versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.27 no.4 São Carlos out./dez. 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1843
Desde o surgimento da psiquiatria como ciência no século XVIII até a época dos movimentos de reforma psiquiátrica, a institucionalização psiquiátrica foi um recurso utilizado no mundo todo para lidar com o problema social que a loucura representava. Geralmente distantes dos centros urbanos, as instituições psiquiátricas promoviam isolamento e exclusão, afastando a pessoa com transtorno mental da sociedade e da família sob as justificativas de promover isolamento terapêutico e de proteger a família da indisciplina e da desordem do louco (GOMES; SILVA; BATISTA, 2018). A pessoa internada, desprovida de quaisquer direitos, por longos anos de privação de liberdade.
Diante dessas práticas, frequentemente marcadas por maus-tratos, a reforma psiquiátrica brasileira iniciada no fim da década de 1970 propôs mudanças significativas e urgentes na atenção à saúde mental. As concepções da relação entre família e transtorno mental começaram a ser modificadas com a substituição do modelo hospitalocêntrico por um modelo composto por serviços extra-hospitalares de crescente complexidade, designando à família um papel de destaque na oferta de cuidado (GOMES; SILVA; BATISTA, 2018). Mudanças na legislação brasileira resultaram em uma diminuição significativa no número de internações de longa duração em instituições psiquiátricas, priorizando a realização do tratamento em serviços de atenção à saúde mental localizados na comunidade. Os familiares se tornaram os principais cuidadores e assumiram a responsabilidade pelo cuidado físico, emocional, médico e financeiro da pessoa com transtorno mental, porém, muitas vezes sem o preparo necessário para lidar com as situações problemáticas de maneira adequada (SOUZA et al., 2017).
As dificuldades envolvidas na oferta de cuidado às pessoas com transtornos mentais pelos familiares podem ser ainda maiores em períodos de agudização da doença. A Rede de Atenção Psicossocial atualmente é composta por serviços e equipamentos variados, dentre os quais se destacam Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (BRASIL, 2015). Nesse novo cenário, que ainda se encontra em construção, uma das propostas é que os casos de crise psiquiátrica que necessitam de internação sejam atendidos nos CAPS III ou em leitos de psiquiatria em Hospitais Gerais (BRASIL, 2015). Os CAPS III funcionam durante 24 horas e oferecem acolhimento noturno às pessoas em crise psiquiátrica (BRASIL, 2015). Já nos leitos de psiquiatria em Hospitais Gerais, a proposta é estabilizar a crise psiquiátrica com internações de curta duração. Contudo, atualmente esses dois equipamentos ainda têm número de vagas insuficiente para atender às demandas da população, o que faz com que os hospitais psiquiátricos continuem coexistindo com os novos serviços.
No atual contexto de mudanças paradigmáticas que embasam a oferta de cuidado à saúde mental, muitas questões ainda precisam ser exploradas a fim de que o trabalho proposto nos serviços extra-hospitalares seja planejado de maneira eficaz e, principalmente, para que a família e os serviços estejam alinhados para lidar com a complexidade das questões envolvidas. A oferta de cuidados pelos familiares às pessoas com transtornos mentais em períodos de crise psiquiátrica ou em agudização do transtorno mental, é uma das questões que merece ser melhor explorada.
Uma das maneiras de investigar o impacto dos transtornos mentais na família, é por meio do conceito de Emoção Expressa (EE) que foi desenvolvido a partir da década de 1950 no Instituto de Psiquiatria de Londres (BROWN et al., 1962). A EE se refere à qualidade da interação social entre os membros da família, ou seja, aos sentimentos que os familiares expressam em relação à pessoa com transtorno mental (ZANETTI et al., 2018a). É uma medida qualitativa do número de emoções expressas diariamente no ambiente familiar, pela família ou por cuidadores (ZANETTI et al., 2018a). A EE é composta por comentários críticos (CC), superenvolvimento emocional (SEE) e hostilidade. O componente CC refere-se às avaliações negativas dos familiares sobre o comportamento da pessoa com transtorno mental; o componente SEE refere-se aos sentimentos e às atitudes de auto sacrifício, superproteção e desesperança dos familiares em relação à pessoa com transtorno mental; e o componente de hostilidade, geralmente associado aos CC, refere-se às avaliações negativas ou ao desprezo, enquanto ser humano, da pessoa com transtorno mental (BROWN; BIRLEY; WING, 1972; ZANETTI et al., 2018a).
