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A regionalização e financiamento da saúde: um estudo de caso

A regionalização e financiamento da saúde: um estudo de caso

Autores:

Francisco de Assis da Silva Santos,
Garibaldi Dantas Gurgel Júnior,
Hélder Freire Pacheco,
Petrônio José de Lima Martelli

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.23 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201500040126

Abstract

In Brazil, states have increased their participation in the development of health policies. This study aimed to analyze the decision-making process of the State government of Pernambuco on the priorities for investment, both with respect to primary care and in the regionalization process, from the perspective of several actors. The study is exploratory, cross-sectional, using quantitative and qualitative approaches. We analyzed the State health expenses and interviewed 18 informants, representing municipalities, state and federal government, in addition to two local groups with municipal managers and representatives of the State Board of Health. The results show differences of the actors on the definition of priorities and, according to the majority, there is a lack of government commitment to primary care finance actions; however they recognize the advancement in the regionalization process.

Key words: federalism; health policy; public health; Investiments

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 definiu um novo pacto federativo, no qual cada esfera governamental tem autonomia financeira e administrativa, o que trouxe diversas consequências para as políticas sociais. Se, por um lado, havia uma descentralização das políticas – uma desresponsabilização do governo federal enquanto provedor/executor de assistência em diversas áreas –, do outro lado provocou uma redefinição do papel dos outros entes federativos, no caso, estados e municípios1.

No Brasil, o financiamento da saúde é responsabilidade das três esferas de governo (federal, estadual e municipal). Contudo, a execução das ações de saúde, na maior parte do país, é responsabilidade das cidades, que recebem transferências diretamente do Fundo Nacional de Saúde para o Fundo Municipal, provocando uma descentralização acelerada e com baixa participação dos estados2.

O papel secundário dos estados na discussão da política de saúde começou a mudar a partir do início dos anos 2000, com o fortalecimento das discussões sobre a regionalização e a necessidade de se firmarem pactos e contratos com metas e responsabilidades locais e regionais3. Há o fortalecimento de espaços de governança, nos quais municípios, estados e o governo federal discutem uma diversidade de temas de maneira colegiada. Mais recentemente, isso passou a representar a reinstitucionalização dos estados federados na política de saúde, o reescalonamento da produção dos serviços e do poder de decisão para o nível regional, de responsabilidade dos estados, por meio das gerências executivas, em face da ausência de outro nível administrativo no Brasil.

O fortalecimento das arenas de discussão colegiada fez surgir a necessidade da construção de uma ideia de funcionamento do sistema-rede, pois o funcionamento do sistema de saúde possui contornos próprios e que necessitam de uma interconexão municipal, estadual e federal cujo alicerce é a atenção básica, que coordena o cuidado em saúde e integra diversos sistemas para a garantia da atenção integral e resolutiva4,5.

No campo da descentralização da saúde, verifica-se que há uma ressignificação do papel dos governos estaduais na construção e acompanhamento das políticas de saúde, pois os instrumentos de gestão normativa do SUS reafirmam a possibilidade de uma corresponsabilização intermunicipal em escala regional que apenas é viável com a contribuição estadual coordenando e orientando todo o processo6,7.

Estudo realizado em Minas Gerais sobre o papel do estado na efetivação da regionalização demonstrou que, na óptica dos gestores municipais, o governo estadual deve desenvolver mecanismos de reorientação do financiamento no território, como distribuição equilibrada de recursos, desenvolvimento de câmaras de compensação e proposição de serviços de saúde centrados em uma perspectiva da economia de escala e de escopo, respeitando as características culturais, históricas e sociais das regiões de saúde8.

Em Pernambuco, foi publicada em 2007 a portaria n. 720, que institui a Política Estadual de Fortalecimento da Atenção Primária, com vistas à valorização e à melhoria da cobertura e qualidade da Atenção Primária9. Após discussão com o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems), foram definidos critérios para o repasse de recursos aos municípios, fato esse que ocorreu no ano de 201210. Em paralelo, o estado iniciou um processo de rediscussão de um novo Plano Diretor de Regionalização, ainda no ano de 2009, no qual houve a discussão, em todas as regionais de saúde, de como seria a conformação de novos serviços e as prioridades em cada espaço do estado, um processo concluído em 2011, com a elaboração de um novo Plano Diretor de Regionalização11.

É fato reconhecido a importância da participação dos estados no processo de regionalização e financiamento tripartite de ações e serviços de saúde. A partir desse reconhecimento, o presente estudo propõe analisar o papel do estado de Pernambuco quanto às prioridades de investimento, nos níveis de complexidade dos serviços e no processo de regionalização, com base na visão dos diversos atores da política de saúde no estado.

