versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.85 no.1 São Paulo jan./fev. 2019
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.10.005
A incidência de carcinomas diferenciados de tireoide (CDT) tem crescido significativamente,1 especialmente devido a maior frequência de microcarcinoma de tireoide (MCT). 2,3 Embora o MCT esteja geralmente associado a um excelente prognóstico,4 alguns pacientes apresentam tumores mais agressivos, resultando em maiores taxas de persistência/recorrência e doença ativa no seguimento em longo prazo.5 Assim, muitos parâmetros clínicos, histopatológicos e moleculares relacionados a MCT, com complexidades e custos variáveis, foram avaliados na busca de marcadores que possam prever maior agressividade e pior prognóstico.6 No entanto, esses parâmetros variam de um estudo para outro e os fatores associados a pior prognóstico ainda não foram completamente estabelecidos, o que impede o consenso sobre a melhor abordagem de tratamento para o MCT. Tumores maiores, multifocalidade e invasão capsular têm sido associados a metástases linfonodais,7 enquanto a idade mais baixa, multifocalidade, localização subcapsular, extensão extratireoide, fibrose tumoral intraglandular e mutação do gene BRAF foram associadas a maior recorrência. 8,9
Nesse contexto, em geral, uma única dosagem sérica de tireoglobulina estimulada (TgE) pelo hormônio tireoestimulante (TSH) após a tireoidectomia total tem sido útil para prever um melhor prognóstico em pacientes com CDT.10 Ainda assim, estudos que avaliam esse parâmetro especificamente em pacientes com MCT são escassos. Este estudo avaliou se a primeira dosagem pós-operatória de TgE (1a TgE) é um fator prognóstico em pacientes com MCT.
Este estudo retrospectivo avaliou o curso clínico de pacientes com MCT e comparou a 1a TgE e muitos outros parâmetros clínicos, laboratoriais e terapêuticos de pacientes com e sem persistência/recorrência do tumor após o tratamento inicial. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição na qual foi feito (protocolo nº 4288-2012).
Os dados médicos pós-operatórios tardios de 150 pacientes foram avaliados. Os pacientes eram acompanhados no ambulatório de neoplasias da tireoide de um hospital terciário no Brasil. Cinquenta e quatro (36%) pacientes com MCT submetidos à tireoidectomia total (TT) entre 1994 e 2010 foram selecionados. Esses pacientes não apresentavam outras neoplasias da tireoide, não foram positivos para os anticorpos antitireoglobulina (TgAb), tinham tempo pós-operatório de pelo menos 24 meses e tomavam levotiroxina.
O protocolo de tratamento/seguimento do serviço em pacientes com CDT no momento em que os casos foram incluídos no estudo consistiu em TT, seguido de pesquisa de corpo inteiro (PCI) e dosagem de tireoglobulina (1aTgE) endógena estimulada por TSH três meses após a TT. Os pacientes receberam então uma dose ablativa/terapêutica de iodo radioativo (DTI) seguida de PCI confirmatória cinco dias depois. Um ano após a DTI, TgE e TSH foram medidos e um ultrassom (USG) de pescoço foi feito. As avaliações clínicas e laboratoriais foram feitas a cada quatro ou seis meses, inclusive a dosagem de TSH sérico, tiroxina livre (FT4), TgAb e tireoglobulina (Tg). A radiografia e USG do pescoço e tórax foram feitas anualmente e outros exames de imagem, [tomografia computadorizada (TC) do tórax, USG abdominal, ressonância magnética (RM) do pescoço e mediastino, nova PCI e tomografia por emissão de pósitrons (PET-CT)] ou testes cito-histológicos foram solicitados quando havia suspeita de doença ativa.
Os MCT foram definidos como tumores observados na análise histopatológica com maior diâmetro ≤ 1,0 cm e diagnóstico histológico de carcinoma papilífero (CP), carcinoma folicular (CF) ou carcinoma de células de Hürthle.11
A principal variável de interesse foi a 1a TgE. No entanto, as características gerais dos pacientes, a apresentação inicial da neoplasia, o tratamento e o desfecho da doença também foram avaliados. Os casos com e sem persistência/recorrência de doença foram comparados em relação a esses parâmetros para determinar possíveis preditores do desfecho persistência/recorrência. Os pacientes foram inicialmente caracterizados por sexo, idade no momento da cirurgia, etnia autorrelatada e apresentação inicial da doença, que considerou o seguinte: características e estágio tumorais [risco de recorrência (LATS) e mortalidade (TNM)], 12,13 primeira PCI pós-operatória (a PCI foi considerada positiva se qualquer captação em qualquer segmento foi detectada por cintilografia) e porcentagem de captação de iodo131 (I131). Os aspectos relacionados ao tratamento como esvaziamento cervical durante a TT, número de doses de I131 e dose total acumulada (em mCi) também foram avaliados.
