versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 supl.2 Rio de Janeiro 2016 Epub 03-Nov-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00188814
As inovações tecnológicas que geram novos produtos, novos processos de produção e novas formas organizacionais 1 jogam papel decisivo no processo de desenvolvimento das sociedades, pois contribuem para o crescimento econômico e o bem-estar da população 2), (3. O reconhecimento de sua importância atingiu um ponto de amplo consenso entre governantes, formuladores de políticas públicas, empresários e comunidade científica dos países desenvolvidos, onde as políticas de inovação se desenvolveram como um amálgama de políticas de ciência e tecnologia e com o assentimento de que a inovação é um fenômeno sistêmico e complexo 4.
A natureza sistêmica dos processos de inovação refere-se à influência exercida por fatores externos às organizações, tais como instituições (leis, regulações, regras etc.), processo político, infraestrutura de pesquisa pública (universidades, institutos de pesquisa, agências de fomento etc.), instituições financeiras, qualificação dos profissionais, entre outros 5. Estes elementos são os principais componentes de sistemas para criação e comercialização do conhecimento. Desse modo, as inovações emergem em tais sistemas de inovação, que reúnem fatores econômicos, políticos, sociais, organizacionais e institucionais que influenciam o desenvolvimento, a difusão e o uso das inovações 6. Estes aspectos tendem a atuar como incentivos e/ou obstáculos para o processo inovativo.
De modo geral, as inovações ocorrem nas empresas, mas o Estado pode induzir fortemente o comportamento, as estratégias e as decisões empresariais relativas à inovação 7. Mais que isso, o reconhecimento do caráter coletivo e social da inovação deve ensejar a adoção de políticas públicas focadas no papel específico do setor público nesse processo, de modo a contribuir para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) que, de outra forma, não aconteceriam 8), (9. Diversos instrumentos de política são utilizados para essa finalidade, incluindo financiamento público a instituições de ensino e pesquisa, infraestrutura para inovação, mecanismos de transferência de tecnologia, demanda pública, compras governamentais etc. 10. Esses instrumentos possibilitam lidar com os riscos associados ao processo inovativo (custos elevados, prazos longos e incertezas). Além disso, contribuem para a geração de impactos diretos e indiretos, de curto e de longo prazo, nos campos científico, econômico e social 11.
Na área da saúde, o Estado pode concretamente orientar e sustentar projetos particulares de P&D e favorecer o uso apropriado das tecnologias mediante a adoção de um conjunto articulado de políticas públicas 12: políticas comerciais (que influem na criação e nas atividades das empresas), políticas de P&D (que promovem o desenvolvimento de tecnologias particulares que podem transformar os serviços de saúde) e políticas de saúde (que exercem um impacto direto sobre a oferta de cuidados em saúde, incluindo a regulação da entrada de novas tecnologias nos sistemas de saúde). Diversos exemplos ilustram a importância e a centralidade do Estado na geração de inovações no campo da saúde, tal qual: 75% de todas as moléculas aprovadas entre 1993 e 2004 pela agência federal norte-americana que regulamenta e fiscaliza alimentos e medicamentos contaram com financiamento público 9.
No Brasil, a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 200, que compete ao Sistema Único de Saúde (SUS) incrementar o desenvolvimento científico e tecnológico em sua área de atuação. Entretanto, alguns aspectos evidenciam a desarticulação entre o sistema de saúde e o sistema de inovação brasileiros no período recente 13), (14: (a) inexistência de relações orgânicas entre a rede de prestação de serviços e as empresas do complexo industrial da saúde (CIS); (b) política de saúde centrada na ampliação da oferta dos serviços, sem maiores considerações sobre a capacidade de inovação da indústria e, portanto, sobre o uso do poder de compra do Estado para uma política de desenvolvimento das empresas e laboratórios nacionais; (c) política de ciência e tecnologia focada no sistema científico, desprezando articulações com uma política industrial de inovação e com as necessidades do sistema de saúde; e (d) inexistência de políticas regulatórias convergentes no campo da propriedade intelectual e da vigilância sanitária.
