versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.4 São Paulo out./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180065
As dores crônicas são reconhecidas como um problema de saúde pública. A elevada prevalência e indicadores de aumento nas incidências de dores crônicas, como a síndrome de fibromialgia (SFM)1 geram questionamentos sobre diagnóstico, abordagem terapêutica e intensidade dos sintomas relatados pelos pacientes2. O custo econômico e o desgaste social agregado às necessidades das pessoas que sofrem com condição crônica dolorosa generalizada, como a SFM, impacta negativamente em diversos países do globo, assim como no Brasil. Estima-se que a incapacidade física e emocional gerada pela dor está entre as 10 causas de maior impacto socioeconômico em países desenvolvidos e em desenvolvimento3.
A prevalência da SFM é estimada em torno de 2,5% da população4, embora estudos recentes tenham demonstrado um incremento nessa prevalência para 5% das mulheres nos Estados Unidos5 e 4,7% da população de alguns países da Europa6. A SFM não é a dor crônica de maior prevalência mundial, nem brasileira. Contudo, é foco de muitas pesquisas e estudos devido ao quadro clínico complexo e por ser onerosa ao sistema de saúde. Estima-se que um paciente com SFM gere custos diretos de 2 a 3 vezes mais do que outros pacientes com dores crônicas, no Canadá7 e nos Estados Unidos8, respectivamente. O custo direto em saúde envolve o número de consultas médicas, de exames laboratoriais e de imagem; fármacos e outros tratamentos. Os custos indiretos também são representativos ao ônus socioeconômico e são mensurados pelos dias de afastamento do trabalho, perda de produtividade, aposentadorias por invalidez, entre outros.
No Brasil, além da variabilidade na manifestação clínica da SFM, enfrentam-se grandes distâncias geográficas, diferentes heranças históricas e realidades sociais distintas entre os estados e as regiões do país9. Além disso, a desigualdade social se repercute no acesso à saúde, seja quanto ao diagnóstico ou quanto ao tratamento.
Investimentos para a elaboração de políticas públicas fundamentam-se sobre as necessidades populacionais identificadas por estudos epidemiológicos. E, por outro lado, a implementação de programas de saúde são planejadas de acordo com as características da população que sofre de SFM. Pesquisas básicas ou experimentais são igualmente norteadas por essas características de estudos populacionais; seja para a elaboração ou validação de tratamentos farmacológicos, protocolos de exercícios, aplicação de técnicas e métodos específicos de diferentes áreas da saúde. A complexidade dos estudos com a população que sofre de SFM deve-se tanto à variabilidade de sua manifestação clínica (dor difusa intensa, déficit em mecanismos de modulação da dor, distúrbios do humor e do sono, alterações digestivas, sintomas cognitivos, fadiga entre outros) quanto à dificuldade de acesso ao diagnóstico e à variabilidade de necessidades da população.
Estudos brasileiros estimam a prevalência de SFM em torno de 2,5%4. Desconhece-se estudos anteriores de base populacional que investiguem a prevalência, e a quais especialidades médicas os pacientes recorrem e quais seus sintomas de maior queixa. Em estudo prévio, observou-se a prevalência da dor crônica na população brasileira10.
O objetivo deste estudo foi descrever o perfil da população brasileira com SFM.
Foram utilizados dados secundários de um estudo prévio para identificar a prevalência de dor crônica no Brasil10. O cálculo amostral para o banco de dados do estudo de prevalência da dor crônica utilizou os seguintes parâmetros: população adulta (18 anos ou mais) estimada em 143 milhões, prevalência do desfecho (20%), erro amostral de 4 pontos percentuais e intervalo de confiança de 95% (n=385). O tamanho de amostra obtido foi multiplicado por dois em razão do delineamento do estudo, acrescido de 30% de perdas previstas. A amostra foi estimada em 1000 pessoas, estendida a 1011 e distribuída pela densidade demográfica de cada estado da federação e Distrito Federal. A amostra foi randomizada de um banco de dados privado com mais de um milhão de números de telefone celular. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 73% da população brasileira tem um número de aparelho celular10. O banco de dados foi construído de novembro de 2015 a fevereiro de 2016, por entrevista telefônica, utilizando o questionário validado em português10. Os dados secundários utilizados foram os casos que afirmaram presença de dor crônica por mais de seis meses e que responderam ter sido diagnosticados por um (ou mais) médicos com o diagnóstico de SFM. As variáveis independentes para a descrição do perfil epidemiológico e de utilização de serviços de saúde foram as características sociodemográficas (idade, gênero), caracterização da dor por frequência, intensidade, crises de dor aguda, localização da dor, interferência da dor no autocuidado, na caminhada, no trabalho, na vida social, na vida sexual, na qualidade do sono, se a dor causa tristeza ou deprime ou influencia os aspectos emocionais. Também foram avaliados quais os médicos que consultam os pacientes com dor.
