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A Política Pública como campo multidisciplinar

A Política Pública como campo multidisciplinar

Autores:

Cristiani Vieira Machado

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.6 Rio de Janeiro jun. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015216.14812015

A proliferação de estudos sobre políticas públicas nas últimas décadas, nos planos internacional e nacional, em vários campos de conhecimento, já seria uma justificativa suficiente para a produção de obras voltadas para o mapeamento dos caminhos investigativos nesse âmbito.

Não bastasse isso, o imbricamento entre análise acadêmica, engajamento político e compromisso com a ação, que frequentemente permeia tais estudos, requer esforços ainda maiores de explicitação das contribuições e limites dos diferentes enfoques teóricos e referenciais analíticos adotados nas pesquisas sobre o tema.

Ademais, diante da complexidade da maior parte das políticas públicas, há certo consenso sobre a importância da interdisciplinaridade para a sua implementação, ao que corresponderia a exigência de distintos aportes disciplinares para a sua compreensão. No entanto, na esfera da pesquisa, em geral, pouco se avança além desse consenso genérico, com uma tendência ao predomínio de diálogos internos às disciplinas.

Na esfera do ensino, a expansão de cursos de pós-graduação – ou mesmo de graduação – centrados nas políticas públicas ou na gestão pública, evidencia de forma mais aguda o problema, ao exigir a construção de grades curriculares heterodoxas, que misturam disciplinas e profissionais de distintas trajetórias e tradições.

O livro “A política pública como campo multidisciplinar”, organizado por Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria, enfrenta o desafio de explorar o panorama das discussões, da produção e as possíveis contribuições teórico-analíticas de nove diferentes disciplinas para o estudo das políticas públicas.

A incorporação de ‘campo’ ao título do volume remete o leitor ao sentido proposto por Bourdieu1, de afirmação de um novo espaço multidimensional em que estão inseridos agentes e instituições que produzem e difundem a ciência, nesse caso, sobre a política pública. Ainda que possa ser questionada a institucionalidade desse novo ‘campo’, ao menos no Brasil, a designação denota a aposta e o compromisso dos organizadores com a sua consolidação. Nesse sentido, o livro, que representa o desdobramento de um fórum sobre o tema da política pública, se propõe a fomentar o debate multidisciplinar, compreendido como passo anterior à busca de extrapolação de barreiras disciplinares na construção de conhecimento relevante, expressa nas noções de inter e de transdisciplinaridade.

A consistência dos capítulos, de autores reconhecidos em seus campos originais de atuação, faz com que cada um deles ofereça contribuição singular a leitores de diferentes perfis. Porém, é a apreciação do conjunto da obra que permite um salto na compreensão do ‘estado da arte’ e dos desafios colocados aos estudos de políticas públicas, ainda que sem a pretensão de esgotá-los.

Unicidade e diversidade se coadunam de forma harmônica, como é esperado das boas coletâneas. A primeira é assegurada pelas principais questões que movem organizadores e autores: como cada disciplina tem lidado (ou não) com o tema das políticas públicas? Que olhares e perspectivas se destacam? Que possibilidades analíticas são vislumbradas? Que contribuições cada disciplina oferece (ou poderia oferecer) para uma compreensão ampliada das políticas?

A diversidade, por sua vez, se expressa em vários aspectos abordados nos textos. Destacam-se, nesse sentido, os propósitos e a trajetória das disciplinas em sua relação com as políticas públicas, que influenciam a maior ou menor centralidade do tema na sua produção acadêmica, bem como as diferentes bases teóricas e contribuições atuais (ou potenciais) de cada uma. O foco dos capítulos também varia, em decorrência dos fatores anteriores ou de opções dos autores. Assim, alguns textos apresentam de forma mais estruturada os caminhos dos estudos sobre políticas públicas na sua área, no âmbito internacional e nacional. Outros enfocam os motivos do pouco destaque do tema na disciplina ou da escassa valorização da referida disciplina nas pesquisas sobre políticas públicas, buscando identificar novas possibilidades de diálogo.

Até mesmo o conceito de política pública não é unívoco. Enquanto na maioria dos capítulos sobressaem as definições que a atrelam fortemente ao Estado, há textos que problematizam tais definições e ressaltam os limites do foco estatal nos estudos sobre políticas públicas.

