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A prática oceanográfica e a coleção iconográfica do rei dom Carlos I

A prática oceanográfica e a coleção iconográfica do rei dom Carlos I

Autores:

Maria Estela Jardim,
Isabel Marília Peres,
Pedro Barcia Ré,
Fernanda Madalena Costa

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000300006

ABSTRACT

After the Challenger expedition (1872-1878), other nations started to show interest in oceanographic research and organizing their own expeditions. As of 1885, Prince Albert I of Monaco conducted oceanographic campaigns with the collaboration of some of the best marine biologists and physical oceanographers of the day, inventing new techniques and instruments for the oceanographic work. Prince Albert’s scientific activity certainly helped kindle the interest of his friend, Dom Carlos I, king of Portugal, in the study of the oceans and marine life. Both shared the need to use photography to document their studies. This article analyzes the role of scientific photography in oceanography, especially in the expeditions organized by the Portuguese monarch.

Key words: scientific photography; oceanographic expeditions; Carlos I of Portugal

No século XIX, devido a múltiplos fatores, tecnológicos e sociais, houve uma grande transformação da cultura visual e da circulação das imagens, incluindo as científicas. Entre os mais importantes está a invenção da fotografia em 1839, a partir de experiências pioneiras realizadas por investigadores, entre eles Antoine Hercules Florence (1804-1879) no Brasil, Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) e Louis Jacques Daguerre (1787-1851) em França e William Fox Talbot (1800-1877) na Inglaterra. Como afirma Sicard (2006), em pleno século XIX a fotografia modificou profundamente os fundamentos da prova, o modo de ver e de compreender.

No início, a utilização da fotografia no papel de auxiliar documental da ciência é entendida, segundo o astrónomo Jules Janssen (1824-1907), como a “retina do cientista” (Davanne, 1893, p.29). Mas ela foi também testemunho de fenómenos invisíveis a olho nu: fotografias de manchas solares, de micro-organismos e do movimento de fluidos são disso alguns exemplos. A possibilidade de a técnica fotográfica registar a variação do sinal óptico com o tempo tornou-a particularmente importante para a astronomia e espectroscopia óptica. Apesar das qualidades atribuídas à fotografia, como a autenticidade, objetividade1 e rapidez na obtenção da imagem científica, a sua prática não se tornou generalizada senão nos finais do século XIX, muitas vezes por dificuldades aliadas à técnica fotográfica (Gunthert, 2000). Por outro lado, obter uma fotografia científica envolvia fazer escolhas estéticas, julgamentos e intervenções, o que levou a que debates sobre a sua utilização fossem realizados em laboratórios e em conferências científicas (Tucker, 2006). A fotografia, e em particular a fotomicrografia (fotografia de preparação microscópica) introduzia, por vezes, distorções na imagem que os cientistas procuraram corrigir com o recurso a modificações efetuadas no negativo fotográfico ou até na execução das matrizes para impressão. Essas dificuldades e manipulações eram, no entanto, raramente mencionadas, mas pelo contrário, em geral omitidas, pois o cientista pretendia que o leitor se debruçasse sobre o conteúdo da imagem e não sobre a forma como tinha sido obtida (Smith, 2006).

A consciencialização dos limites da representação fotográfica levou os cientistas a sublinhar a complementaridade entre o desenho, a aguarela e a fotografia, na ilustração de publicações (Fieschi, 2008), particularmente nas ciências biológicas e médicas. Na ilustração a fotografia interveio de dois modos: a imagem fotográfica era reproduzida segundo diversos modos de impressão (gravura em metal ou madeira, litografia ou processos fotomecânicos), ou utilizada como meio de reprodução duma imagem (desenho, aguarela, gravura), através dos processos fotomecânicos. Em 1878, foi inventado por Charles-Guillaume Petit2 um novo processo fotomecânico em relevo, a similigravura, que permitia imprimir simultaneamente numa mesma página os caracteres tipográficos do texto e a imagem fotográfica, reproduzindo os meios-tons. A introdução da similigravura permitiu não só a produção de publicações de pequeno formato a baixo custo, mas também a generalização da utilização dos processos fotomecânicos na reprodução de ilustrações, incluindo desenhos e aguarelas. Com essa nova técnica, a partir dos anos 1880 são lançadas as bases de uma nova cultura visual, permitindo a circulação em massa de imagens e em escala global.

Também, embora menos frequente, é utilizada a fotografia como ponto de partida e posteriormente como controle para a obtenção de desenhos, como acontece, e já no início do século XX, no atlas de anatomia patológica e de histologia do anatomista alemão Sobotta (1903); segundo esse autor evitavam-se, assim, distorções na imagem microscópica. Alguns dos desenhos aguarelados de peixes que ilustram o livro de Henry Bourée (1912) sobre pesquisa oceanográfica foram também obtidos por um processo semelhante ao de Sobotta, mas utilizando autocromos como fotografias de referência.

Nos finais do século, a circulação e difusão da ciência e da técnica passa por uma utilização cada vez mais frequente da imagem fotográfica impressa, confirmando a sua “utilidade científica”, como o previra Arago (1839, p.265).

As primeiras explorações oceanográficas

Oceanografia, a ciência do mar, é uma agregação de saberes científicos que envolve as ciências biológicas, a física, a química e as ciências da terra. Conhecer o comportamento dos oceanos e a forma da vida animal e vegetal marinha no passado é importante para compreender a sua evolução ao longo dos séculos.

Para a história da oceanografia foi primordial o desenvolvimento das ideias científicas resultantes da publicação em 1859 da obra de Charles Darwin, The origin of species by natural selection. Anteriormente ao conceito de evolução e seleção natural, o estudo dos oceanos era realizado sobre fenómenos superficiais e com o objetivo de obter o mapeamento náutico, bem como estabelecer as coordenadas geográficas de interesse para a ciência da navegação.