Problemas na balança comercial e forte presença de patentes de não residentes são dois indicadores da desarticulação que caracteriza o sistema de inovação do setor de saúde no Brasil. De fato, pode-se constatar a forte dependência tecnológica externa no que diz respeito ao acesso a novas tecnologias em saúde, como mostra o resultado da balança comercial desses produtos: o déficit acumulado passou de, aproximadamente, US$ 3 bilhões ao ano, em 2003, para um patamar superior a US$ 10 bilhões em 2012 15. Ao mesmo tempo, 87% das 2.972 patentes obtidas pelo país em 2013 pertenciam a não residentes (estrangeiros) 16, o que demonstra o fraco desempenho do setor produtivo nacional em termos de geração de novas tecnologias e o caráter ainda imaturo do sistema de inovação brasileiro 17.
O presente artigo tem por objetivo investigar a atual política de desenvolvimento produtivo da saúde e seus reflexos sobre a capacitação dos laboratórios públicos nacionais. Para essa finalidade, contextualiza os diferentes ciclos de interação entre a política de saúde e sua base produtiva; discute a estratégia do governo brasileiro para o desenvolvimento; a transferência e a absorção de tecnologia na área da saúde (as parcerias para o desenvolvimento produtivo); e apresenta duas parcerias vigentes envolvendo laboratórios públicos para a produção de medicamentos antirretrovirais e vacinas contra a influenza.
O padrão de desenvolvimento capitalista e a política de saúde interagem de forma a construir diferentes formatos de organização dos serviços, combinados com a constituição de uma base produtiva própria, integrada por indústrias voltadas para a produção de diferentes tecnologias (soros, vacinas, medicamentos, equipamentos, materiais etc.) em cada momento histórico 13), (18. O grau de dependência externa dessa base produtiva acompanha os padrões históricos de desenvolvimento capitalista, em que países de industrialização originária (Inglaterra) ou atrasada (Europa Ocidental e Estados Unidos) tiveram ‒ e ainda têm ‒ predomínio na produção e no desenvolvimento tecnológico em grande parte desse segmento industrial 19. Nos países periféricos ou de industrialização tardia 20, como é o caso brasileiro, essa base industrial foi muito incipiente e dependente do modelo de desenvolvimento adotado.
No Brasil, é possível identificar três arranjos ou modelos emblemáticos de interação entre política e produção industrial na área da saúde no período recente 21: (i) a era do saneamento, na Primeira República (1889-1930), quando o país conformou uma base produtiva pública voltada para a produção de soros e vacinas pelos institutos públicos (Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Butantan); (ii) a era previdenciária ou do seguro coletivo, no período de 1930-1988, quando a base produtiva da política passou a ser exercida pela importação de quase todos os insumos necessários, ao lado de uma produção interna de medicamentos e equipamentos de baixa densidade tecnológica; e (iii) a era do SUS, no pós-1988, quando houve a combinação da expansão da base produtiva pública de laboratórios públicos, articulada a um modelo de parceria público-privado na saúde, configurando uma sinergia entre expansão do acesso e capacitação tecnológica e produtiva das instituições públicas e privadas.
O primeiro modelo (era do saneamento) teve como características principais o fato de ser público e nacional, pois foi composto por instituições e serviços públicos, contou com financiamento público e apresentou baixo grau de dependência externa 22), (23), (24. Além disso, abriu caminho para um desenvolvimento científico genuinamente nacional na área de biotecnologia (soros e vacinas) 25), (26. Esse primeiro arranjo, cujo foco era voltado para o combate das grandes endemias e epidemias, foi construído e se desenvolveu a partir da Primeira República (1889-1930). Teve, como protagonistas, as instâncias governamentais de formulação e coordenação de ações na área da saúde (federal e estadual) e os institutos públicos de ciência e tecnologia, criados no final do século XIX e início do século XX.
O segundo modelo (previdenciário) desenvolveu-se junto com o modelo de saúde previdenciário, a partir dos anos 1930 27), (28), (29. Ao contrário do modelo anterior, esse arranjo foi essencialmente de natureza privada e internacional. Seu financiamento era misto (público e privado), com predomínio da oferta de serviços privados (hospitais e laboratórios) e uma cadeia internacionalizada de produtores e fornecedores de insumos, medicamentos e equipamentos médicos. Tudo isso se traduziu num quadro de grande dependência externa, com déficits crescentes da balança comercial desses produtos.