A EE é uma medida relevante, pois diversos estudos mostram que pessoas com transtornos mentais provenientes de famílias com alta EE têm pior prognóstico da doença e mais episódios de agudização psiquiátrica do que aquelas provenientes de famílias com baixa EE (AHMAD et al., 2017; ZANETTI et al., 2018b).
Cuidar de uma pessoa com transtorno mental gera emoções e sentimentos conflituosos e pode ser uma tarefa estressante, principalmente se o cuidador não tiver preparo ou amparo adequados. O estresse é definido por Selye (1950) como um conjunto de reações que ocorrem em um organismo quando este está submetido ao esforço de adaptação. Na teoria do estresse desse autor, denominada “Síndrome de Adaptação Geral” e revisada por Lipp (2000), o estresse é composto por quatro fases: alarme, resistência, quase-exaustão e exaustão. Segundo Selye (1950) e Lipp (2000), caso a fonte de estresse não seja removida ou estratégias de enfrentamento não sejam adequadamente empregadas, inicia-se um processo de adoecimento, com sintomas que podem ser físicos ou psicológicos, tais como diarreia, hipertensão arterial, irritabilidade e angústia, entre outros. Pesquisas nacionais e internacionais apontam que os cuidadores se tornam mais susceptíveis a eventos estressores devido à interação e às atividades que o cuidado requer, principalmente no caso de doenças crônicas (MARONESI et al., 2014; LITZELMAN; KENT; ROWLAND, 2016; TREASURE; NAZAR, 2016; RIGONI et al., 2016).
Um dos fatores que podem aumentar a suscetibilidade ao estresse na vida adulta, é vivenciar situações estressantes durante a infância e adolescência, períodos importantes de desenvolvimento. O conceito de estresse precoce envolve diversas experiências traumáticas ocorridas durante a infância e a adolescência, tais como violências, abusos (físico, emocional e sexual) e negligências (física e emocional) (MARTINS-MONTEVERDE; PADOVAN; JURUENA, 2017). Estudos internacionais mostram que o estresse precoce pode impactar negativamente no desenvolvimento de estruturas cerebrais e acarretar mudanças neurobiológicas e neuroendócrinas permanentes que aumentam consideravelmente o risco de doenças tanto físicas quanto psiquiátricas na fase adulta (KRUGERS et al., 2017; NOLL; SHALEV, 2018).
Assim, a emoção expressa, o estresse precoce e os sintomas de estresse, são variáveis importantes a serem considerados na assistência aos familiares cuidadores no contexto da saúde mental. No Brasil os estudos sobre EE ainda são escassos (ZANETTI et al., 2018a; MARTINS; LEMOS; BEBBINGTON, 1992), e não foram identificados estudos que investigassem essas variáveis de maneira articulada entre cuidadores de pessoas com transtornos mentais. Investigar como os cuidadores lidam com os períodos antecedentes à uma crise psiquiátrica que necessita de internação para ser estabilizada, pode fornecer subsídios importantes para planejar novas estratégias de apoio à essa população, sobretudo nos serviços extra-hospitalares. Intervenções embasadas na qualidade da relação entre cuidador e pessoa que recebe os cuidados, bem em aspectos que têm impacto nessa relação, podem fornecer aos cuidadores ferramentas para lidar de modo mais eficaz com os períodos de crise, podendo até mesmo evitar que as internações ocorram em alguns casos.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investigar a emoção expressa, o estresse precoce e os sintomas de estresse entre cuidadores informais de pessoas com transtornos mentais no momento da internação psiquiátrica. Foram investigadas as hipóteses de que as variáveis sociodemográficas, a presença estresse precoce e a presença de sintomas de estresse entre os cuidadores poderiam ser preditivos de alta EE nos componentes CC e SEE.
Estudo de abordagem quantitativa, do tipo descritivo e com delineamento transversal.