Os registos efetuados nas primeiras grandes viagens marítimas e as observações de naturalistas foram uma tentativa para estudar o mar e as espécies marinhas que o habitam. O navegador português Fernão de Magalhães, na sua viagem de circum-navegação, tentou, na passagem pelo Pacífico, em 1521, determinar a profundidade, o que é considerada a primeira experiência de sondagem de alto-mar (Herdman, 1923).3 Foi só no século XVIII, durante as viagens do período 1772-1773 realizadas pelo explorador James Cook (1728-1779), que foram registadas as temperaturas da água superficial (Murray, Hjort, 1912). No início do século XIX, países como a Inglaterra, França, Rússia e os EUA procuraram empreender expedições oceanográficas com o objetivo de fazer mapeamento náutico como principal tarefa; dentre elas destaca-se a viagem de circum-navegação da U.S. Exploring Expedition (1832-1842), dirigida pelo capitão Charles Wilkes (Junqueira, 2012).4 Durante a expedição à Antártica a bordo dos navios ingleses H.M.S. Erebus e H.M.S. Terror de 1839 a 1843, conduzida por James Clark Ross (1800-1862), foram utilizados termómetros concebidos para determinações de temperatura a elevada profundidade, de duas mil braças5 e realizadas determinações da densidade da água (Murray, Hjort, 1912). Foi também conduzida nessa expedição a primeira sondagem abissal.6 Em 1839 a British Association for the Advancement of Science nomeou uma comissão, a British Association Dredging Committee, para investigar a zoologia marinha da Grã-Bretanha, com recurso a dragagens (Rice, Wilson, 1980). Edward Forbes (1815-1854), um distinto naturalista escocês que tinha feito estudos sobre a distribuição batimétrica7 da vida marinha, foi um dos inspiradores dessa comissão. Com base nas suas observações, em 1841, no mar Egeu, é enunciado num trabalho publicado postumamente em 1859, o princípio da ausência de vida abaixo de trezentas braças de profundidade, a que se chamou teoria azoica de Forbes (Saldanha, 1991). Essa teoria foi mais tarde refutada pelos resultados obtidos nas expedições oceanográficas como a do H.M.S. Challenger (Herdman, 1923).

A exploração da região Ártica e do Atlântico Norte foi iniciada em 1861 por cientistas suecos e noruegueses, e em 1864, Otto Torell (1828-1900) obteve especímenes zoológicos a mil e 1.400 braças de profundidade (Murray, Hjort, 1912). Em 1864, o naturalista português José Vicente Barboza du Bocage (1823-1907) publica um artigo sobre a ocorrência de uma nova espécie, a esponja Hyalomena lusitanica, capturada pelos pescadores de Setúbal a uma considerável profundidade, na proximidade da costa portuguesa (Barbosa du Bocage, 1864).

A partir de 1868, sob a direcção de naturalistas ingleses, uma série de explorações oceanográficas foi conduzida no Atlântico Norte e no Mediterrâneo. Assim, em 1868, os ingleses William. B. Carpenter (1813-1885) e Charles Wyville Thomson (1830-1882), a bordo do H.M.S. Lightning, exploraram o mar, numa área próxima das ilhas britânicas, determinando não só parâmetros físicos, como também a distribuição da vida marinha a grandes profundidades. As dragagens realizadas mostraram que a vida animal era variada e abundante a profundidades superiores a seiscentas braças. Nos verões de 1869 e 1870, Gwyn Jeffreys (1809-1885), associado com Carpenter e Thomson, embarcou a bordo do navio H.M.S. Porcupine, mais bem equipado que o Lightning para a exploração oceanográfica, e procedeu à recolha de especímenes a uma profundidade de 2.435 braças, “estabelecendo o fato de que, mesmo a essa profundidade, os invertebrados se encontram representados” (Thomson, 1878, p.7).

Das ilhas Faroe no norte da Europa até Gibraltar, a descrição da viagem feita por Wyville Thomson (1873) em The depths of the sea constitui o que pode ser considerada a primeira publicação moderna sobre a ciência oceanográfica. As investigações realizadas pelos ingleses abriram caminho para a grande expedição oceanográfica do século XIX, a do H.M.S. Challenger, que decorreu entre dezembro de 1872 e maio de 1876.

Durante aquele período e sob a direcção de W. Thomson, o Challenger circum-navegou o globo, tendo recolhido informações de natureza biológica, química e física, que produziram resultados muito importantes para o conhecimento científico dos oceanos. Nessa expedição foram descobertos vários especímenes biológicos, no total de 715 novos géneros e 4.417 novas espécies, e realizadas inúmeras medições de parâmetros físicos. Os resultados da expedição foram publicados em cinquenta volumes,8 tornando-se o modelo para todas as subsequentes observações das explorações oceanográficas. A bordo, viajavam, entre outros cientistas, o químico John Young Buchanan (1844-1925)9 e o naturalista e futuro oceanógrafo John Murray (1841-1914), ambos da Universidade de Edimburgo. O navio estava equipado com um laboratório de química e uma sala de trabalho de história natural, possuindo ainda um laboratório fotográfico. A costa portuguesa foi uma das zonas marítimas exploradas, tendo o navio aportado a Lisboa, e os cientistas visitado o Museu de Zoologia, a Escola Politécnica de Lisboa, recentemente reconstruída após o terrível incêndio que aí tinha ocorrido, e o Observatório Meteorológico e Magnético dirigido por João Brito Capello (1831-1901) (Thomson, 1878). O rei dom Luís I (1838-1889) foi recebido a bordo do navio.10

Do outro lado do Atlântico, na costa americana, e a partir de 1867, dragagens e sondagens a 1.555m foram conduzidas pela United States Coast Survey, sob o comando de Louis François de Pourtalès (1823-1880) e de Louis Agassiz (1807-1873), perto da costa da Flórida e entre esta e Cuba, a bordo do Bibb (Murray, Hjort, 1912).11 Essas explorações ao longo da costa americana foram continuadas, anos mais tarde, entre 1878 e 1880, por Alexander Agassiz (1835-1910) a bordo do Blake (Saldanha, 2002).