O terceiro modelo (era do SUS) apresentou um incremento importante na última década, quando se consolidou um novo modelo de interação entre Estado e mercado voltado para o desenvolvimento nacional 30. Foram criadas diversas políticas públicas com vistas a um novo ciclo de investimentos em infraestrutura e alguns segmentos industriais, com crédito subsidiado e linhas de financiamento para fomento à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico de áreas específicas, com destaque para a saúde 31.
Na história da política de saúde, os dois primeiros modelos conviveram lado a lado no período desenvolvimentista (1930-1980). No entanto, o predomínio do modelo público e nacional foi sendo substituído, aos poucos, pelo arranjo privado internacional, em função de diversos fatores: mudança tecnológica (de produtos biotecnológicos para a química fina e síntese de moléculas no setor farmacêutico); criação dos laboratórios privados produtores de soros e vacinas (como o Laboratório Pinheiros, em São Paulo); protagonismo da indústria de base e dos investimentos em infraestrutura na agenda de desenvolvimento; e internacionalização do capital com a vinda das indústrias multinacionais para o Brasil.
A convivência entre os dois modelos permaneceu durante as décadas de 1980 e 1990, quando políticas neoliberais foram adotadas. De um lado, havia iniciativas para fomentar o modelo público via políticas públicas, como a expansão da imunização (Programa Nacional de Imunizações ‒ PNI), o incentivo à produção pública de insumos (Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos, por exemplo) e, ainda, o estímulo à assistência à saúde baseada na atenção primária (com a emergência do Programa Saúde da Família). De outro, houve fortalecimento das empresas de seguros e planos de saúde privados, o que ajudava a consolidar as características do modelo previdenciário 32: oferta de leitos e de exames privados baseada no forte incremento da importação de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares, contando com financiamento privado e subsídios públicos para a expansão da oferta e a compra de serviços de atenção à saúde.
No período atual, o primeiro modelo (público e nacional) ganha nova centralidade na agenda governamental. Ilustram esse momento as políticas específicas de fomento às atividades de ciência e tecnologia (C&T) e de apoio às empresas nacionais do complexo industrial da saúde, ao lado da expansão da capacidade hospitalar e ambulatorial pública, principalmente nas regiões Nordeste e Centro-oeste. No entanto, observa-se também a expressiva expansão do segundo modelo (privatista e internacionalizado) via incremento dos níveis de cobertura da saúde suplementar, o que vem favorecendo e incentivando a expansão concentrada e a capitalização das empresas operadoras de seguros e planos de saúde.
A conformação dos dois arranjos assistenciais produtivos na saúde ilustra as tensões históricas entre saúde e desenvolvimento no Brasil 21. Ao mesmo tempo em que esses arranjos contribuíram para a desmercantilização do acesso aos serviços de saúde mediante a construção do SUS, eles também possibilitaram o adensamento da mercantilização da oferta (assalariamento dos profissionais, constituição das empresas médicas etc.) e a constituição da saúde como um campo próprio de acumulação de capital 18. Esses arranjos não foram constituídos em um mesmo momento histórico, nem tampouco de forma combinada, mas eles convivem hoje de maneira complexa no sistema de saúde brasileiro (Tabela 1).
Em março de 2004, o governo brasileiro lançou a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) que estabeleceu um marco na retomada das políticas de indução da produção e desenvolvimento tecnológico no país. A área da saúde foi contemplada, fundamentalmente, no setor de fármacos e medicamentos. Entretanto, a estruturação e a implantação da PITCE foram embrionárias e continham significativas lacunas institucionais, além da desarticulação com a política macroeconômica da época, desfavorável ao crescimento sustentado 33. Nos anos seguintes, com a instituição do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS) e a criação do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (DECIIS) na estrutura do Ministério da Saúde, a interação entre política de saúde e política industrial adquiriu mais densidade institucional, o que permitiu incluir, na agenda governamental, a importância do complexo industrial da saúde e a produção pública de tecnologias estratégicas para o SUS.