Nesse sentido, em que pesem as especificidades, os capítulos podem ser compreendidos em quatro grupos. Um primeiro grupo, de três capítulos, se refere às disciplinas em que a política pública ocupa lugar de destaque como objeto de reflexão e de pesquisa empírica: a ciência política, a sociologia e a administração pública. Tais capítulos procuram explorar os caminhos e as tendências dos estudos sobre política nas respectivas áreas, apontando limites, desafios e novas fronteiras.

Um segundo grupo compreende textos relativos a disciplinas que, em geral, não tomam a política pública como objeto central de sua produção acadêmica, embora algumas de suas contribuições teóricas, metodológicas ou práticas discursivas sejam utilizadas com frequência em estudos de políticas públicas, mesmo que de forma parcial ou instrumental. Esse é o caso do direito, da demografia e da história. O cerne desses capítulos é a identificação das formas como esses aportes têm sido apropriados, as potencialidades de ampliação da agenda interna de pesquisas e do diálogo com outras áreas na análise de políticas públicas.

Um terceiro grupo concerne a dois capítulos referentes a disciplinas – a antropologia e a psicologia social – cuja trajetória é marcada por certo distanciamento, ou mesmo negação, do objeto das políticas públicas, tal como usualmente definido. As explicações para esse (relativo) afastamento são exploradas criticamente pelos autores, que buscam reforçar os elementos de conexão e os espaços possíveis.

Por fim, o capítulo sobre as relações internacionais se diferencia dos demais pelo seu foco em uma questão mais interna à disciplina, que é a articulação entre as teorias internacionais e a análise da política externa. Ainda assim, o texto é farto em reflexões relevantes para os estudos de políticas públicas em geral, como a questão dos níveis de análise – internacional e nacional –, fundamental diante dos processos de ‘internacionalização’, entre outras. Sobressai ainda o argumento de que a ampliação da agenda da política externa a aproximaria das demais políticas públicas, destacando a importância do diálogo com outras áreas de pesquisa.

Embora o livro não pretenda abarcar todos os campos do conhecimento que podem contribuir para o estudo das políticas públicas – o que seria impossível –, chama atenção a ausência da geografia. Diante da heterogeneidade e da diversidade de usos do território no Brasil, que têm implicações para a dinâmica social e a ação do Estado, o uso de categorias propostas por autores desse campo como, por exemplo, as de ‘eventos socioespaciais’2 e ‘situações geográficas’3, pode ser potente para a análise das políticas públicas em diferentes configurações territoriais (regiões metropolitanas, áreas de fronteiras, usos corporativos do território, áreas conservacionistas, entre outras). Em síntese, a incorporação de aportes da geografia pode favorecer a valorização da dimensão territorial na análise de políticas públicas, aspecto que tem sido frequentemente negligenciado na sua formulação e implementação.

Outra ausência proposital é a de capítulos sobre áreas setoriais de políticas – saúde, educação –, justificada pelos organizadores porque “quase sempre elas mobilizaram teorias e enquadramentos importados das disciplinas anteriores”. Ainda que a afirmação proceda e que a escolha dos organizadores seja legítima, cabe assinalar que justamente nessas áreas parece promissora a possibilidade de articulação de contribuições oriundas de diferentes tradições disciplinares. Tal questão é mencionada no último capítulo da coletânea, que explora os diálogos possíveis entre as ciências sociais, a história e as políticas setoriais de saúde.

A riqueza e a consistência do livro o tornam relevante para um grande leque de leitores. Para os estudiosos das políticas públicas oriundos dos diversos campos de conhecimento, a obra é referência obrigatória. Para os pesquisadores de cada uma das disciplinas abordadas, mesmo os não especialistas em políticas públicas, o trabalho é importante por favorecer o (re)conhecimento das áreas e incentivar novas questões de investigação. Para os analistas de políticas públicas setoriais, que com frequência se alimentam da produção de várias disciplinas, o livro oferece um panorama diversificado de aportes teóricos e metodológicos.

Por fim, para pesquisadores, alunos e profissionais da Saúde Coletiva, a coletânea traz uma contribuição adicional, de caráter epistemológico: a reflexão sobre os dilemas e os desafios da consolidação de um campo multidisciplinar que pretende produzir conhecimento cientificamente relevante, socialmente engajado e, ao mesmo tempo, almeja ultrapassar as (nem sempre permeáveis) fronteiras disciplinares.

REFERÊNCIAS

1. Bourdieu P. Os Usos Sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004.
2. Santos M. A natureza do espaço, técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora Hucitec; 1996.
3. Silveira ML. Uma situação geográfica: do método à metodologia. Rev Território 1999; (6):21-28.