A partir de meados do século XIX, os objetivos das numerosas expedições oceanográficas foram essencialmente: o conhecimento topográfico do fundo oceânico para a obtenção das cartas batimétricas e da instalação dos cabos telegráficos, o estudo das correntes marinhas, a relação entre as pescas e a distribuição das espécies biológicas, sobretudo da fauna submarina dos grandes fundos, assim como a determinação de propriedades físicas da água do mar (temperatura, densidade, salinidade etc.). Com o avanço tecnológico, o equipamento utilizado na recolha de material biológico e determinações físico-químicas pelas missões dos navios oceanográficos tornou-se cada vez mais sofisticado.

Em França, Alphonse Milne-Edwards (1835-1900)12 dirigiu expedições no Atlântico Norte e Mediterrâneo, a bordo dos navios Travailleur e Talisman (1880-1883), recolhendo abundante fauna abissal. A exposição realizada em Paris em 1884, no Muséum National d’Histoire Naturelle, mostrando os resultados das expedições francesas, foi decisiva para o príncipe Albert I do Mónaco se dedicar ao estudo da oceanografia, organizando e dirigindo campanhas oceanográficas que decorreram durante um longo período (Carpine-Lancre, 2001). O trabalho desse brilhante oceanógrafo, que adotou a seguinte divisa Ex abyssis ad alta, teve uma grande influência sobre a decisão do rei dom Carlos I de Portugal de iniciar a exploração oceanográfica da costa portuguesa. Os dois monarcas trocaram entre si importante correspondência científica (Carpine-Lancre, Saldanha, 1992), tendo essa colaboração permitido confrontar os seus resultados e esclarecer muitas questões relacionadas com as técnicas, sobretudo de recolha de espécimenes biológicos.

As campanhas do príncipe Albert I do Mónaco

Albert Honoré Charles nasceu em Paris em 1848. Tal como os outros Grimaldis, foi desde cedo incentivado a interessar-se pelo mar, tendo iniciado aos 18 anos a carreira de navegador. O príncipe tornou-se oceanógrafo por amor ao mar, foi marinheiro antes de ser cientista, conhecendo os mistérios do mar antes de os estudar (Carpine, 2002). Em 1865 começou sua formação como oficial da Marinha Imperial Francesa, a que se seguiram dois anos na Marinha Real Espanhola. Como jovem aluno, o príncipe criou ligações com alguns cientistas, como o fisiologista Paul Regnard, que mais tarde se tornou seu colaborador, e com Alphonse Milne-Edwards.

Após 15 anos de formação o príncipe decide consagrar a sua vida à pesquisa oceanográfica, tendo organizado e dirigido 28 campanhas entre 1885 e 1915. Nessas expedições estiveram envolvidos quatro navios: Hirondelle (1885 a 1888), Princesse Alice (1891 a 1897), Princesse Alice II (1897 a 1912) e Hirondelle II (1912 a 1915).

No Hirondelle, um barco de 200t, não existia equipamento sofisticado. Mesmo assim, o príncipe fez sondagens com a profundidade de 1.600 braças (cerca de 3.520m), recorrendo apenas à sua equipa de 14 marinheiros. Nesse primeiro barco esteve presente, a partir de 1888, o cientista Jules Richard (1863-1945).13

Mais tarde, em 1891, as expedições prosseguiram num barco mais robusto, de 560t, o Princesse Alice, já equipado para realizar pesquisa científica (Albert I, 1898a), com laboratórios a bordo.

O Princesse Alice II era um navio em aço, com 73,15m de comprimento e 1.420t. A bordo havia um laboratório químico bem equipado com diversos instrumentos científicos (Richard, 1900). Além desse, existia também um laboratório fotográfico que era iluminado à noite por lâmpadas elétricas.

Em 1889 começaram a ser publicados, sob a direção do príncipe, os resultados científicos dessas expedições, Résultats des campagnes scientifiques accomplies sur son yacht par Albert Ier;14 nessa série de publicações, além da descrição das estações oceanográficas realizadas e do estudo de vários grupos zoológicos, encontram-se também os resultados das determinações de dados relativos à oceanografia física. As campanhas oceanográficas foram conduzidas no mar Mediterrâneo e Atlântico Norte (Richard, 1900). Nos Açores foram efetuadas 12 campanhas, com o objetivo de estudar espécies zoológicas e realizar determinações de parâmetros oceanográficos. A 9 de julho de 1896, a bordo do navio Princesse Alice, quando se iniciava uma campanha de sondagens de grande profundidade, foram descobertos fundos rochosos a apenas 241m de profundidade. Iniciado o levantamento da área, foi encontrada uma extensa plataforma, com cerca de 55km de perímetro, que foi designada Banco Princesa Alice.15 De 1898 a 1899 foram igualmente exploradas as regiões árticas.

Nas campanhas científicas participaram cientistas de diversas nacionalidades e de diferentes campos da ciência. Inicialmente, Albert teve a colaboração dos zoólogos Georges Pouchet (1833-1894), professor no Muséum National d’Histoire Naturelle, de Paris, e de Jules de Guerne (1855-1931), que participou nas campanhas do Hirondelle e do Princesse Alice (Carpine, 2002).