A PITCE foi sucedida pela Política de Desenvolvimento Produtivo, lançada em maio de 2008, que propunha superar as limitações de sua antecessora e ampliar o escopo de ação para um grande número de setores. A saúde foi incluída como uma das áreas estratégicas, com metas explícitas relacionadas à produção local de produtos estratégicos para o SUS e à redução do déficit comercial dos segmentos que conformam o complexo industrial da saúde. Apesar de avanços no modelo de governança proposto no âmbito da política, com definição clara de funções e responsabilidades, sua execução foi comprometida pelo aprofundamento da crise econômica internacional, que reverteu as condições favoráveis que haviam pautado sua formulação, limitando o cumprimento das metas propostas 34.
Partindo do reconhecimento de uma conjuntura desfavorável para a indústria brasileira, foi lançado o Plano Brasil Maior (PBM), em agosto de 2011, que substituiu a política anterior. Com o objetivo geral de sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto econômico adverso, o PBM estabeleceu dez macrometas programáticas e adotou instrumentos para reduzir os custos do trabalho e do capital (desonerações tributárias) e apoiar a inovação e defesa do mercado interno (marco regulatório, linhas de financiamento e compras governamentais). O plano contemplou o complexo industrial da saúde como uma das 19 agendas estratégicas setoriais, com a definição de objetivos prioritários e medidas a serem implementadas. Embora a maioria das medidas sistêmicas e setoriais tenha sido implementada 35), (36, avaliações preliminares sugerem que o PBM não logrou apresentar os resultados esperados 37), (38.
Articuladas com essas políticas de desenvolvimento econômico, algumas medidas foram adotadas pelo Ministério da Saúde para estimular a produção nacional de itens considerados estratégicos e prioritários para o SUS. São exemplos dessas medidas a criação do Programa de Investimento no Complexo Industrial da Saúde (Procis), o uso do poder de compra do Estado, com aplicação de margem de preferência de até 25% em licitações realizadas no âmbito da administração pública federal para aquisição de produtos médicos, e a formação das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre instituições públicas e entidades privadas para produção de produtos estratégicos ao atendimento das demandas do SUS, com previsão de transferência e absorção de tecnologia.
A institucionalização dessas medidas ocorreu por meio de um conjunto amplo de normas adotadas na última década (Tabela 2). Trata-se de um arcabouço regulatório que não foi construído de uma só vez, mas por camadas, refletindo a forma como o tema ganhou centralidade na agenda governamental no período recente.
Dados apresentados pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2014 apontam 103 PDP em execução, com 33 produtos com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e 26 produtos adquiridos pelo Ministério da Saúde por meio dessas parcerias 39. Ainda segundo o Ministério da Saúde, são 74 instituições envolvidas, sendo 19 laboratórios públicos e 55 entidades privadas. Tal cenário propiciou um faturamento de R$ 3,8 bilhões para as instituições públicas e uma economia de R$ 1,6 bilhão no período de 2011-2014. Ao final dos projetos em fase PDP, estima-se uma economia de recursos em torno de R$ 5,3 bilhões.
Não obstante os avanços proporcionados pelas PDP, alguns limites e necessidades de aperfeiçoamento são apontados por estudiosos 40), (41), (42: restrista capacidade orçamentária do Ministério da Saúde para impulsionar o mercado por meio de seu próprio poder de compra; premência em se ultrapassar os aspectos meramente regulatórios e sustentar um papel ativo do Estado na promoção do desenvolvimento; importância de maximizar a taxa de sucesso das parcerias estabelecidas quanto à entrega de produtos e à efetiva transferência de tecnologia aos produtores nacionais; pertinência de verticalizar o processo produtivo dos componentes farmoquímicos e farmacêuticos envolvidos nas parcerias; imprescinbilidade de garantir a qualidade dos produtos envolvidos nas parcerias estabelecidas; e necessidade de interromper as parcerias que não estiverem cumprindo as metas acordadas. Outros aspectos que obstam a efetividade das PDP foram apontados por Gadelha & Costa 43: carência de expertise em relação aos processos de transferência tecnológica do setor privado para o público e limitação dos produtores públicos em relação à competência técnica, à capacidade de gestão dos laboratórios e às boas práticas de fabricação da Anvisa.