O desfecho da doença foi avaliado principalmente de acordo com a persistência ou recorrência do tumor. Os seguintes itens também foram avaliados: condição do paciente na última avaliação, com ou sem doença ativa; tempo de sobrevida sem doença (em meses); e tempo de acompanhamento (em meses). A persistência ou recorrência da doença foi definida como TgE ≥ 2 ng/mL, ou doença ativa evidenciada por testes de imagem ou biópsia um ano após o tratamento inicial (TT e PCI). 14,15 O tumor ativo na última avaliação foi definido como morte causada pelo tumor ou a presença do mesmo critério usado para a definição de persistência ou recorrência.
FT4, TSH e Tg foram determinados por quimiluminescência (DPC, Los Angeles, CA, EUA) no laboratório clínico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu. Os valores de referência para FT4 e TSH foram 0,80-1,90 ng/dL e 0,40-4,0 µUI/mL, respectivamente, enquanto que para Tg foram 0,83-68,0 ng/mL. As sensibilidades analítica e funcional de Tg foram 0,2 ng/mL e 0,9 ng/mL (para valores superiores a 2 ng/mL), respectivamente.
As variáveis foram submetidas à análise univariada em relação à persistência ou recorrência do tumor. Apenas a idade apresentou distribuição simétrica, por isso foi avaliada pelo teste t de Student. As outras variáveis numéricas (médias ± desvios-padrão, DP) foram ajustadas pelo modelo linear generalizado com uma distribuição gama (assimétrica). As variáveis qualitativas (porcentagens) foram avaliadas pelo teste exato de Fisher. Posteriormente, a regressão logística multivariada foi feita com as variáveis de análise univariada com p ≤ 0,15. A variável de resposta foi persistência ou recorrência do tumor. As variáveis foram selecionadas pelo método stepwise.
Foi construída uma curva ROC (Receiver-Operating Characteristics) para a 1a TgE para estabelecer o ponto de corte e determinar a sensibilidade e especificidade do marcador para predizer a persistência ou recorrência do tumor. O nível de significância foi estabelecido em 5% (p < 0,05).
A tabela 1 mostra os dados gerais dos pacientes. Cinco pacientes (9,3%) tiveram recorrência e 15 (27,8%) tiveram persistência/recorrência, dos quais oito (53,3%) ainda apresentavam doença ativa na última avaliação clínica. Não ocorreram metástases distantes ou óbitos durante o período de acompanhamento.
Tabela 1 Dados clínicos e histopatológicos dos pacientes
Dados gerais | |
---|---|
Sexo feminino, n (%)a | 48 (88,9) |
Etnia branca autorrelatada, n (%)a | 53 (98,2) |
Idade (anos)b | 46,30 ± 13,58 |
Seguimento (meses)b | 76,91 ± 69,19 |
Tireoidectomia total, n (%)a | |
Um estágio | 33 (61,1) |
Dois estágios | 21 (38,9) |
Esvaziamento linfonodal, n (%)a | 16 (29,6) |
Subtipos histológicos, n (%)a | |
Carcinoma papilar | |
Clássico | 41 (75,9) |
Variante folicular | 8 (14,8) |
Esclerosante | 1 (1,8) |
Mucinoso | 1 (1,8) |
De células colunares | 1 (1,8) |
De células oncocíticas | 1 (1,8) |
Folicular | 1 (1,8) |
Tamanho do tumor (cm)b | 0,61 ± 0,30 |
Multifocalidade, n (%)a | 20 (37,0) |
Bilateralidade, n (%)b | 15 (27,8) |
Cápsula do tumor, n (%)a | |
Completa | 13 (24,1) |
Incompleta | 8 (14,8) |
Ausente | 33 (61,1) |
Metástases de linfonodos, n (%)a | 7 (13) |
Estadiamento TNM, n (%)a | |
I | 44 (81,5) |
III | 1 (1,8) |
IV | 9 (16,7) |
1a varredura corporal total positiva, n (%)a | 51 (94,4) |
1a dosagem de tireoglobulina estimulada (ng/dL)b | 6,72 ± 23,6 |
Número de doses de iodo 131 , n (%)a | |
0 | 1 (1,9) |
1 | 44 (81,5) |
2 | 8 (14,8) |
3 | 1 (1,9) |
Captação de iodo131 (%)b | 1,51 ± 1,65 |
Dose cumulativa de iodo131 (mCi)b | 167,79 ± 69,84 |
Recorrência, n (%)a | 5 (9,3) |
Persistência/recorrência n (%)a | 15 (27,8) |
Doença ativa na última avaliação médica, n (%)a | 8 (14,8) |
Sobrevida livre de doença (meses)b | 42,06 ± 65,03 |
%, porcentagem; cm, centímetros; mCi, milicuries; N, número; ng/dL, nanogramas por decilitro; TNM, tumor-nódulo-metástases, sistema de estadiamento da American Joint Commission on Cancer (AJCC).13
aFrequências e porcentagens para variáveis categóricas.
bMédia ± desvio-padrão.