Os participantes foram cuidadores informais de pessoas com transtornos mentais admitidas para internação em um hospital psiquiátrico público estadual localizado no interior do Estado de São Paulo/Brasil.
De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (BRASIL, 2019), os cuidadores são pessoas que zelam pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer da pessoa assistida. Esses cuidadores podem ser formais e/ou informais. Cuidadores formais são profissionais treinados ou preparados em uma instituição de ensino para prestar cuidados mediante remuneração. Já os informais, abordados neste estudo, são membros da família ou amigos que prestam qualquer tipo de assistência à pessoa cuidada, sem treinamento formal para desempenhar essa tarefa e geralmente sem receber nenhum tipo de remuneração. Em ambos os casos a oferta de cuidados envolve a prestação de auxílio nas diversas atividades cotidianas, desde as mais simples às mais complexas.
Neste estudo, todos os cuidadores das pessoas com transtornos mentais admitidas para internação de maio a setembro de 2015, foram convidados para participar deste estudo.
Os critérios de inclusão foram: ser o cuidador principal, ter idade igual ou superior a 18 anos e aceitar participar do estudo nos primeiros 15 dias de internação da pessoa admitida.
Ao longo da coleta de dados, 172 cuidadores foram candidatos a participar. Destes, 41 foram excluídos por não atenderem aos critérios de inclusão e 9 se recusaram a participar. Outros 10 cuidadores foram excluídos por não conseguirem escolher uma das respostas às questões realizadas no momento da coleta, aparentando não compreender as perguntas, inviabilizando que a coleta de dados fosse realizada. Isso resultou em uma amostra final, por conveniência, de 112 cuidadores. Foi incluído apenas um cuidador de cada pessoa admitida para internação.
O convite aos cuidadores foi feito no momento da internação da pessoa com transtorno mental ou após, via contato telefônico. Os cuidadores foram informados sobre os objetivos e procedimentos do estudo e aqueles que concordaram participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A coleta de dados foi realizada no momento da internação ou após, no momento em que o cuidador visitava a pessoa internada, em uma sala reservada do hospital para garantir um ambiente privado, acolhedor e sem interferências.
As pesquisadoras leram as questões dos instrumentos para todos os participantes, os quais escolheram as respostas em um cartão de respostas previamente preparado. O tempo médio cada participante levou para responder todos os instrumentos foi de 30 minutos.
Um questionário sociodemográfico contendo 24 questões fechadas, elaborado pelas pesquisadoras, foi utilizado para acessar informações gerais do cuidador, tais como sexo, idade, grau de escolaridade e estado civil, entre outras.
Para avaliar a emoção expressa, foi utilizado o Family Questionnaire – Versão Português do Brasil (FQ-VPB), traduzido e validado no Brasil por Zanetti, Giacon e Galera (2012) a partir do instrumento original, denominado Family Questionnaire (FQ), desenvolvido na Alemanha por Wiedemann et al. (2002).
O FQ-VPB contém 20 questões fechadas, subdivididos em dois componentes: comentários críticos (10 itens) e superenvolvimento emocional (10 itens). As respostas variam de 1 (muito raramente) a 4 (sempre), com intervalo possível de 10 a 40 pontos em cada componente. Os cuidadores são avaliados com alta EE se pontuarem 23 ou mais no componente CC, ou 27 ou mais no componente SEE (43; 47).
Para avaliar o estresse precoce, foi utilizado o Questionário de Trauma na Infância (QUESI), traduzido e validado no Brasil por Grassi-Oliveira, Stein e Pezzi (2006) a partir do instrumento original, denominado Childhood Trauma Questionnaire (CTQ), desenvolvido nos Estados Unidos por Bernstein et al. (1994).
Este questionário acessa, retrospectivamente, a ocorrência de 5 subtipos de traumas ocorridos durante a infância ou a adolescência. É composto por 28 questões fechadas, divididas em 5 subcategorias: abuso emocional (questões 3, 8, 14, 18, 25), abuso físico (questões 9, 11, 12, 15, 17), abuso sexual (questões 20, 21, 23, 24, 27), negligência emocional, 7, 13, 19, 28) e negligência física (questões 1, 2, 4, 6, 26). As questões 10, 16 e 22 estão relacionadas à experiência de minimização/negação de abuso. As respostas variam de 1 (nunca) a 5 (sempre), com intervalo possível de 5 a 25 em cada subtipo de trauma. O estresse precoce é classificado como nenhum a mínimo, baixo a moderado, moderado a alto ou alto a extremo, em cada um dos subtipos (BERNSTEIN et al., 1994).