Lacunas e imperfeições também foram apontadas na nova legislação que regulamenta as PDP 44: regras obscuras em relação à escolha do parceiro privado; falta de transparência das informações relativas às PDP celebradas; e insegurança jurídica quanto à proteção dos direitos de propriedade intelectual. Outras questões igualmente controversas dizem respeito à contratação direta das parcerias (sem necessidade de licitação), à possibilidade de as parcerias travestirem simples compras de medicamentos em acordos de transferência de tecnologia; e ao fato de parte dos produtos objetos das PDP serem produtos em estágio de desenvolvimento maduro, com patentes vencidas ou perto de vencer, o que garantiria mercados para as empresas farmacêuticas transnacionais envolvidas nos acordos até a produção nacional se efetivar de fato.
Apesar das fragilidades apontadas, diversas entidades representativas do complexo industrial da saúde (Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades ‒ ABIFINA, Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios ‒ ABIMO, Associação Laboratórios Farmacêuticos Nacionais ‒ Alanac, Pró-Genéricos) e do campo da saúde coletiva (Associação Brasileira de Saúde Coletiva ‒ Abrasco e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ‒ Cebes) se manifestaram recentemente favoráveis à política de desenvolvimento produtivo do Governo Federal implementada pelo Ministério da Saúde 45.
Um dos aspectos importantes das PDP é a capacitação dos laboratórios públicos, envolvendo os diferentes aspectos já referidos para a inovação e a autossuficiência do setor saúde. De acordo com o Ministério da Saúde 46, são 21 laboratórios oficiais no país que, juntos, produzem cerca de 80% das vacinas e 30% dos medicamentos utilizados no SUS 47. Esses laboratórios têm papéis relevantes de reguladores de preços; de suporte em situações emergenciais; de fornecedores a programas estratégicos no campo da saúde coletiva, como o DST/AIDS e o PNI; e de parceiros para o desenvolvimento de novos produtos e formulações farmacêuticas 48), (49.
Apesar da relevância dos laboratórios públicos no atendimento das necessidades do SUS, alguns estudos 50), (51 evidenciam a existência de problemas de ordem política, administrativa e de funcionamento, aliados à baixa capacitação tecnológica e à escassez de recursos humanos qualificados. Além disso, o baixo grau de utilização da capacidade instalada e a falta de agilidade no atendimento das demandas do SUS, em virtude da necessidade de seguir as regras do processo de compras do setor público, principalmente para aquisição de matéria-prima importada, também constituem entraves à atuação dos laboratórios públicos 52.
Para discutir a influência das PDP na capacitação dos laboratórios públicos, foram selecionadas duas parcerias, uma ligada ao programa de controle do HIV/AIDS (medicamentos antirretrovirais) e outra ao PNI (vacinas contra o influenza). Os critérios para escolha dessas parcerias consideraram a vinculação dos produtos a programas estratégicos, a participação de diferentes laboratórios públicos na sua execução e a dois estudos recentes que possibilitam uma visão mais crítica desse processo 49), (53. No caso dos medicamentos antirretrovirais, a existência de efeitos visíveis provocados no curto prazo em termos de crescimento do faturamento, maior disponibilidade de insumos farmacêuticos ativos (IFA) produzidos localmente e economia para as compras públicas e de divisas. No segundo caso, destaca-se a amplitude das mudanças envolvidas: construção de novas instalações; compra e adaptação de equipamentos; e processo de fabricação em larga escala, envolvendo forte participação do ente público em todas as fases.
O Brasil é referência mundial no combate ao HIV/AIDS. Há 16 anos, o SUS garante acesso universal aos medicamentos necessários para o combate ao HIV, além de exames e acompanhamento médico, que beneficiam 217 mil pessoas, correspondentes a 97% dos brasileiros diagnosticados com AIDS. A produção de medicamentos antirretrovirais (ARV) no Brasil possui marcos importantes, como o caso do Efavirenz, em que o país decretou, pela primeira vez, o licenciamento compulsório, garantindo melhores preços a partir da produção nacional desse medicamento 54.