O grupo com persistência/recorrência da doença apresentou maior nível de 1a TgE (p < 0,0001), dose acumulada de I131 (p < 0,0001), tempo de seguimento (p = 0,019), porcentagem de pacientes que receberam duas ou mais doses de I131 (p < 0,0001) e porcentagem de pacientes com doença ativa na última avaliação (p < 0,0001) (tabela 2).
Tabela 2 Análise comparativaa dos dados clínicos e histopatológicos entre pacientes com e sem persistência/recorrência de câncer
Dados gerais | Persistência/recorrência da doença | ||
---|---|---|---|
Não n = 39 (72,2%) | Sim n = 15 (27,8%) | p | |
Idade (anos) | 44,87 ± 13,19 | 50,00 ± 14,32 | 0,217 |
Sexo feminino, n (%) | 36 (92,3) | 12 (80,0) | 0,197 |
Tireoidectomia total em dois estágios, n (%) | 15 (38,5) | 6 (40,0) | 0,917 |
Esvaziamento linfonodal, n (%) | 10 (25,6) | 6 (40,0) | 0,301 |
Tamanho do tumor (cm) | 0,63 ± 0,29 | 0,57 ± 0,33 | 0,618 |
Multifocalidade, n (%) | 15 (38,5) | 5 (33,3) | 0,727 |
Bilateralidade, n (%) | 11 (28,2) | 4 (26,7) | 0,946 |
Carcinoma papilar clássico, n (%) | 31 (79,5) | 10 (66,7) | 0,324 |
Tumor encapsulado, n (%) | 8 (20,5) | 5 (33,3) | 0,324 |
Invasão da cápsula tumoral, n (%) | 4 (10,3) | 3 (20,0) | 0,306 |
Metástases linfonodais, n (%) | 5 (12,8) | 2 (13,3) | 0,960 |
Metástases linfonodais contralaterais, n (%) | 2 (5,1) | 2 (13,3) | 0,147 |
TNM III/IV, n (%) | 8 (20,5) | 2 (13,3) | 0,543 |
1a tireoglobulina estimulada (ng/dL) | 2,19 ± 2,54 | 19,01 ± 44,18 | < 0,0001 |
Captação de iodo131 (%) | 1,57 ± 1,65 | 1,36 ± 1,45 | 0,687 |
1a varredura corporal total positiva, n (%) | 36 (92,3) | 15 (100,0) | 0,269 |
Dose cumulativa de iodo131 (mCi) | 144,08 ± 33,61 | 232,14 ± 99,09 | < 0,0001 |
Seguimento (meses) | 66,85 ± 70,14 | 103,07 ± 61,27 | 0,019 |
Duas ou mais doses de iodo131, n (%) | 0 (0,0) | 9 (60,0) | < 0,0001 |
Sobrevida livre de doença (meses) | 39,44 ± 69,56 | 48,87 ± 52,97 | 0,116 |
Doença ativa na última avaliação médica, n (%) | 0 (0,0) | 8 (53,3) | < 0,0001 |
%, porcentagem; cm, centímetros; mCi, milicuries; n, número; ng/dL, nanogramas por decilitro.
aAnálise univariada de variáveis categóricas (n e %; teste exato de Fisher) e numéricas [média ± desvio-padrão; teste t de Student para idade e ajuste para modelo linear generalizado com distribuição gama (assimetricamente), para as demais variáveis] para a presença de persistência e/ou recorrência de câncer. Significância: p < 0,05. As variáveis com p ≤ 0,15 na análise univariada foram avaliadas posteriormente pela análise multivariada.
Na regressão logística multivariada, a 1aTgE [odds ratio (OR) = 1.242; intervalo de confiança de 95% (IC95%): 1,022-1,509; p = 0,029] e tempo de seguimento (OR = 1,027; IC 95%: 1,007-1,048; p = 0,007) foram preditores independentes de risco de persistência/recorrência de CDT.