Para avaliar os sintomas de estresse foi utilizado o Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp (ISSL), desenvolvido e validado por Lipp e Guevara (1994), padronizado por Lipp (2000) para a Língua Portuguesa.
Baseado nos princípios da teoria do estresse de Selye (1950), destina-se ao uso de jovens e adultos e avalia: a) se o indivíduo possui sintomas de estresse; b) em qual fase do estresse ele se encontra; c) qual o tipo de sintomas predominantes (físicos ou psicológicos). É composto por 53 questões fechadas, divididas em 3 quadros, referentes às quatro fases do estresse: alerta (quadro 1, referente às últimas 24 horas, com 15 questões); resistência e quase-exaustão (quadro 2, referente à última semana, com 15 questões); exaustão (quadro 3, referente ao último mês, com 23 questões). As respostas são do tipo sim/não, sendo que a resposta afirmativa vale 1 e cada resposta negativa vale 0. A pontuação é feita através da soma das respostas obtidas em cada um dos quadros. Os quadros 1 e 2 têm intervalo possível de 0 a 15 pontos e o quadro 3 tem intervalo possível de 0 a 23 pontos. O sujeito é avaliado com sintomas de estresse se tiver pelo menos uma das seguintes pontuações: 7 ou mais no quadro 1; 4 ou mais no quadro 2; 9 ou mais no quadro 3. Para os sujeitos que têm estresse, a fase na qual ele se encontra e o tipo de sintomatologia predominante são identificados por meio de uma porcentagem pré-definida por Lipp (2000).
Para as análises estatísticas foi utilizado o programa computacional Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0.
Primeiramente, foram calculados o coeficiente alfa de Cronbach para avaliar a confiabilidade e consistência interna dos instrumentos FQ-VPB, QUESI e ISSL. Todos os instrumentos tiveram coeficientes Alfa de Cronbach acima de 0,70, caracterizando-os como confiáveis para aplicação em cuidadores de pessoas com transtorno mental.
Em seguida, foram realizadas análises descritivas para todas as variáveis do estudo - porcentagens ou médias e desvios-padrão, dependendo da natureza das variáveis. As variáveis categóricas (sociodemográficas, EE nos componentes CC e SEE, estresse precoce e sintomas de estresse) foram analisadas por frequência simples.
Para análise de associação entre variáveis categóricas dependentes (EE nos componentes CC e SEE) e independentes (estresse precoce e sintomas de estresse), utilizou-se o teste do exato de Fisher. A suposição de normalidade foi avaliada por meio do teste de Shapiro-Wilk.
Para investigar quais variáveis dependentes eram preditoras dos componentes CC e/ou SEE da EE, foram realizados testes de regressão logística em etapas, no qual o nível de EE (alta ou baixa) foi tratado como variável de desfecho.
Para todas as análises, o corte de significância estatística foi alfa ≤ 0,05.
O estudo seguiu as determinações da Resolução nº 466, que regulamenta as pesquisas com seres humanos no Brasil (BRASIL, 2012). Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (protocolo nº 052/2015).
Entre os 112 cuidadores participantes, todos foram familiares das pessoas admitidas para internação, com predomínio do sexo feminino (82%), mães (54%), casadas (59%), com ensino fundamental incompleto (57%), e seguindo uma religião (84%). A idade média foi de de 49 anos (DP = 12,8).
No componente CC, 83% foram dos cuidadores foram avaliados com alta EE. O escore médio de 29,25 pontos (desvio padrão = 7 pontos), sendo 13 o menor e 40 o maior escore encontrado.
No componente SEE, 87,5% dos cuidadores foram avaliados com alta EE. O escore médio foi 33,38 pontos (desvio-padrão de 5 pontos), sendo 20 o menor e 40 o maior escore encontrado.