Atualmente, o Ministério da Saúde investe R$ 850 milhões na aquisição de 21 antirretrovirais. Dos 21 produtos, oito foram objetos de PDP entre 2009 e 2012. Os laboratórios públicos envolvidos com a produção de ARV são: Fundação Ezequiel Dias ‒ Funed (Tenofovir 300mg, Entecavir), Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco ‒ LAFEPE (Tenofovir, Ritonavir termoestável, Raltegravir) e Instituto de Tecnologia em Fármacos ‒ Farmanguinhos em parcerias com Funed, Fundação para o Remédio Popular ‒ FURP e LAPEDE [Sulfato de Atazanavir, Lopinavir + Ritonavir, Tenofovir + Lamivudina (2 em 1) e Tenofovir + Lamivudina + Efavirenz (3 em 1)]. Em relação ao Tenofovir, dois laboratórios públicos (Funed e LAFEPE) participaram com parceria estrangeira (Blanver/Nortec) e nacional (Cristália).
No que tange às dimensões que podem traduzir o impacto das PDP nos processos de capacitação dos laboratórios públicos, alguns dos aspectos identificados convergem com os resultados apresentados por Rezende 49:
a) Faturamento anual: todos os envolvidos apresentaram aumento de faturamento de duas a três vezes depois da implantação da PDP;
b) Impactos inovativos: aumento da capacidade de produção ou prestação de serviços; abertura de novos mercados e ampliação de participação e melhoria da qualidade dos bens ou serviços;
c) Atividades internas de P&D: relaciona o número de pessoas ocupadas nessas atividades, tendo, nos laboratórios públicos, um crescimento relativo menor que nos laboratórios privados, mas com uma dedicação exclusiva significativamente maior;
d) Inovações organizacionais: adoção de novas técnicas de gestão (revisão dos processos de negócio, conhecimento, controle da qualidade total e sistemas de formação), conceitos e estratégias de marketing e programa de farmacovigilância;
e) Inovações de produto: a maioria dos laboratórios que inovaram seus produtos tributa principalmente as parceiras nesse tipo de inovação;
f) Inovação de processo: menor desempenho dos laboratórios públicos frente aos privados.
Muitos dos problemas e obstáculos encontrados remetem a situações historicamente construídas com aspectos culturais e organizacionais importantes: dificuldade para se adequar a padrões, normas e regulamentações; rigidez organizacional; falta de pessoal qualificado; custos elevados para a inovaç; e escassez de fontes apropriadas de financiamento. Soma-se a isso a existência de dificuldades relacionadas à falta de cultura empreendedora (estabelecimento de uma nova visão de seu papel na política nacional de C&T) e posicionamento em termos de agilidade de processos, rede de relacionamentos com outras empresas e instituições de pesquisa 51.
O Brasil tem uma longa história de sucesso na área de imunização. Destacam-se, nas décadas de 1970 e 1980, duas expressivas estratégias traçadas pelo Ministério da Saúde: a criação do PNI, em 1973, e o Programa de Autossuficiência Nacional (PASNI), em 1985. Essas estratégias, notadamente a implantação do PNI, contribuíram, de modo significativo, para a consolidação do sistema de saúde brasileiro, sobretudo no que se refere aos seguintes aspectos 55: planejamento em saúde pública; metodologia de operacionalização de grandes mobilizações; criteriosa metodologia de capacitação dos profissionais de saúde do setor público; avanço na ciência e tecnologia; promoção da qualidade de vida e longevidade; olhar diferenciado para grupos de maior vulnerabilidade; e garantia da cidadania.
Uma redefinição importante no calendário vacinal foi a introdução da vacina contra a influenza. Decidida em 1999, adotou duas vertentes epidemiológicas: a de beneficiar a crescente população idosa do país e a de incluir a transferência da tecnologia de produção de um laboratório estrangeiro (Sanofi) para um laboratório público, no caso, o Instituto Butantan.
O contrato de assistência técnica para realização da transferência de tecnologia foi assinado em 1º de outubro de 1999. O contrato estava previsto para terminar em fevereiro de 2004, mas teve de ser prorrogado em virtude do atraso para a construção da fábrica, que ficou pronta somente em maio de 2007, decorrente de problemas no processo licitatório 55. Considerando o desenvolvimento do processo e os contextos externo e interno, é possível identificar três períodos distintos na execução da parceria: (i) 1994-2004: início do processo de transferência e construção da fábrica; (ii) 2005-2008: término das instalações civis e início da transferência propriamente dita; e (iii) 2009-2011: certificação da transferência, com destaque para a formalização de uma PDP no ano de 2010.