MÉTODO

O estudo é do tipo exploratório de corte transversal, com a utilização de abordagens quantitativa e qualitativa para coleta e análise de dados. O período do estudo foi de 2007 a 2012, devido às importantes mudanças políticas ocorridas nesse período. A área do estudo possui uma população de 8.796.032 habitantes, distribuídos em 184 municípios e um distrito estadual. Desde o ano de 2011, quando foi construído o último Plano Diretor de Regionalização (PDR), o estado de Pernambuco foi dividido em 12 regiões de saúde e quatro macrorregiões11.

Na etapa quantitativa do estudo foram coletados dados no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), referentes aos investimentos estaduais em saúde. Entre as variáveis utilizadas estão: ano, despesa líquida em atenção básica e média e alta complexidade e evolução dos gastos segundo a lei complementar 141/201212, a qual define que o gasto estadual em saúde deve ser de, no mínimo, 12% do orçamento. Todas as informações financeiras foram corrigidas a partir da variação da inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de janeiro de 2013. O cálculo de valores per capita foi baseado nas estimativas populacionais utilizadas pelo governo federal para repasse de recursos públicos a estados e municípios.

Na etapa qualitativa foram selecionados informantes-chave que efetivamente participaram do processo de elaboração da política de regionalização. Foram realizadas entrevistas com membros de câmaras técnicas das quatro macrorregiões de saúde do estado, totalizando seis atores, que representaram os municípios (TM), três técnicos da Secretaria Estadual de Saúde envolvidos com os processos de regionalização (TE), dois gestores do Ministério da Saúde (GMS), um do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (TN) e, por fim, dois membros da Academia (PESQ). Foram entrevistados todos os Secretários Estaduais de Saúde (GE) do período de 2007 a 2012, quatro no total, e realizados dois grupos focais com gestores municipais (GF GM) e do Conselho Estadual de Saúde (GF CES). No total, foram realizadas 18 entrevistas e dois grupos focais, números esses considerados satisfatórios para o estudo, pois na pesquisa qualitativa o que mais importa não é o número, mas a qualidade do fenômeno a ser investigado13.

O grupo focal dos gestores municipais teve a participação de dez secretários de saúde, que representavam todas as quatro macrorregiões do estado. O grupo focal do Conselho Estadual de Saúde teve oito participantes, quatro representando os usuários e quatro, os trabalhadores da saúde. Toda a coleta de dados ocorreu entre maio e dezembro de 2012.

Os dados quantitativos foram tabulados a partir do software Excel 2007, o qual utiliza ferramentas da estatística descritiva para apresentação dos resultados, sendo esses demonstrados por meio de gráficos e tabelas. Os achados qualitativos foram analisados mediante análise de condensação de significados de Kvale14 e estão apresentados a partir de trechos transcritos.

O atual estudo faz parte da pesquisa intitulada O impacto das Reformas Estruturais no SUS: Uma análise compreensiva sobre gasto público, acesso e performance da assistência a saúde de 2006 a 2011. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, sob o número CAEE – 0037.0.095.408-11.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A ampliação dos investimentos em saúde nas regiões desenvolvidas e em desenvolvimento pode levar ao aumento na expectativa de vida com produtividade e, consequentemente, ao crescimento econômico15. Ao analisar a evolução do gasto público em saúde em Pernambuco e verificar quais os investimentos, segundo a obrigatoriedade imposta pela legislação, pode-se observar uma ampliação nos investimentos em saúde no período estudado (Tabela 1).

Tabela 1 Investimento (%) em saúde*  

Ano %
2007 14,11
2008 14,8
2009 15,81
2010 17,64
2011 15,73
2012 15,74
2013 15,74

*Investimento (%) em saúde em Pernambuco, segundo a lei complementar 141/2012. Fonte: Siops16.

Como pode ser verificado na Tabela 1, houve uma redução no investimento de 2010 a 2011. O que pode ser explicado pelo término da construção de grandes hospitais justamente entre 2007 e 2010. No geral, houve uma ampliação dos investimentos com recursos fiscais do estado. No entanto, esse fato não é exclusividade pernambucana, é um fenômeno nacional, devido à menor participação do governo federal no custeio das ações e maior responsabilidade dos outros entes17.