Nas análises bivariadas os resultados mostraram que houve associação estatisticamente significativa (p≤0,05) entre o componente SEE da EE e o estresse precoce, bem como entre o componente SEE da EE e a fase dos sintomas de estresse (Tabela 1).
Tabela 1 Associação entre EE, estresse precoce e sintomas de estresse entre os cuidadores.
Variável | Componente CC da EE | valor de pa | Componente SEE da EE | valor de pa | ||
---|---|---|---|---|---|---|
alta n (%) |
baixa n (%) |
alta n (%) |
baixa n (%) |
|||
Estresse Precoce | 0,99 | 0,00* | ||||
com estresse precoce | 48 (43,6) | 10 (9,1) | 56 (50,9) | 2 (1,8) | ||
sem estresse precoce | 43 (39,1) | 9 (8,2) | 41 (37,3) | 11 (10,0) | ||
Sintomas de Estresse | 0,88 | 0,07 | ||||
com sintomas | 74 (66,7) | 15 (13,5) | 81 (73,0) | 8 (7,2) | ||
sem sintomas | 18 (16,2) | 4 (3,6) | 17 (15,3) | 5 (4,5) | ||
Fase dos sintomas de estresse | 0,87 | 0,05* | ||||
nenhum/alerta | 19 (17,1) | 4 (3,6) | 17 (15,3) | 6 (5,4) | ||
resistência | 49 (44,1) | 10 (9,0) | 51 (46,0) | 8 (7,2) | ||
quase exaustão | 14 (12,6) | 4 (3,6) | 18 (16,2) | 0 (0,0) | ||
exaustão | 9 (8,1) | 1 (0,9) | 10 (9,0) | 0 (0,0) | ||
Sintomatologia dos sintomas de estresse | 0,14 | 0,11 | ||||
nenhuma | 19 (17,7) | 4 (3,7) | 17 (15,9) | 6 (5,6) | ||
física | 6 (5,6) | 4 (3,7) | 9 (8,4) | 1 (0,9) | ||
psicológica | 63 (58,8) | 11 (10,3) | 67 (62,6) | 7 (6,5) |
EE Emoção expressa, CC comentários críticos, SEE superenvolvimento emocional.
Valores em negrito indicam que o nível de significância do ponto de corte foi alfa≤0,05.
*teste exato de Fisher.
Nas análises de regressão logística, realizadas para verificar quais variáveis investigadas neste estudo poderiam ser preditoras de EE, os resultados mostraram que as variáveis ensino fundamental (completo ou incompleto) e idade foram preditoras de alta EE no componente CC, enquanto a variável estresse precoce foi preditora de alta EE no componente SEE (Tabela 2).
Tabela 2 Regressão logística entre a EE (componentes CC e SEE), estresse precoce e sintomas de estresse.
Parâmetros | Beta | EP | z | Valor de pa | OR | IC 95% para OR |
---|---|---|---|---|---|---|
Alta EE no componente CC | -1,3819 | 1,2487 | 1,1070 | 0,2684 | - | - |
Ensino fundamental incompleto e completo | -1,7061 | 0,8520 | 2,0020 | 0,0453* | 0,1816 | 0,0291-0,8604 |
Idade | 0,1099 | 0,0349 | 3,1450 | 0,0017* | 1,1162 | 1,0484-1,2049 |
Alta EE no componente SEE | 0,4645 | 0,4418 | 1,0510 | 0,2931 | - | - |
Com estresse precoce | 1,9060 | 0,8139 | 2,3420 | 0,0192* | 6,7261 | 1,6164-46,1180 |
EE emoção expressa, CC comentários críticos, SEE superenvolvimento emocional, OR razão de odds/razão de chances, IC intervalo de confiança.
Valores em negrito indicam que o nível de significância do ponto de corte foi alfa≤0,05.
*regressão logística.
O ensino fundamental (completo ou incompleto) foi identificado fator de proteção para alta EE no componente CC, visto que os cuidadores com essa escolaridade tiveram 0,18 vezes mais chance de ter alta EE no componente CC (OR: 0,1816; 95% confiança; IC 0,0291-0,8604).
A idade foi fator de risco para alta EE no componente CC, visto que para cada ano a mais na idade do cuidador houve 1,11 vezes mais chance de alta EE no componente CC (OR: 1,1162; 99% confiança; IC 1,0484-1,2049).