Jules Richard (1863-1945) foi desde 1887 o diretor científico a bordo, estando presente em todas as expedições a partir dessa data. Era responsável pela triagem a bordo das espécies recolhidas, pela publicação dos resultados das campanhas e mais tarde pela organização do Musée Océanographique de Monaco. Inventou e testou muitos dos instrumentos científicos usados a bordo. O fisiologista Paul Regnard (1850-1927) concebeu igualmente vários instrumentos para a investigação conduzida nas campanhas do príncipe.

A bordo iam também ilustradores com a finalidade de registar, com recurso ao desenho e à aguarela, as espécies recolhidas; entre eles, Emma Kissling e o francês Louis Tinayre (1861-1942).

Nessas expedições foram descobertas numerosas novas espécies, como oOpistoproctus grimaldii Zugmayer, peixe com forma bizarra e olhos telescópicos, que foi capturado à profundidade de 4.700m (Figura 1), ou o Stomias, representado na mesma figura (Bourée, 1912); esses desenhos aguarelados foram realizados recorrendo aos autocromos da autoria de Bourée, como controle.

Figura 1 : Desenho aguarelado dos peixes Opistoproctus grimaldii e Stomias, segundo autocromo de Henry Bourée (1912, prancha IV) 

Em 1906, o tenente da armada da Marinha francesa Henry Bourée (1873-1904) foi recrutado por Albert I como seu assistente. Em 1907 é nomeado chefe de gabinete científico, tendo contribuído para o desenvolvimento de dispositivos de medição e colheita de amostras. Cineasta e fotógrafo, foi o autor de grande parte das fotografias realizadas a bordo. Pela primeira vez a bordo de um navio, foram fotografadas em cores espécies marinhas utilizando os autocromos Lumière e luz de magnésio.16

Esse tipo de luz artificial era também usado durante o dia (Figura 2), pois segundo Bourée (1912, p.126) “sua utilização apresenta a vantagem de permitir a obtenção de instantâneos”.17

Figura 2 : Henry Bourée fotografando, em cores e com luz de magnésio, um espécimen de grande profundidade (Louis Gain, Campagne Hirondelle 1911; Institut Océanographique de Paris) 

O dispositivo de Bourée para a obtenção dos autocromos possibilitava a reprodução exata em cores dos especímenes biológicos, tal como exemplifica a fotografia da fisália, reproduzida pelo método tipográfico de meios-tons (Figura 3).

Figura 3 : Fisália; reprodução fotomecânica de um autocromo de Henry Bourée (1912, p.56) obtido a 9 de agosto de 1909 

Albert I foi um entusiasta fotógrafo amador e encorajou o uso da fotografia como modo de documentar as suas expedições.

No relatório de 1895 (Albert I, Richard, 1895, p.4-5), sobre o estudo dos cefalópodes, escreve o zoólogo Louis Joubin (1861-1935):

A imagem fotográfica é de fato um documento em que nada é deixado de fora, nenhum detalhe é esquecido ou mudado devido às dificuldades de reprodução, apresentando-se com uma tal fidelidade que pode ser usada como base para a discussão científica.18

No entanto, a opção escolhida para a maioria das ilustrações não seria a técnica fotográfica, mas sim o desenho aguarelado, devido à necessidade de registar a cor das espécies recolhidas. Os desenhos aguarelados teriam que ser feitos a bordo do navio em consequência da rápida mudança de cor pelo facto de as espécies biológicas serem habitualmente conservadas em álcool. A partir da década de 1890, algumas edições dos Résultats des campagnes, além de desenhos e aguarelas, contêm ilustrações com reproduções fotomecânicas de fotografias que representam espécies biológicas, aspetos geológicos e fotomicrografias.

A influência das correntes marinhas sobre a física do oceano e a vida submarina é reconhecida desde o início da navegação. Os dois parâmetros essenciais, velocidade e direção, podiam ser determinados por métodos diferentes. A primeira descrição de um aparelho registador data de 1845. Foi em 1910 que o sueco Otto Pettersson (1848-1931), colaborador do príncipe, construiu um aparelho de registo fotográfico que permitia determinar por longos períodos a velocidade e a direção do vento. O registo era realizado sobre um filme fotográfico durante 15 dias. Foi usado pela primeira vez num pontão no porto de Göteborg em 1911 (Carpine, 1987).

Outra determinação física importante para o conhecimento dos oceanos era a transparência da água. Em 1865 o padre Pietro Angelo Secchi (1818-1878) e Alessandro Cialdi (1807-1882) apresentaram à Academia de Ciências de Paris uma comunicação sobre a medida da transparência do mar, que foi levada a cabo no barco italiano S.S. L’Immacolata Concezione (Cialdi, Secchi, 1865). Foi utilizado um instrumento que recebeu o nome de disco de Secchi. A profundidade a que se dava o desaparecimento visual do disco de Secchi tornou-se uma medida da transparência da água. Embora tenha sido um instrumento útil e simples de usar, pressupunha uma avaliação subjetiva.

Em 1873 o cientista suíço François-Alphonse Forel (1841-1912), pioneiro da limnologia, recorreu pela primeira vez à técnica fotográfica para a medição da penetração da radiação solar no lago Léman, na Suíça, empregando garrafas que continham papel sensibilizado com cloreto de prata, as quais mergulhava nas águas do lago. Recorrendo ao processo fotográfico do gelatino-brometo de prata, instrumentos como os fotómetros inventados por Hermann Fol (1845-1892) e E. Sarasin permitiram determinar com maior rigor o valor do limite de obscuridade total (Forel, 1895).