A análise dos dados foi descritiva, média e desvio padrão para as variáveis contínuas, número de casos e porcentagem em função do gênero para as variáveis discretas e categóricas. Os dados foram analisados no sistema SPSS versão 20.0 para Windows.
No banco de dados do estudo original foram entrevistados 723 participantes dos 1101 telefonemas realizados, 304 responderam ter dor crônica e 13 relataram ter o diagnóstico de SFM. Esses correspondem a 2% da amostra total, sendo 2 casos do gênero masculino e 11 do gênero feminino, estabelecendo uma relação por gênero de 1 homem para 5,6 mulheres (1:5,6). Sessenta e nove por cento (n=9) dos participantes responderam consultar médico reumatologista, seguidos de 23% que consultam médico especialista em dor. Apenas uma participante relatou ser acompanhada por mais de um médico. Quinze por cento dos participantes (um do gênero feminino e outro do gênero masculino) fizeram terapia como estratégia para o tratamento da dor, enquanto 69% (n=9) destacaram o tratamento farmacológico como estratégia. Um paciente relatou não seguir tratamento algum e outro respondeu realizar outras estratégias (entre fisioterapia, Pilates, uso de órteses etc.). Na tabela 1 apresentam-se as características da dor e a interferência da dor nas atividades de vida diária. A maioria dos casos relatou muita interferência da dor no sono (n=8), alguns classificaram que a dor interfere muito no trabalho (n=5), irritabilidade (5) e finalmente, alguns relataram que a dor interfere moderadamente no autocuidado (n=5), caminhada (n=6), vida social (n=6), vida sexual (n=5) e causa moderamente tristeza ou deprime (n=5).
Tabela 1 Características dos casos com síndrome de fibromialgia - Banco de dados de estudo com banco de dados populacional - Brasil (2015-2016)10
Gênero masculino (n=2) | Gênero feminino (n=11) | Total | |
---|---|---|---|
Idade média (DP) | 34,5±10,6 | 36,1±10,1 | 35,8±9,8 |
Intensidade de dor (DP) | 7,5±0,7 | 7,3±2,6 | 7,3±2,4 |
Frequência da dor/semanal (dias) (% e n) | |||
Menos de um dia | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
1-2 | 0 (0) | 18 (2) | 15 (2) |
3-4 | 50 (1) | 9 (1) | 15 (2) |
5-7 | 50 (1) | 72 (8) | 69 (9) |
Duração das crises de dor* (n-12) (% e n) | |||
Breve | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Poucas horas | 50 (1) | 18 (2) | 23 (3) |
Um dia | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Constante | 50 (1) | 72 (8) | 69 (9) |
Interferência da dor no autocuidado (% e n) | |||
Não | 50 (1) | 9 (1) | 15 (2) |
Pouco | 0 (0) | 27 (3) | 23 (3) |
Moderado | 50 (1) | 36 (4) | 38 (5) |
Muito | 0 (0) | 18 (2) | 15 (2) |
Interferência da dor na caminhada* (% e n) | |||
Não | 0 (0) | 9 (1) | 7 (1) |
Pouco | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Moderado | 50 (1) | 45 (5) | 46 (6) |
Muito | 0 (0) | 27 (3) | 23 (3) |
Interferência da dor no trabalho (% e n) | |||
Não | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Pouco | 0 (0) | 9 (1) | 7 (1) |
Moderado | 50 (1) | 27 (3) | 31 (4) |
Muito | 0 (0) | 45 (5) | 38 (5) |
Interferência da dor na vida social (% e n) | |||
Não | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Pouco | 50 (1) | 18 (2) | 23 (3) |
Moderado | 0 (0) | 45 (5) | 38 (5) |
Muito | 0 (0) | 18 (2) | 15 (2) |
Dor causa irritabilidade (% e n) | |||
Não | 50 (1) | 9 (1) | 15 (2) |