Com base na curva ROC, ponto de corte da 1a TgE de 1,6 ng/dL foi associado a uma sensibilidade de 70% e uma especificidade de 60% (área sob a curva = 0,713; p = 0,019) para a persistência/recorrência do tumor (fig. 1). A maioria dos pacientes (71,4%) com nível de 1ªTgE igual ou superior a 1,6 ng/dL apresentou persistência/recorrência tumoral e a maioria dos casos (60,5%) com nível de TgE abaixo de 1,6 ng/dL não apresentou (fig. 2).
Figura 1 Curva ROC (Receiver Operating Characteristic curve) da primeira tireoglobulina estimulada [ponto de corte = 1,6 ng/dL (área sob a curva: 0,713; p = 0,019)] como preditor de persistência/recorrência do câncer.
A determinação de TgE no soro após TT e antes da ablação com I131, aqui chamada 1ª TgE, pode ajudar a prever a resposta inicial à terapia e o prognóstico do CDT. 10,16,17 No entanto, a maioria dos estudos avalia o CDT em geral e não investiga a 1ª TgE especificamente em pacientes com MCT. Neste estudo observou-se que 1ª TgE pode ser um preditor independente de persistência/recorrência de carcinoma também para esses tumores. Esse marcador permaneceu significativo mesmo quando avaliado em conjunto com outros parâmetros frequentemente associados com o prognóstico de MCT. 8,9,18-20
Um tópico importante a ser discutido é o ponto de corte ideal da 1ª TgE para o prognóstico. Para os CDT em geral, os níveis entre 20 e 30 ng/mL foram associados com maior sensibilidade e especificidade para prever a persistência/recorrência da doença, enquanto os níveis < 1-2 ng/mL seriam fortes preditores de remissão.4 Em uma metanálise recente com quase 4.000 pacientes, Webb et al. encontraram um alto valor preditivo negativo para o estado livre de doença quando a Tg sérica pré-ablação foi inferior a 10 ng/mL.10 No entanto, os níveis exatos de Tg necessários para estabelecer o prognóstico de CDT em geral ou MCT não foram estabelecidos, pois dependem de muitos fatores, como o nível de TSH,16 sensibilidade do ensaio e quantidade de tecido residual, entre outros.4 O ponto de corte encontrado pelo presente estudo para MCT (1,6 ng/dL) foi muito menor do que os pontos de corte mencionados anteriormente, com 70% de sensibilidade e 60% de especificidade para prever persistência/recorrência da doença. Esse achado pode ser explicado de muitas maneiras. Primeiro, considerando que todos os pacientes do estudo foram submetidos à TT e a captação de I131 após a cirurgia e antes da ablação foi relativamente baixa, inferimos que o tecido cervical remanescente deve ter sido pouco, o que poderia, pelo menos parcialmente, explicar os pontos de corte mais baixos. Além disso, apesar da Tg atingir seu ponto mais baixo cerca de três a quatro semanas após a TT,4 ela poderia ter continuado a diminuir após este período inicial.15 Assim, uma vez que avaliamos a TgE cerca de três meses após a cirurgia, esse intervalo mais longo poderia ter contribuído para os pontos de corte mais baixos.
Embora a taxa de recorrência do MCT não seja alta, especialmente em pacientes submetidos a TT,21 ela não é insignificante. Neste estudo, as taxas de persistência/recorrência da doença e doença ativa na última avaliação foram quase 30% e 15%, respectivamente. Portanto, acreditamos que a abordagem terapêutica deve ser individualizada e que a TgE pode ser um dos parâmetros incluídos nessa individualização. Com base nos resultados deste estudo, em pacientes com TgAb negativo, o nível de TgE abaixo de 2 ng/dL, medido nos três primeiros meses após a TT e antes da eventual dose terapêutica de I131, indica um bom prognóstico em pacientes com MCT.
As limitações deste estudo poderiam ter influenciado os resultados e incluem: seu caráter retrospectivo, o tamanho amostral modesto, os vários subtipos histológicos incluídos (alguns com pior prognóstico), a incapacidade de classificar os casos de acordo com a apresentação inicial da doença (MCT incidental ou não incidental) 22,23 e o tratamento inicial dos pacientes (tireoidectomia total e dose terapêutica de I131), que atualmente não tem sido indicado para MCT.4 No entanto, o mérito deste estudo é revelar a importância de medir a TgE após tireoidectomia para estabelecer o prognóstico do MCT.
A primeira medida pós-operatória da TgE foi capaz de prever persistência/recorrência de MCT. Outros estudos com amostras maiores e diferentes desenhos são necessários para confirmar esses resultados.