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A reforma deformada

A reforma deformada

Autores:

Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.33 no.5 Rio de Janeiro 2017 Epub 05-Jun-2017

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00052317

Por óbvio, a questão demográfica é acionada para justificar a necessidade de que seja implementada uma reforma na previdência social. Até aí, tudo bem. O problema reside na condução deformada do processo. Entre outros aspectos dessa deformação, o governo, capitalistas, setores da mídia e do parlamento buscam comparações entre dimensões que são incomparáveis, como na menção aos países desenvolvidos; e tentam igualar o que é inigualável, exceto num horizonte largo, como nos casos dos diferenciais regionais, das condições laborais dos trabalhadores rurais e da dupla jornada das mulheres.

O presente artigo procurará focar, mas não apenas, na dimensão demográfica do debate. Outras deformações e distorções como: ignorar o arcabouço jurídico que trata da seguridade social; a opacidade do processo ao não abrir as contas da seguridade social, afirmando a existência de déficit contabilizando todas as despesas e apenas parte das receitas; o modelo de projeção atuarial duvidoso e não explicitado que justifique o tempo de contribuição de 49 anos; o aumento da idade para o acesso ao Benefício da Prestação Continuada (BPC); a dilatação do período de contribuição para 25 anos para que se possa requerer aposentadoria; entre outras, podem ser mais bem elucidadas e descontruídas nas publicações 1,2,3.

Já de algum tempo, os setores mais conservadores e os setores que se encontravam no poder central, desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso, vêm tratando da questão do envelhecimento populacional como uma ameaça sem tamanho aos cofres públicos e, em última instância, à própria sobrevivência dos sistemas de previdência social no país. Ao mesmo tempo em que repetiam esse mantra, introduziam as reformas previdenciárias que as condições das correlações de forças permitiam. No contexto do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foram implementados os fatores 85/95 para a aposentadoria dos servidores públicos federais: idade mínima de 55 anos de idade e 30 de contribuição para mulheres, e de 60 anos de idade e 35 de contribuição para os homens, com regra de transição para os trabalhadores que já faziam parte do regime jurídico único (RJU); fim da integralidade para os novos servidores; e a criação de um fundo de aposentadoria complementar para os novos servidores. Em relação ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), e já de olho num possível ajuste fiscal, Dilma Rousseff enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 664/2014, em que, entre outras medidas, atentava significativamente contra importantes benefícios do RGPS como a pensão por morte, auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-reclusão.

Essa forma de olhar a evolução populacional põe em relevo a dimensão negativa do envelhecimento, ignorando por completo o estágio da transição demográfica que proporciona o maior volume de pessoas em idade ativa. Desde ao menos os anos 1980, a dinâmica da população resultante da combinação do declínio nas taxas de fecundidade e da estrutura etária, produto das etapas anteriores da transição, possibilitaram que o país entrasse num período de redução nas razões de dependências total e jovem e ligeiro aumento na dependência de idosos, o chamado “bônus demográfico”. Essa “janela de oportunidades” seria o momento propício para gerar renda, riqueza e poupança, inclusive para fazer caixa para que a previdência social viesse a enfrentar o iminente envelhecimento em condições mais favoráveis. Nessa etapa, os custos com o segmento jovem deixam de pressionar de forma mais intensa o orçamento público, possibilitando maiores investimentos que visassem à necessária melhoria na qualidade da educação; as demandas por recursos em saúde e previdência social, decorrentes do envelhecimento, tendem a ser baixas; e a oferta de força de trabalho é abundante 4.

Aqui já aparece um paradoxo no discurso desses governos que tentam isolar o debate da previdência dos demais aspectos econômicos relacionados a ela. Passados os anos 1980, a década perdida, que impossibilitava o aproveitamento dessa ampla oferta de mão-de-obra, dada as altas taxas de desemprego, como explicar que, após a retomada do crescimento da economia, que com altos e baixos seguiu até os anos 2010, exista um possível déficit entre arrecadação e despesa na parte da seguridade referente à previdência social? Olhando apenas o aspecto demográfico, a explicação viria da baixa formalização dessa força de trabalho, ou seja, no modelo de repartição tem de existir contribuição de quem está economicamente ativo para arcar com o pagamento daqueles já aposentados. Se essa contribuição é baixa ou nenhuma não há reforma que dê jeito, seja qual for o tempo de contribuição ou a idade mínima, o sistema vai quebrar! Enfim, se o desenvolvimento econômico não estiver atrelado ao desenvolvimento social parece não existir muita saída.

Uma mirada nessa breve história possibilita entender que o “bônus demográfico” está sendo desperdiçado, daí as aspas. Sem política pública, a “janela de oportunidade” é uma mera abstração. Tanto o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, quanto as gestões de Lula e Dilma Rousseff e agora Michel Temer não olharam para a dimensão da dinâmica populacional que é extremamente positiva e estratégica para o futuro do país 5. Segundo as projeções oficiais vigentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 6, as razões de dependência seguirão sua trajetória de queda até 2023, a partir desse momento começariam a ser afetadas pela contribuição do segmento idoso aporta ao indicador, apenas em 2037 a razão de dependência de jovem se tornaria inferior à dos idosos; a população em idade ativa apresentará tendência de crescimento até os anos 2040; e, em 2060, mesmo quando o volume de pessoas em idade ativa estiver declinando, serão aproximadamente 131,4 milhões de pessoas, quase o dobro do observado em 1980 e próximo ao de 2010. Não fora a miopia e a defesa cega do capital, o lado extremamente positivo da dinâmica populacional deveria ser incorporado pelos governantes numa discussão séria sobre a reforma previdenciária.

