorização do tema na agenda do setor saúde e a expansão de medidas legislativas, econômicas, regulatórias e educativas. O enfrentamento dos interesses econômicos relacionados à indústria do tabaco é determinante para assegurar avanços em áreas ainda frágeis. A continuidade e a consolidação da política de controle do tabaco em médio e longo prazos também dependem da persistência de um marco institucional amplo que norteie a atuação do Estado na proteção social, consoante com as diretrizes do SUS, em que as necessidades sanitárias se sobreponham aos interesses econômicos.