Apesar do financiamento da saúde ser responsabilidade de municípios, estados e do governo federal, desde os anos 2000 observou-se um aumento dos recursos estaduais no financiamento da saúde, em virtude da vinculação de um patamar mínimo de investimentos dos entes federados na saúde18. Vale ressaltar que isso ocorreu principalmente a partir da Norma Operacional de Assistência à Saúde (Noas), que propõe superar a fragmentação municipalista do sistema de saúde, já que essa obstaculiza o processo de regionalização.

Estudo publicado por Espirito Santo et al.19 demonstra que houve um aumento da despesa pública municipal em saúde no estado de Pernambuco entre os anos de 2000 e 2007. No entanto, essa despesa ainda fica abaixo da média brasileira. Daí a crescente necessidade de investimentos estaduais para a manutenção do Sistema de Saúde em Pernambuco. Ademais, o estado está localizado na Região Nordeste, uma das mais pobres do Brasil, a qual possui a maior parte dos municípios de pequeno porte e com pouca capacidade de arrecadação própria de recursos, o que amplia a necessidade de apoio financeiro da gestão estadual. Scatena et al.20, em estudo com mais de 3 mil cidades brasileiras, observaram como ainda é forte a dependência de recursos federais na saúde na maioria desses municípios, sobretudo em decorrência das características histórico-estruturais da administração pública.

A análise dos investimentos em saúde de Pernambuco, segundo o nível de complexidade do sistema, constatou uma expansão superior dos gastos em média e alta complexidade, em detrimento da atenção básica, durante o período estudado (Tabela 2).

Tabela 2 Evolução dos valores per capita*  

Ano Investimento per capita
(R$)
Atenção Primária Média e Alta Complexidade
2007 R$ 1,53 R$ 220,93
2008 R$ 4,12 R$ 157,62
2009 R$ 1,82 R$ 181,76
2010 R$ 1,27 R$ 198,81
2011 R$ 3,28 R$ 145,87
2012 R$ 2,46 R$ 336,08

*Evolução dos valores per capita referentes ao investimento estadual na atenção básica, média e alta complexidade, Pernambuco, 2007 a2012. Fonte: Elaborado pelo autor.

Mesmo com uma política de fortalecimento da Atenção Primária em vigor desde o ano de 2007, que definiu metas de desempenho para os municípios tendo como objetivo o acréscimo de recursos para o nível primário, observa-se que, na prática, isso não ocorreu. Essa política não garantiu, de forma esperada e efetiva, o cofinanciamento, como também manteve a discrepância entre o financiamento dos blocos da atenção básica e da média e alta complexidade. Apesar de não existir uma exigência legal quanto ao valor que deveria ser repassado por parte dos estados, para a manutenção de ações e serviços da Atenção Primária, a concentração de recursos estaduais na média e alta complexidade não ocorre apenas em Pernambuco. Estudos apontam que a contribuição dos estados do Nordeste, principalmente no cofinanciamento da atenção básica, é quase insignificante, como no Rio Grande do Norte21,22 e na Bahia, onde a participação do estado na manutenção das ações da Atenção Primária ficou em torno de 1%23.

Machado et al.24 verificaram que, durante o governo do ex-presidente Lula, priorizou-se a Atenção Primária, a assistência farmacêutica e a rede de urgência e emergência. Desde a década de 1990, os municípios assumiram a responsabilidade pela prestação da assistência na saúde e, em grande parte, os gastos com atenção básica e, consequentemente, houve uma redução dos investimentos estaduais nesse nível de atenção. Castro e Machado25 demonstram que, apesar de uma evolução no investimento federal per capita em Atenção Primária, ainda é elevada a distorção em favor da média e alta complexidade, nos últimos anos.

O fortalecimento de redes de média e alta complexidade sem o ordenamento do fluxo coordenado pela atenção básica pode provocar uma desregulação da oferta/demanda, como afirmam Pinheiro e Sarti26. Quando são ampliados os investimentos de assistência de média e alta complexidade sem o cuidado de ampliar os gastos com a atenção básica surgem problemas, como (des)economia de escala, elevação de custo unitário por procedimento e acirramento da disputa pelos recursos disponíveis. Os serviços de Atenção Primária devem ser considerados como alicerces de um sistema de saúde organizado; contudo esses serviços apresentam diversas limitações, caso não tenham uma forte articulação com outros níveis de complexidade. Isso porque o paciente deve ter acesso tanto à porta de entrada quanto à de saída do Sistema de Saúde27.