Pouco | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Moderado | 0 (0) | 36 (4) | 31 (4) |
Muito | 0 (0) | 45 (5) | 38 (5) |
Dor causa tristeza ou deprime (% e n) | |||
Não | 50 (1) | 9 (1) | 15 (2) |
Pouco | 0 (0) | 9 (1) | 7 (1) |
Moderado | 0 (0) | 45 (5) | 38 (5) |
Muito | 0 (0) | 27 (3) | 23 (3) |
Dor afeta a vida sexual (% e n) | |||
Não | 50 (1) | 18 (2) | 23 (3) |
Pouco | 50 (1) | 9 (1) | 15 (2) |
Moderado | 0 (0) | 45 (5) | 38 (5) |
Muito | 0 (0) | 18 (2) | 15 (2) |
A dor interrompe o sono (% e n) | |||
Não | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
Pouco | 0 (0) | 27 (3) | 23 (3) |
Moderado | 0 (0) | 9 (1) | 7 (1) |
Muito | 50 (1) | 54 (6) | 62 (8) |
*Tempo aproximado da duração das crises de dor.
A prevalência da SFM na população brasileira foi de 2% com proporção de 1 homem para cada 5,5 mulheres. Esses resultados são equivalentes a estudos anteriores realizados em regiões pontuais do Brasil, como em São Paulo4. Contudo, ao ser comparado a estudos mais recentes, apresentam valor de prevalência inferior aos Estados Unidos e países europeus6,7. Estima-se que a atualização nos critérios de classificação da SFM, assim como o aumento na aceitação do diagnóstico possam influenciar diretamente no aumento dos valores indicados de prevalência.
A SFM tem seus critérios de classificação estabelecidos pelo American College of Rheumatology11 e esses são amplamente discutidos no Brasil em grupos de reumatologistas12 e grupos de estudos da dor13. A maioria dos casos deste estudo relatou consultar - principalmente - médicos reumatologistas, seguidos por médicos especialistas em dor. Nesse caso, também aplica-se o viés de informação e a condição social e geográfica para o acesso ao serviço de saúde e ao diagnóstico. No Brasil, o acesso aos serviços de saúde é por vezes escasso em algumas regiões do país, assim como a desatualização de alguns profissionais em regiões afastadas dos grandes centros, visto que os critérios diagnósticos da SFM sofrem atualizações11,14,15 e geram muitas discussões entre os clínicos e pesquisadores12. Assim como a limitação para acesso ao diagnóstico, o plano de tratamento e acesso à medicação também dificultam o prognóstico dessa população. A fim de otimizar o planejamento de novas práticas de tratamento para essa população, verificou-se que a dor constante, em intensidade elevada e os distúrbios do sono são as principais queixas da maioria dos casos investigados. A presença da dor constante é redundante aos critérios diagnósticos. Embora a grande maioria dos casos relate consultar médicos, os dados contradizem expectativas de dores em menores intensidades ou menos frequentes ao serem tratados. Reconhece-se que o sucesso do tratamento depende de vários fatores, além do acesso ao médico especialista, cita-se: (a) acesso ao fármaco, (b) acesso ao fisioterapeuta, psicólogo e a outros profissionais de saúde, (c) manejo da dor por tratamento unimodal versus multimodal, (d) comunicação entre paciente, médico e demais profissionais de saúde que acompanham o paciente com SFM, (e) recursos financeiros do paciente para ter acesso a fármacos, e às consultas com os profissionais que o atendem, (f) disponibilidade de fármacos e de profissionais de saúde especializados no tratamento da dor, (g) adesão ao tratamento farmacológico, ao processo terapêutico e à reabilitação16-19.