Outra distorção na apropriação da questão demográfica - seria risível se não fossem trágicas as consequências - ocorre quando os arautos da reforma descambam a fazer comparações entre aspectos que não são comparáveis. Ao constatarem que o indicador esperança de vida ao nascer é profundamente desigual entre as diversas regiões do país, dado que as projeções oficiais 6 apontam, por exemplo, que a expectativa média de vida de uma pessoa que nasceu no Maranhão, no ano de 2016, seria de 70,6 anos, ao passo que uma criança nascida no mesmo ano em Santa Catarina teria mais nove anos de vida, buscam como saída para implementar a comparação a utilização da expectativa média de vida de 65 anos, indicador que apresenta diferenciais pequenos, visto que, uma vez superada as fases mais agudas de incidência de morbidades, que acontecem na infância e as mortes por causas violentas na fase adulta jovem, as expectativas de vida passam a convergir.

O que se omite nessa comparação são as condições que cada um chega aos 65 anos de idade, em outras palavras, que a expectativa de vida saudável, aqueles anos de sobrevida livres de incapacidades, reservada a cada um desses segmentos estará determinada pela inserção social/laboral ao longo da vida. Assim, aqueles mais pobres, que enfrentaram trabalhos mais duros e que tiveram menos acesso aos serviços de saúde e ao saneamento básico mesmo tendo chegado aos 65 anos terão pela frente uma quantidade de anos sem problemas de saúde menor do que aqueles mais favorecidos.

Assim, nesta etapa da transição demográfica na qual o país caminha em direção ao envelhecimento populacional, mas ainda num estágio de abundante oferta de força de trabalho, o governo não aproveita o que ainda resta da janela de oportunidades para resolver um “possível problema mais imediato de fluxo no caixa” da previdência social e buscar minimizar os diferenciais entre espaços em que a desigualdade de renda impõe condições de vida assimétricas. Ao contrário, querem aprovar uma reforma que não dará resposta imediata à relação ingressos vs. despesas previdenciárias, além de pavimentar a estrada que levará ao esvaziamento do sistema de previdência público; ao aprofundamento da pobreza, sobretudo nos segmentos mais idosos, que não lograram alcançar os requisitos para se aposentarem e/ou acessarem os benefícios; à perda de produtividade, face ao desestímulo ao estudo, uma vez que o jovem terá que ingressar no mercado de trabalho aos 16 anos de idade para fazer jus à integralidade de sua aposentadoria, entre outros aspectos. Medidas que nada resolvem de imediato e armam uma bomba relógio social e econômica a explodir num futuro próximo. Qual será a dimensão das tensões sociais decorrentes do iminente aumento da pobreza, da falta de proteção social e de um sistema de previdência efetivamente quebrado? As ações do governo, do ponto de vista estratégico, parecem não atender à lógica mais geral do capital, que necessita de um mínimo de paz social para sua acumulação.

Os caminhos alternativos possíveis, sempre pensando a evolução demográfica, passariam, em primeiro lugar, pela incorporação ao mercado de trabalho formal dessa gigantesca massa de trabalhadores disponível em idade ativa; pelo aproveitando da menor pressão exercida nas primeiras idades (crianças e jovens), investir na melhoria da qualidade da educação, desde a creche e pré-escola, de modo a proporcionar atividades econômicas intensivas em conhecimento; por aumentar as taxas de atividade, em particular das mulheres, processo que seria favorecido com a oferta de creches. Tal lógica parte da premissa de que o desenvolvimento econômico só faz sentido com inclusão social. O tempo demográfico ainda nos permite alguma “janela” para que se atue nessa perspectiva, de modo que as mudanças necessárias a serem propostas nas regras da previdência sejam realizadas num cenário de menor desigualdade social, com maior dinamismo econômico, possibilitando pensar com mais tranquilidade nos modelos de transição de um regime a outro no que tange às alterações na idade mínima para o acesso integral ao benefício. Essas são propostas que dizem respeito a um projeto de nação para a sociedade brasileira completamente distinto daquele preconizado por aqueles que hoje estão governando o país.

REFERÊNCIAS

1. Puty CACB, Gentil DL. A Previdência Social em 2060: as inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro. (acessado em 19/Mar/2017).
2. Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da Previdência social brasileira. (acessado em 19/Mar/2017).
3. Sakamoto L. Reforma deveria ajustar e não destruir a Previdência, dizem especialistas. (acessado em 19/Mar/2017).
4. Oliveira ATR. Os desafios ao desenvolvimento econômico e social colocados pela dinâmica demográfica. In: Fonseca A, Fagnani E, organizadores. Políticas sociais, desenvolvimento e cidadania. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2013. p. 401-21.
5. Oliveira ATR. Envelhecimento populacional e políticas públicas: desafios para o Brasil no século XXI. Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica 2016; IV:1-20.
6. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeção da população do Brasil por sexo e idade: 2000-2060. (acessado em 27/Mar/2016).