Após os estudos de Forel, Fol e Sarasin, Paul Regnard, pioneiro no estudo do efeito químico e biológico dos raios solares em meio marinho, inventou, em 1888, um instrumento com registo fotográfico. Esse instrumento permitia medir a intensidade da radiação do visível a diferentes profundidades. Designado como fotometrógrafo, foi utilizado pela primeira vez pelo príncipe Albert na costa do Funchal (Madeira), em março de 1889, a profundidades de vinte, trinta e quarenta metros (Regnard, 1891).

Regnard usou papel platinográfico por este ter maior sensibilidade fotográfica. O ins-trumento era colocado e retirado da água à noite. A bordo ficava um aparelho igual, exposto à luz direta do sol, para servir de controlo. No final era possível comparar a intensidade da luz durante as várias horas de exposição e determinar a profundidade a que se obtinha a obscuridade total.

Em 1910 o professor austríaco Rudolf Bertel (s.d.-1939) inventou um instrumento que permitia estudar a penetração na água de diferentes frequências da radiação do visível. O espectrógrafo foi construído pelo fabricante R. Fuess, de Berlim. Bertel usava placas pancromáticas de Lumière, formato 45×60mm. Os primeiros ensaios foram feitos em 1911, a bordo do Eider,19com a participação de Jules Richard. Bertel (1912) verificou que, a uma profundidade superior a 400m, só penetravam as radiações azuis e violetas.

O príncipe Albert participou nas exposições universais de Paris de 1889 e de 1900. Na exposição de 1889 dedicou à oceanografia mais de uma sala do Pavilhão do Mónaco. Foram exibidas espécies biológicas, várias fotografias com os resultados obtidos nas suas expedições, bem como instrumentos usados nos seus navios (Carpine-Lancre, 1989). A exposição de oceanografia do Mónaco recebeu prémios em várias classes. Paul Regnard foi distinguido pelos instrumentos exibidos, de sua invenção, entre eles um termómetro registador e o fotometrógrafo.

Na Exposição Universal de Paris de 1900, o príncipe voltou a dedicar mais de uma sala às suas campanhas científicas. A publicação de Richard (1900), Les campagnes scientifiques de S.A.S. le prince Albert Ier de Monaco foi utilizada para servir de guia aos visitantes do evento. Nessa exposição era possível ver as maquetes dos barcos, espécies capturadas, fotografias diversas, bem como os instrumentos usados nas várias áreas da oceanografia

Naquele ano foi inaugurado o Musée Océanographique de Monaco destinado a receber os resultados das suas campanhas.

Em 1904 foi adotada pelo Congresso Internacional de Geografia de Washington, de 8 de setembro de 1904, a carta geral batimétrica em 24 folhas, na escala de 1:10.000.000, mandada executar pelo príncipe Albert I, sob a supervisão de Charles Sauerwein (1876-1913). Em 1910, o príncipe Albert cria o Institut Océanographique de Paris, destinado ao ensino e à promoção da oceanografia em França.

Carlos de Bragança, filho mais velho do rei dom Luís I e da rainha Maria Pia, nasceu em Lisboa em 1863. Foi o penúltimo rei de Portugal, e um distinto homem de ciência, um pintor de talento e fotógrafo amador desde a sua juventude.

Enquanto o monarca do Mónaco dedica mais de trinta anos às campanhas, dom Carlos só pode utilizar dez anos, do seu reinado e vida. O rei dedicou-se também ao estudo das aves de Portugal, tendo publicado dois volumes sobre ornitologia.

Quando o Princesse Alice fez escala em Lisboa, em 1894,20 Albert I foi recebido pelo rei e pela rainha dona Amélia21 (1865-1951); as relações entre os dois monarcas e suas famílias estreitaram-se a partir dessa visita.

As campanhas oceanográficas de dom Carlos tiveram início em 1896. A exploração da costa marítima portuguesa incidiu sobre uma zona limitada, mas notável pelas suas grandes variações batimétricas. Entre 1896 e 1907, realizou 290 estações, com quatro embarcações diferentes. Em 1896 foi utilizado um iate de 147t, o Amélia, construído na Inglaterra em 1878 por W. Allsup & Co., de Preston. Como esse se revelou pequeno, comprou um iate maior, de 301t, que serviu nas campanhas de 1897 e 1898, o Amélia II, construído em 1880, em Leith, na Inglaterra, por Ramage & Fergunson. As campanhas de 1899 e 1901 foram feitas num iate maior, de 650t, o Amélia III, construído em 1898 na Inglaterra por J. Scott & Co., de Kinghorn. O Amélia IV foi usado nas campanhas de 1902 a 1907 (Bragança, 1902).

Dom Carlos (Bragança, 1902, p.4) refere noBulletin des campagnes scientifiques accomplies sur le Yacht Ameliade 1902:

Ocupando-me desde há muito com estudos zoológicos e tendo, desde a minha infância, a paixão pelo mar, decidi, em agosto de 1896, consagrar o meu iate a pesquisas científicas na nossa costa e, após alguns ensaios preliminares, iniciei definitivamente os meus trabalhos a 1o de setembro de 1896.22

Assim, os trabalhos de pesquisa oceanográfica tiveram início em 1º de setembro de 1896. Foram realizadas cinco campanhas até 1900. Nessas pesquisas dom Carlos foi acompanhado pelo explorador e capitão de fragata Roberto Ivens (1850-1898), o capitão de fragata dom Fernando de Serpa, os capitães de corveta J. Vellez Caldeira (1855-1943), J. Moreira de Sá e António Pinto Basto (1862-1946) e o naturalista Albert Girard (1860-1914) (Bragança, 1902). Na campanha de 1899, fez-se também acompanhar pelo seu irmão, dom Afonso, duque do Porto, e pelo marquês do Faial (Markham, 1908).