Os distúrbios do sono são outro sintoma recorrente, entre os entrevistados deste estudo, cuja maioria descreve que a dor interfere muito na qualidade do sono. Os distúrbios do sono estão diretamente relacionados à sensibilidade álgica dos pacientes20, seja por distúrbios no metabolismo neuroendócrino proporcionado a cada fase do ciclo do sono, ou pelas interrupções do sono causadas pela presença de dor corporal, ou ainda por sintomas emocionais e cognitivos que dificultam iniciar o sono. Para o tratamento da SFM, as diretrizes18,19 recomendam mudança de hábitos (higiene do sono, prática regular de exercício físico, técnicas de respiração e relaxamento), fármacos indutores do sono, relaxante muscular entre outros. A dor e o sono devem seguir abordagem multidisciplinar, desde a avaliação da qualidade do sono (por exemplo: polissonografia, questionários validados, discurso do paciente, respiração, apneia, roncos), do ambiente para dormir (por exemplo: luminosidade, ruídos, colchão). A prática de exercício físico regular e orientado está incluída nas diretrizes de tratamento da SFM tanto por seu efeito sobre o sono, quanto na dor e no humor17,21. Os aspectos da esfera relacional e afetiva à interferência da dor e aspectos da vida laboral e social tendem a apresentar maior impacto para a população do gênero feminino no presente estudo. A dor provoca sentimentos de depressão, causa irritação e afeta a vida sexual, o que parece compatível com o que estudos17 vêm preconizando, ou seja, que quanto mais houver interferência da dor em diferentes aspectos da vida mais acentuadas serão as queixas relacionadas a áreas citadas.
A participação social é uma variável que ganha destaque em pesquisas, sobretudo após a publicação da Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade em 2001 pela Organização Mundial de Saúde22. Estudos qualitativos e programas de tratamento multi ou interdisciplinar suportam o impacto negativo da dor na participação social na população com SFM17,23. Considera-se como participação social a possibilidade de organizar festas, receber amigos ou familiares, sair esporadicamente à noite para encontrar pessoas ou ir ao teatro/cinema/lazer, praticar atividades de lazer, ter concentração no trabalho e em outras atividades, desenvolver atividades que exigem força física ou raciocínio lógico, conseguir equilibrar atividades domésticas, laborais e de lazer, entre outos24. Embora nos resultados deste estudo não haja uma tendência ao comprometimento da participação social e laboral, considera-se necessário avaliar cada caso para ajustar o plano de tratamento ao paciente.
A interferência da dor na vida sexual também apresenta distribuição similar entre as categorias avaliadas. Contudo, estudos anteriores25,26 realizados sobretudo com a população de gênero feminino, demonstram um impacto da FM com a atividade sexual quando comparado com uma população equivalente em idade/género. Além da dor difusa, distúrbios do sono, baixo nível de atividade física, fadiga, depressão e ansiedade também estariam relacionadas à disfunção sexual em pessoas com SFM25. Estima-se que mais de três quartos das mulheres com SFM tenham algum problema sexual, onde a depressão, ansiedade e sensibilidade são os sintomas de maior associação com o comprometimento na atividade sexual. A atividade física teria um comportamento protetor ao risco de interferência da dor na atividade sexual27.
O manejo de sintomas da SFM vai além da dor. Conforme já descrito, as diretrizes de tratamento da SFM expandem os tratamentos ao objetivo de redução da dor. Dentro desse contexto multifatorial, pesquisadores brasileiros desenvolveram um aplicativo (ProFibro) para a promoção de saúde, auxiliando os pacientes no manejo do autocuidado. Nos resultados do presente estudo, o autocuidado apresenta uma variação entre as categorias, porém essa variável permanece um desafio somado ao tratamento dos pacientes. Destaca-se a necessidade de auxiliares (tecnológicos ou não) para facilitar a promoção de autocuidado como: monitoramento do sono, programas de exercício, monitorar humor entre outros como a prática da gratidão proposta pelo aplicativo ProFibro28.
A prevalência da síndrome de fibromialgia foi estimada em 2% da população brasileira, através de dados secundários a um estudo de prevalência da dor crônica.