De modo resumido, é possível apontar os seguintes aspectos como efeitos positivos da parceria na capacitação do Instituto Butantan: ampliação da capacidade do instituto para transferência de tecnologia; capacitação para a produção da vacina em larga escala; melhoria das boas práticas de fabricação; domínio de novas tecnologias; e possibilidade de desenvolvimento de inovações (no caso, introdução de adjuvante testado na instituição e desenvolvimento institucional capaz de influir na produção de outras vacinas).
Do ponto de vista institucional, o estudo apresenta, de um lado, a possibilidade de levar adiante esse processo amparado pelas precondições encontradas, mas, de outro, aponta para fragilidades relacionadas, de um lado, com as estratégias políticas de ciência, tecnologia e inovação, em curso no apoio às instituições públicas e, de outro, com a estrutura dessas instituições (no caso, o Instituto Butantan) e seus limites dados por entraves estruturais sérios para seu desenvolvimento.
No caso das estruturas administrativas, quase todas têm forte presença das normas de administração direta, pouco ágeis frente às demandas das transferências, desde a compra de insumos até a reformulação de instalações. Outro aspecto é a questão dos recursos humanos, dado que as políticas nessa área obedecem a carreiras e cargos não compatíveis com as atividades de produção (os comandos e a tecnoestrutura devem ser claramente definidos, com flexibilização de gestão e desenvolvimento nessa área).
Durante muito tempo, o Brasil foi marcado pela ausência de políticas públicas voltadas para formar um sistema nacional de inovação na área da saúde, fortalecer os laboratórios públicos e ampliar a capacidade instalada de empresas inseridas em setores estratégicos do complexo industrial da saúde. O resultado é uma grande dependência tecnológica do exterior, que faz do país um exemplo de modelo não virtuoso de associação entre saúde e desenvolvimento 56. Entretanto, a recente adoção de políticas e programas indutores do desenvolvimento nacional, com iniciativas específicas para a área da saúde, sugere o surgimento de um novo modelo. As PDP representam um exemplo emblemático cujo desenho privilegia uma conjugação de forças positivas no sentido de superar o quadro de dependência externa do sistema de saúde e expandir o acesso da população a produtos considerados prioritários.
Não obstante os avanços proporcionados pelas PDP para a interação entre a política e a produção em saúde, é necessário apontar a existência de desafios históricos enfrentados pelos laboratórios públicos, os quais foram deixados em segundo plano durante o longo predomínio do modelo privado internacional. Nesse sentido, o processo de transferência de tecnologia incentivado pelas PDP ganha destaque e pode conformar um elemento dinamizador para que inovações incrementais surjam de forma mais efetiva nos laboratórios públicos, como demonstram os dois exemplos de parcerias mencionados no trabalho.
Dentre os desafios a serem superados, cabe destacar a adoção de processos decisórios mais transparentes, a realização de investimentos em infraestrutura e na qualificação dos profissionais que atuam nos laboratórios públicos, a adoção de mecanismos de monitoramento e avaliação dos resultados e a garantia da continuidade do foco da política de saúde e o diálogo com a base produtiva, mesmo em momentos de troca de gestão. Dada a diversidade de instituições envolvidas na gestão dos laboratórios públicos, pode-se dizer que um desafio adicional é estabelecer uma política diferenciada de apoio, levando, em conta, as diferentes realidades existentes e estabelecendo metas proporcionais aos estágios encontrados, além de uma política contínua de incentivos.
A questão que se coloca frente a esse cenário é a seguinte: como garantir que o atual arranjo assistencial produtivo no campo da saúde seja capaz de compatibilizar, ao mesmo tempo, a lógica pública e coletiva de bem-estar e inclusão social com a lógica privada e individual de mercado? A resposta para essa questão passa necessariamente pelo reconhecimento de que cabe ao Estado definir e articular políticas públicas de integração entre as múltiplas dimensões do desenvolvimento, de modo a contribuir para conjugar os interesses de mercado com as preocupações e necessidades da saúde pública.