Albert Arthur Girard começou por estudar engenharia civil, mas dedicou a sua investigação às ciências naturais. A sua carreira iniciou-se no Museu de Zoologia da Escola Politécnica de Lisboa, tendo sido convidado para conservador das coleções científicas do rei dom Carlos. Foi responsável pela organização das diversas exposições das quais o rei participou e pela preparação para publicação dos manuscritos relativos às campanhas.

Embora já tivessem sido realizadas várias expedições científicas à costa portuguesa – Porcupine em 1870 na sua quarta campanha; Norna na mesma época; Challenger em 1873; Travailleur na segunda e na terceira campanhas em 1881 e 1882; Talisman em 1883 e as campanhas do príncipe do Mónaco, Princesse Alice em 1894 e 1895 – o conhecimento científico sobre a costa portuguesa estava incompleto pois não havia existido articulação no planeamento dessas expedições.23

A campanha de 1896 tinha como objetivo estudar o fundo próximo da embocadura do Tejo, conhecida como fossa de Albufeira,24 que se encontra a sul da entrada do Tejo, e a sua fauna abissal, assim como a fauna litoral no porto de Setúbal e na baía de Cascais. O rei pretendia igualmente determinar a natureza da fauna pelágica-plâncton.25 Na captura da fauna pelágica foram utilizados camaroeiros de superfície e redes finas de pesca superficial. No decorrer da campanha, “vários fatos vieram confirmar a influência que a proporção e natureza das espécies que o compõem têm sobre a marcha das espécies ichthyologicas emigrantes” (Bragança, 1897, p.18). O relatório referente a essa campanha é ilustrado com desenhos da autoria de dom Carlos, incluindo a capa, em que figura a reprodução de um desenho aguarelado.

Nessa campanha, em que a fotografia já era usada como prova documental, foram realizadas 57 estações, com 57 sondagens de 26m a 1.200m e cinquenta dragagens de 22m a 460m (Figura 4).

Figura 4 : “A bordo do Yacht Amelia (1896)” (autor desconhecido, 1896; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

Foram feitas pescas, explorações às praias, recolha de rochas e de aves etc. Lançaram-se flutuadores ao largo do cabo Espichel e das ilhas Berlengas. Os materiais recolhidos nessa campanha foram exibidos numa exposição no Museu de Zoologia da Escola Politécnica de Lisboa.

A campanha de 1897 foi destinada à pesquisa zoológica. Dessa vez a expedição foi dirigida para a baía entre o cabo Espichel e Sines. Para as dragagens foram lançados grandes palancres26 (espinhéis), utilizados também pelos pescadores de Setúbal e Algarve a uma profundidade máxima de 1.700m, e os pequenos palancres, denominados pelos pescadores como aparelhos. Para a pesca em alto-mar, o rei usava uma lâmpada elétrica de imersão que descia até aos 8m de profundidade. Foram realizadas 56 estações, com 72 sondagens até aos 2.400m.

A campanha de 1898 foi destinada aos trabalhos na baía de Cascais, à fossa de Albufeira e à fossa de Sesimbra, assim como à costa do Algarve (Bragança, 1902). O rei refere a importância da pesquisa feita sobre a pesca do atum, uma das grandes fontes de riqueza da região algarvia. Como era um assunto de grande importância para a indústria pesqueira portuguesa, tomou a decisão de publicar os seus resultados em Mémoires sur les recherches scientifiques du yacht Amelia (Bragança, 1899). Como refere o zoólogo Louis Roule (1861-1942), citando o trabalho de dom Carlos, é pela primeira vez estabelecida a relação entre as migrações desse peixe e as variações térmicas verificadas no meio marinho (Roule, 1924). Com base nas observações feitas nos postos meteorológicos de Lagos e Faro, de maio a agosto de 1898, foi também investigada a relação entre as variações meteorológicas e a densidade e marcha dos cardumes de atum. Nessa campanha foram realizadas 21 estações, com 22 sondagens até 2.000m.

Na campanha de 1899, dom Carlos continuou a explorar as regiões anteriores, prin-cipalmente ao largo do cabo Espichel e nas fossas de Sesimbra. Foram feitas quarenta estações e, entre outras, 41 sondagens até os 1.856m. Nesse ano, em junho, Girard realizou a bordo do Lidador uma série de pesquisas oceanográficas na costa algarvia, para determinar qual a relação entre as variações da abundância do atum e as condições oceanográficas, questão que era importante para uma exploração piscatória mais racional daquele peixe nas águas portuguesas.

Na campanha de 1900 o rei optou por realizar pesquisas ao largo do cabo Espichel, na costa perto de Cascais, Arrábida e Galé, num total de dez estações, com dez sondagens, até os 1.280m.

Em 1904, dom Carlos publica um trabalho científico sobre os esqualos capturados na costa portuguesa durante as campanhas de 1896 a 1903. Nesse estudo é referida a captura de 32 espécies, “costeiros e abissais” (Bragança, 1904), tendo sido determinada a sua distribuição batimétrica. Um dos exemplares, o Odontaspis nasustus (Mitsukurina owstoni), capturado pela primeira vez na costa portuguesa, a 603m de profundidade, em 1901, faz parte da coleção zoológica do Museu Oceanográfico do Aquário Vasco da Gama (AVG).

No início das campanhas, devido à pequena dimensão dos iates, os exemplares recolhidos eram levados para um laboratório que o rei mandou instalar no palácio da Cidadela (Ramalho, 2001). À medida que as campanhas eram realizadas de forma mais afastada da costa, tornava-se imprescindível ter um laboratório a bordo. Por esse motivo, o Amélia III, por ser um navio de maior porte, já possuía condições para ter um laboratório bem equipado.