Em virtude da descentralização de recursos, desde a implantação do Sistema Único de Saúde há um fortalecimento do papel dos municípios como executores das ações de saúde28. Contudo, Lima et al.22 destacam que, principalmente nos municípios com menos recursos, o que se constata são vazios assistenciais – especialmente de equipamentos de maior complexidade, o que gera a peregrinação de moradores de municípios de pequeno porte para grandes capitais, em busca de atendimento especializado. É o que ainda ocorre de forma semelhante em Pernambuco, onde, mesmo com a definição e pactuação da regionalização no estado, continua intenso o fluxo de pacientes do interior para a capital, já que os serviços de maior complexidade estão na Região Metropolitana29.

Pernambuco é, historicamente, um provedor de serviços públicos de saúde de média e alta complexidade e se constata que essa tendência foi mantida. Diversos atores da pesquisa enfatizam esta característica, como apresentado nas falas a seguir:

[...] Falando de Pernambuco [...] é um estado que é extremamente executor, tem unidades suas em municípios, em regiões, então ele acaba tendo não apenas em algumas regiões o papel de coordenação, mas também de gestão. (GMS 2)

[...] Pernambuco tem uma tradição, talvez a mais forte do país, uma política extremamente centralizadora, não é de hoje, centralizadora na mão do estado. (PESQ 2)

[...] Eu acho que a participação do estado especificamente na saúde pública é muito maior do que deveria. (GE 2)

[...] Identificamos que as prefeituras tinham deficiência de recursos humanos, deficiência de recursos financeiros e de recursos técnicos, e que a Secretaria de Saúde precisava voltar a ser o indutor das políticas públicas de saúde [...] (GE 3)

[...] O estado é extremamente assistencialista, e ele tem que se preocupar demais com os hospitais estaduais [...] (TE 2)

O fato de Pernambuco continuar a ser o responsável por prover e executar diversos serviços de saúde vai de encontro ao que é definido nos atuais espaços de governança do SUS. Há um entendimento de que o Sistema de Saúde depende de uma articulação territorial, uma interdependência municipal e um planejamento integrado, tendo a gestão estadual como coordenadora30. Portanto, o estado federado deve assumir um papel de maestro da rede de saúde, articulando ações intermunicipais e interfederativas.

Atualmente se discute a necessidade da conformação de redes de atenção à saúde, que atendam as demandas regionais e possam materializar as definições construídas no Plano Diretor de Regionalização (PDR), responsável por orientar onde devem ser estrategicamente implantados os serviços de saúde. Pernambuco, por meio de discussão nas diversas regiões do estado, concretizou o novo PDR ainda no ano de 201111. Como relatado por alguns atores, esse instrumento não garantia a efetivação da regionalização das ações:

[...] Ainda é uma coisa muito cartorial, houve a aprovação, mas não há nada de concreto, a concretude não se deu, isso mostra fragilidades do processo de regionalização. (TM 4)

[...] Nós discutimos o PDR... ele é lindo, só que a gente não toca nos dois pontos fundamentais do SUS, de uma regionalização para dar certo e de uma rede para dar certo que são recursos humanos e investimento. (GF GM)

Em estudo realizado por Lima et al.22 em todo o território nacional, avaliando o processo de regionalização em 24 estados, foi verificado que, na maior parte dos estados nordestinos, o contexto, entre os anos de 2007 e 2010, era desfavorável à conformação de sistemas regionais que ampliassem o acesso à população. O estudo aponta que a conjuntura em Pernambuco era favorável, provavelmente devido à mudança de gestão e à evolução econômica do estado, um dos primeiros, no Brasil a possuir uma organização regionalizada. Entretanto, para os autores, havia uma institucionalidade intermediária e uma governança conflitiva nos espaços de gestão colegiada que desfavorecem a regionalização, características comuns a diversos estados da região. As falas a seguir apresentam o dissenso que existe, entre os atores, quando a questão é o papel do estado no cofinanciamento de ações de saúde:

[...] apesar do cofinanciamento não ser direto ao gestor municipal, o estado hoje ainda assume uma grande parcela no custo com a saúde.(TE 1)

[...] até 2007 não havia repasse financeiro algum do estado para os municípios, aí houve um processo de certificação, no qual as equipes de atenção básica foram avaliadas no seu funcionamento e o financiamento apareceu, de forma ainda muito tímida. (TM 3)

[...] A expectativa, quando se fala de cofinanciamento, é recurso para custeio, então a expectativa é imaginar que se tenha nos municípios cofinanciamento na Atenção Primária para além desses investimentos que o estado faz para os equipamentos como os hospitais. (GMS 2)

[...] O que a gente vê aqui no estado de Pernambuco, do ponto de vista do financiamento, chama a atenção em Pernambuco a baixíssima participação do estado na atenção básica. (ACA 1)

