Compartilhar

A Prevenção Primordial e a "Saúde de Vestir": os Wearables na Cardiologia

A Prevenção Primordial e a "Saúde de Vestir": os Wearables na Cardiologia

Autores:

Eduardo Campos Pellanda,
Lucia Campos Pellanda

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.6 São Paulo jun. 2016

https://doi.org/10.5935/abc.20160094

A epidemiologia tem apontado para a importância crescente da prevenção como forma de lidar com a epidemia de risco cardiovascular. Uma das mudanças fundamentais de conceitos nas últimas décadas foi o deslocamento do paradigma da prevenção para etapas cada vez mais precoces, tanto do desenvolvimento da doença, atingindo um número cada vez maior de pessoas que ainda não desenvolveram uma condição patológica ou que se encontram em seus estágios iniciais e tratáveis, como da própria linha da vida, buscando, na vida intrauterina, a origem de doenças crônicas.1 Assim, surgiu o conceito de prevenção primordial, ou seja, a prevenção dos fatores de risco propriamente ditos.

Em uma situação ideal, evitar a instalação dos fatores de risco em uma população a manteria livre de doenças. Apesar de utópico, o cenário descrito é útil para guiar estratégias de prevenção. Um dos principais objetivos atuais é alcançar o maior número possível de pessoas antes que elas desenvolvam um perfil de risco.

Nesse sentido, a revolução dos wearables, ou dispositivos vestíveis, tem grande potencial para contribuir com a prevenção primordial, por participar do dia a dia das pessoas em uma abrangência impossível para intervenções isoladas baseadas somente nos serviços de saúde.

Para entender os wearables, é preciso recordar como o computador deixou de ser algo frio para estar sempre colado ao corpo. Os formatos de dispositivos computacionais evoluem desde o final dos anos 1970, com a introdução do conceito de máquinas pessoais, ou personal computers - os PC. Esse termo "pessoal" designa um artefato de computação diluído na vida cotidiana das pessoas, não corporativo. Se, nos anos 1980, eles conquistaram os lares, no meio da década de 1990, surgiram dispositivos de diversos tamanhos e formatos alimentados por baterias que permitiam uma mobilidade de uso até então inédita. Enquanto redes wireless (de dados ou voz) expandiram seus alcances, o telefone passou a andar com as pessoas e até mesmo roubar a atenção que antes era dada ao rádio e ao relógio.

Essa infraestrutura viabilizou uma mudança radical na relação do usuário comum com a computação, também provocando o nascimento de um ecossistema de aplicativos móveis nessa nova forma de acesso à internet - a principal, para muitos. Esta conexão em estado de mobilidade é "always-on" e hiperpessoal,2 além de permitir novas formas de comunicação no ambiente das metrópoles. A evolução lógica seria o uso intenso da comunicação móvel, bem como a miniaturização de componentes e aparelhos usados anexados ao corpo, e não mais nos bolsos.3,4

Os wearables podem, então, não só estar sempre presentes com o indivíduo como também coletar, por meio de sensores, informações do próprio corpo, como medir passos ou batimentos cardíacos. Em virtude das telas muito pequenas, ou mesmo sem displays, são, ao mesmo tempo, extensões do smartphone e pontos de entrada de informação por meio da voz.5

Nessa fase inicial, eles assumem formas conhecidas, como um óculos (Google Glass) ou um relógio (Apple Watch e Pebble, entre outros). Em ambos os casos, há uma adaptação dos formatos originais de óculos e relógios para processar informações. Relógios teriam potencialmente uma resistência menor, pois sempre tiveram algum tipo de informação extra em relação às horas. Já os óculos sempre foram percebidos para a amplificação e correção de realidades óticas, o que torna sua transformação menos aceitável socialmente nesse momento histórico.

No momento, o que parece claro é que as pessoas têm diferentes pontos de informação em seu corpo, tornando a percepção de conexão mais natural e "invisível". A venda global de wearables deve chegar à casa dos 200 milhões de unidades até 2019.6 Diante do cenário atual, é preciso pensar nos wearables não apenas como um acessório de vestir, mas como um acessório informacional, que pode auxiliar o público capturando dados ou informando. Essas duas possibilidades e suas combinações permitem colocar mais do que dados em momentos que as pessoas não estão diante de telas, além do novo caráter de utilidade que informações no pulso, por exemplo, podem carregar.

Aparelhos simples de captura de dados, como as pulseiras com sensores de movimentação e frequência cardíaca, podem gerar um volume de informações enorme, que permite não só o monitoramento do paciente individual, mas também o planejamento de estratégias coletivas de prevenção. Esse tipo de Big Data pode ser útil, por exemplo, para avaliar intervenções ecológicas, como a mudança do traçado urbano, para estimular a atividade física da população de uma cidade.7

Além disso, a própria monitorização pode ajudar na mudança de comportamento, pois aprofunda o conhecimento do indivíduo sobre si mesmo e o estimula a assumir o protagonismo no cuidado com sua saúde.8

Este é mais um exemplo da necessidade de novos paradigmas na pesquisa em prevenção. Para que seja possível acompanhar a evolução dos conceitos em prevenção e a própria mudança dos estilos de vida em tempos de mobilidade da informação, a pesquisa também necessita ser inovadora, transdisciplinar e ágil. Os Arquivos Brasileiros de Cardiologia, em seu papel de estimular a pesquisa inovadora em Cardiologia, propõem a realização de estudos de intervenção em nosso meio, para que as inovações tecnológicas possam, de fato, contribuírem para a melhora dos desfechos em saúde.

REFERÊNCIAS

1 Pellanda LC. Trajectories of cardiovascular health: life course epidemiology in Brazil. Arq Bras Cardiol. 2014;102(5):418-9.
2 Pellanda EC. Internet móvel: novas relações na cibercultura derivadas da mobilidade na comunicação. [Tese]. Porto Alegre: Departamento Comunicação Social da PUCRS; 2005.
3 Ryan SE. Garments of paradise: wearable discourse in the digital age. Cambridge (MA): The Mit Press; 2014.
4 Greengerdn S. The Internet of things. Cambridge (MA): The Mit Press; 2014.
5 Saffer D. Microinteractions, design with details. Sebastopol (CA): O'Reilly Media Inc, 2013.
6 International Data Corporation (IDC). IDC. Forecasts worldwide shipments of wearables to surpass 200 million in 2019, driven by strong smartwatch growth. [Cited in 2016 May 10]. Available from:
7 Cummins P, Serruys PW. Sensors, wearables and devices in the e-age: tomorrow's world today. EuroIntervention. 2015;10(12):1373.
8 Mercer K, Li M, Giangregorio L, Burns C, Grindrod K. Behavior change techniques present in wearable activity trackers: a critical analysis. JMIR Mhealth Uhealth. 2016;4(2):e40.