O laboratório encontrava-se equipado com material para recolha e preservação das espécies, instrumentos para a sua preparação e observação, como microscópios, e outros para a prática da oceanografia física: garrafas de recolha de água (modelo Negretti-Zambra), termóme- tros para as grandes profundidades (termómetro de inversão de Negretti-Zambra e o termómetro de Chabaud), densímetros e o disco de Secchi para o estudo da transparência da água. Para a análise das correntes, dom Carlos utilizou com sucesso os flutuadores de Hartreux.

O laboratório também estava preparado para servir de câmara escura:

Através de uma disposição muito simples aplicada às janelas, o laboratório podia ser transformado rapidamente em câmara escura, fosse para trabalhos científicos, fosse para o estudo da fosforescência dos peixes e dos animais inferiores (Bragança, 1902, p.27).27

No AVG, na coleção iconográfica e documental referente ao espólio do rei dom Carlos, podemos encontrar inúmeras fotografias que ilustram a atividade científica desenvolvida nas campanhas.

Em 1896 o rei decide documentar fotograficamente as preparações microscópicas de plâncton que recolheu nessa campanha. Foram feitas nove fotomicrografias (Figura 5), tendo sido enviadas algumas ao príncipe do Mónaco, tal como documenta a carta de dom Carlos a Albert I, de 4 de outubro de 1896:

Figura 5 : Fotomicrografias de organismos planctónicos recolhidos na campanha de 1896 (Carlos de Bragança, 1911; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

Tenho feito ao mesmo tempo pescas superficiais que têm, de momento, dado bons resultados. Fiz muitas preparações microscópicas (plâncton) e vou tentar reproduzi-las, fotografando-as. Creio que este método dará muito bons resultados e tornará o estudo mais fácil (citada em Carpine-Lancre, Saldanha, 1992, p.46).28

As fotomicrografias do plâncton, as primeiras realizadas em Portugal, foram exibidas em 1903 na Exposição Agrícola do Porto e atualmente fazem parte da exposição de longa duração do AVG.

Na época em que se iniciaram as campanhas científicas, foram adquiridos à firma José Joaquim Ribeiro de Lisboa, pela casa Real, os seguintes microscópios:29 (a) microscópio de Reichert com condensador Abbe Íris, três oculares n.2-3 e 4, três objetivas n.6-7-9 (Documento..., 30 jun. 1894); (b) microscópio Nachet modelo pequeno articular; (c) microscópio Zeiss IV n.26084 com três objetivas A A D, oculares n.2-4 e cinco com caixa de mogno (Documento..., 31 ago. 1897).

Faz parte da coleção de instrumentos oceanográficos do rei no AVG um microscópio binocular com um conjunto completo de acessórios, que possui a inscrição “R. & J. Beck, 31 Cornhill London 8001”. Pela data e indicação de endereço do fabricante, podemos situar o fabrico desse microscópio entre 1865 e 1880. No entanto, esse instrumento não é adaptável à técnica fotomicrográfica.

O microscópio Zeiss permitia a adaptação vertical30 a uma câmara fotográfica, como se pode ver na Figura 6. Terá sido provavelmente esse o microscópio utilizado para a realização das fotomicrografias de plâncton.

Figura 6 : À esquerda, microscópio Zeiss modelo IV (Zeiss, 1891, p.41); à direita, microscópio com câmara adaptada para fotomicrografia (Zeiss, 1891, p.99) 

Desde a primeira campanha de 1896, o rei procurou documentar, recorrendo ao processo fotográfico, o estudo zoológico que fez durante as suas expedições científicas. A maior parte das fotografias teria sido obtida pelo rei ou por Albert Girard (Figura 7). Dom Carlos também teria usado o serviço de fotógrafos profissionais. A Figura 8 ilustra uma das experiências realizadas pelo rei dom Carlos sobre processos de conservação das espécies recolhidas (Bragança, 1902). Segundo Girard e Ortigão (1908, p.76-77), foi a investigação feita nessa área que permitiu o sucesso alcançado nas exposições sobre oceanografia de que dom Carlos participou:

Figura 7 : “Jamanta pescada na costa de Cascais em 7 de setembro de 1890, largura 4,45m; comprimento 3,6m; redução 1/30” (Albert Girard, s.d.; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

Figura 8 : “Alcionária (Pteroides). Fixação em formol, conservação em álcool” (autor desconhecido, s.d.; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

Nenhuma nação da Europa pôde vangloriar-se, como Portugal, de ter 1.500 a 2.000 metros de profundidade ao pé da porta... O processo de conservação das cores pela glicerina é-lhe devido e tais são os seus resultados que alguns camarões, carmesins naturalmente, pescados em 28 de Julho de 1899, conservam ainda hoje a sua cor natural.

Outro colaborador de dom Carlos foi o coronel Francisco Afonso Chaves (1857-1926), cientista açoriano, que exercia atividade científica em campos tão diversos como a zoologia e a meteorologia. Em 1892 o príncipe Albert propõe o estabelecimento nos Açores de um Serviço Meteorológico Internacional. Pouco depois, em 1901, o governo português implementa primeiro na ilha de São Miguel e mais tarde na ilha das Flores observatórios meteorológicos sob a direcção de Afonso Chaves (Albert I, 1898b). Chaves, além de ser responsável pela instalação e pelo funcionamento dessa rede de observatórios, foi também um naturalista empenhado. Em 1890 publica com G. Pouchet, no Journal de l’Anatomie et Physiologie Normales et Pathologiques de l’ Homme e des Animaux, fotografias de dois cachalotes capturados na ilha de São Miguel, Açores. Essas imagens foram consideradas pelos autores como as primeiras fotografias científicas existentes desse animal (Chaves, Pouchet, 1890). Em 1904, Chaves envia para Albert Girard uma carta contendo fotografias de cachalotes, conservados no Museu da Ponta Delgada, com anotações sobre as dimensões desse animal (Figura 9). Naquele ano a correspondência entre os dois monarcas, Carlos e Albert, incidiu particularmente sobre as características desses cetáceos (Carpine-Lancre, Saldanha, 1992).