[...] E outra coisa que esse modelo também está evidenciando muito claramente: Um esvaziamento da atenção básica. (GF CES)

[...] Não se discute regionalização sem garantir recursos para a atenção básica. Até agora não houve nenhuma discussão, nem uma posição nem do estado, nem do Ministério em como vai fazer para que o município efetivamente tenha uma atenção básica que permita que a regionalização seja de fato concretizada nos municípios, porque sem atenção básica não vai ter regionalização. (GF GM)

A falta de consenso nos discursos referidos indica diversas visões sobre o papel do estado como cofinanciador das ações da Atenção Primária. Há relatos de que, para o alcance da integralidade, as redes regionalizadas devem ser integradas à atenção básica, que assim podem oferecer condição estruturalmente mais adequada para a efetivação da integralidade da atenção e “reduzem os custos dos serviços, por imprimir uma maior racionalidade sistêmica na utilização dos recursos”31. Vale ressaltar ainda que, tanto o Plano Diretor de Regionalização como o Plano Diretor de Investimentos, Programação Pactuada e Integrada e o complexo regulatório não têm retratado um efetivo processo de negociação com os municípios, o que dificulta ainda mais a integração dos municípios com o estado, seja no tocante à provisão dos serviços, pois há concorrência, em certos locais, de serviços de saúde municipais com estaduais, seja no cofinanciamento29.

Reis et al.32 realizaram uma ampla pesquisa no estado de Pernambuco com o intuito de compreender que consensos devem fazer parte da avaliação do processo de regionalização. A pesquisa apontou uma série de indicadores, construídos com a participação de diversos especialistas em regulação, gestão e avaliação em saúde, que representavam experiências e nichos distintos de profissionais para, a partir daí, desenvolver um instrumento capaz de avaliar o grau de implementação da regionalização. Entre diversos achados relevantes apresentados na pesquisa está a importância dada pelos especialistas ao papel do estado como articulador e fomentador de financiamento nos diversos níveis de atenção, para a conformação de uma saúde regionalizada, para superar as discrepâncias de financiamentos regionais. O gestor estadual deve participar efetivamente da conformação da estratégia de fortalecimento e indução das redes locais de saúde, contribuindo para a consolidação da Atenção Primária. Para Mello et al.33, as redes de saúde regionalizadas só podem ser formadas com a integração da Atenção Primária à regionalização.

Ouverney30 levantou algumas questões que podem ser apontadas como aplicáveis ao modelo escolhido em Pernambuco, pois o estado enfocou ações gerenciais em atividades complementares (média complexidade), concentração de decisões e informações, funções de controle, autoridade e poder na Secretaria Estadual de Saúde, além do baixo investimento na atenção básica, o que demonstra que atividades preventivas e de promoção de saúde têm pouca relevância. Esse cenário é pouco propício à germinação de mudanças profundas no perfil epidemiológico da população, à melhoria da articulação regional e ao ganho de economia de escala e de escopo no desenvolvimento das ações de saúde.

No que se refere à atenção básica, observa-se que, em 2012, todos os municípios do estado possuíam equipes da Estratégia Saúde da Família, com cobertura média de aproximadamente 70% da população. Contudo, mesmo com alguns municípios com cobertura total pela ESF ainda persiste a lógica de racionalização da escassez de recursos, com a manutenção dos vazios assistenciais. O que mostra a urgência cada vez maior de reverter as fragilidades ainda presentes na efetivação da regionalização, no estado de Pernambuco34.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com a obrigatoriedade de se investir pelo menos 12% dos recursos estaduais em saúde, não há nenhuma norma que imponha regras claras para o financiamento tripartite, principalmente na Atenção Primária. Portanto, no caso dos estados federados quem define os gastos são os governos, e isso pode ser um empecilho para o processo de regionalização pois, como foi apresentado, para que esse procedimento ocorra de maneira plena é necessária a responsabilização de todos os entes federados para garantia da integralidade das ações e o acesso a serviços eficientes e resolutivos.

Apesar do fortalecimento dos espaços de governança, como as Comissões Intergestoras Regionais, isso não foi garantia de um processo de descentralização de recursos a ponto de gerar maior autonomia para as regionais de saúde e os municípios.

Fica assim evidente que não há um empenho do estado em financiar ações da atenção básica, ao mesmo tempo em que gestores e técnicos estaduais afirmam ter avançado no processo de regionalização, com a definição de um novo PDR, fato que não é corroborado por parte dos técnicos municipais.

Fica então a pergunta: Como regionalizar a saúde no estado de Pernambuco sem financiar a atenção básica?

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