Figura 9 : Cachalote (autor desconhecido, s.d.; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

No espólio fotográfico do rei dom Carlos (AVG), encontram-se também radiografias de peixes feitas por Auguste Bobone (1852-1910) (Figura 10). Augusto Bobone, um dos fotógrafos da Casa Real, foi um dos primeiros em Portugal a obter radiografias, que também estão incluídas num conjunto de provas obtidas por Bobone e que foi apresentado à Academia das Ciências em 1897, com a finalidade de documentar os seus estudos sobre raios X, realizados entre 3 de março e 15 de abril de 1896 (Bobone, 1897).

Figura 10 : Radiografia de “Goraz, grossura 0,040m” (Auguste Bobone, 1896; Aquário Vasco da Gama, Lisboa) 

Dom Carlos participou em várias exposições nacionais e internacionais, procurando divulgar os resultados das suas investigações oceanográficas. A primeira teve lugar em 1897 na Escola Politécnica de Lisboa e no ano seguinte no AVG, também em Lisboa. No Porto participou da Exposição Internacional no Palácio de Cristal em 1902 e da Exposição Agrícola em 1903 e 1904. No âmbito do Congresso da Associação Internacional da Marinha, apresentou as suas coleções na Exposição Oceanográfica Internacional que teve lugar na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1904. Em 1906 fez parte da Exposição Internacional de Milão, na qual lhe foram atribuídas uma medalha de ouro, a placa artística de cobre do Grand Prix e uma medalha de prata. Organizou ainda um museu oceanográfico (Real Museu de História Natural) no Palácio das Necessidades em Lisboa.

Nessas exposições, dom Carlos apresentou os resultados obtidos nas suas campanhas, entre os quais exemplares zoológicos e fotografias que ilustravam o trabalho de recolha das espécies, as atividades desenvolvidas a bordo dos Amélias, bem como as espécies capturadas no mar. Eram igualmente exibidos instrumentos utilizados na coleta de especímenes biológicos, nas sondagens e nas determinações meteorológicas.

Dom Carlos foi nomeado sócio honorário de várias sociedades científicas entre as quais a Zoological Society of London (1903) e a Société Zoologique de France (1905). A 24 de novembro de 1905, o rei foi recebido em França no Muséum National d’Histoire Naturelle pelo presidente Émile Loubet, mas também como cientista, pelos seus pares. Foi-lhe dedicada uma sessão solene, tendo nela participado Henri Bequerel, Madame Curie, Lippmann, Lacroix, Moissan, que apresentaram comunicações sobre as suas investigações, acompanhadas de projeções de fotografias (Perrier, 1906). Por ocasião dessa visita dom Carlos doou ao museu uma coleção de peixes provenientes das suas campanhas.

Após a morte do rei em 1908, o escritor Ramalho Ortigão (1836-1915) e Albert Girard, numa homenagem à sua obra artística e científica, referem: “A nação portuguesa tem de convencer-se de que perdeu em dom Carlos de Bragança um dos seus mais prestigiosos homens de ciência” (Girard, Ortigão, 1908, p.78).

Considerações finais

Desde o início do século XIX, contribuições importantes para a descoberta de novas espécies de quase todos os grupos zoológicos e determinação de dados físicos fundamentais relativos aos oceanos foram dadas pelas missões oceanográficas de vários países europeus. Dois monarcas, o príncipe Albert I de Mónaco e o rei dom Carlos I de Portugal, participaram do labor quotidiano e da pesquisa conduzida nas expedições oceanográficas que organizaram e dirigiram na “era da exploração dos oceanos”, intensificada sobretudo a partir de finais do século. O trabalho científico de ambos esteve diretamente relacionado com o desenvolvimento económico que pretendiam para os seus países, mas também com o seu interesse na preservação da biodiversidade dos oceanos.

Os conselhos científicos de um navegador e oceanógrafo com mais recursos e mais experiente, como era o príncipe Albert, foram importantes para a condução da pesquisa efetuada pelo rei dom Carlos à costa marítima de Portugal continental. Os resultados decorrentes da sua atividade oceanográfica tiveram à época um reconhecido interesse científico, por ter sido explorada uma região de grande biodiversidade biológica e os seus fundos marinhos. Os estudos do rei, sobretudo no que diz respeito às pescas e à ictiologia, foram pioneiros em Portugal; só nos anos 1920 foi retomada a pesquisa sobre o comportamento e as migrações dos peixes, em particular do atum, em relação com as condições do meio marinho (Maurin, 1997).

A reformulação da prática científica no século XIX esteve relacionada com as aplicações da fotografia na ciência, tendo esta assumido um duplo papel, como meio de ilustração do objeto científico e como registo de experiências. Tal como aconteceu com outros ramos da ciência, a fotografia contribui para o desenvolvimento da pesquisa oceanográfica, sobretudo quando empregada em instrumentos de registo fotográfico de parâmetros físicos, como foi referido. Como meio de ilustração científica, a sua utilização na representação de organismos marinhos foi mais limitada do que o desenho e a aguarela, mesmo após a invenção da fotografia em cores, por ser difícil e dispendiosa a impressão a partir de autocromos.

O legado iconográfico deixado pelo rei, constituído por documentos, fotografias, desenhos e aguarelas, é para a história da oceanografia portuguesa mais do que uma simples representação da sua atividade científica; ele indica também a importância que a técnica fotográfica tinha para dom Carlos, como forma visual de registo de experiências, das atividades a bordo dos navios, das preparações microscópicas de organismos marinhos ou ainda dos especímenes biológicos recolhidos durante as campanhas.

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