A presença de estresse precoce foi fator de risco para alta EE no domínio SEE. Os cuidadores com estresse precoce tiveram 6,72 vezes mais chances de ter alto nível de EE no domínio SEE (OR: 6,7261; 95% confiança; IC 1,6164-46,1180).
Este estudo foi o primeiro a investigar como a EE está associada com as variáveis sociodemográficas, o estresse precoce e os sintomas de estresse em cuidadores de pessoas com transtornos mentais no momento da internação psiquiátrica. Os resultados indicaram que o componente SEE da EE teve associação significativa com o estresse precoce e com a fase dos sintomas de estresse. Já o estresse precoce, a idade e a escolaridade dos cuidadores foram variáveis preditoras de alta EE. Estes resultados confirmam a relevância dessas variáveis para o planejamento de ações de assistência no contexto da saúde mental.
O perfil dos cuidadores, predominantemente mulheres, mães, com baixa escolaridade e casadas, foi similar ao encontrado em outros estudos realizados com cuidadores de pessoas com transtornos mentais (ARAUJO; KEBBE, 2014; LIMA; BANDEIRA; SANTOS-OLIVEIRA, 2016; ELOIA et al., 2018), o que confirma que as mulheres ainda são as principais responsáveis pela oferta de cuidado aos familiares doentes, tendo que conciliar essa tarefa com outras atividades cotidianas.
A alta EE nos componentes CC (83%) e SEE (87,5%), confirmam que os dias que antecedem a internação são marcados pela diminuição da qualidade nas relações familiares. Não foram encontrados estudos brasileiros que investigassem a EE de cuidadores em momentos de crise psiquiátrica do paciente. Contudo, Zanetti et al. (2018b) em estudo recente realizado no Brasil com 89 familiares de pessoas com esquizofrenia, encontrou alta EE de 49% e de 52% nos componentes CC e SEE, respectivamente.
Certamente a alta EE encontrada neste estudo teve influência do momento no qual a coleta de dados ocorreu. As questões respondidas pelos cuidadores para avaliação da EE foram referentes aos 30 dias antecedentes à internação, ou seja, período no qual a pessoa com transtorno mental já apresentava – ou começou a apresentar – sintomas agudos do transtorno mental que exigiram internação, certamente demandando mais cuidados. Contudo, uma vez que a alta EE é marcada por alto criticismo e alto SEE, diminuindo consideravelmente a qualidade da relação entre cuidador e pessoa que recebe os cuidados, sua avaliação é importante para subsidiar o planejamento e a implementação de intervenções efetivas em momentos de crise, que muitas vezes se tornam frequentes entre pessoas com transtornos mentais.
Squarisi, Ferreira e Martins-Monteverde (2018), em revisão de literatura sobre a contribuição da terapia ocupacional junto à famílias de pessoas com transtornos mentais, identificaram que essas famílias ainda possuem poucas informações sobre os transtornos mentais, o que dificulta a oferta cotidiana de cuidados. Kebbe et al. (2014) apontam que cuidadores de pessoas com transtornos mentais se sentem sobrecarregados por não receberem ajuda de outros familiares para dividir as funções de cuidado, além de se sentirem inseguros e despreparados para exercer a tarefa de cuidar. A falta de informação e a sensação de sobrecarga, de insegurança e de despreparo apontadas nesses estudos, podem contribuir para que os cuidadores se tornem mais críticos e superenvolvidos com seus familiares, especialmente nos períodos de manifestação sintomatológica.
A associação significativa encontrada entre o componente SEE da EE e a fase do estresse, com o predomínio da fase de resistência, mostra que os cuidadores estavam mobilizando energias físicas e psíquicas para enfrentar as situações estressoras, e que isso está relacionado às atitudes marcadas por preocupação exagerada com a pessoa com transtorno mental, auto sacrifício excessivo, desesperança e superproteção. Outros estudos encontraram associações significativas entre EE e estresse (GOMEZ-DE-REGIL; KWAPIL; BARRANTES-VIDAL, 2014; DOMÍNGUEZ-MARTÍNEZ et al., 2017). O predomínio da fase de resistência do estresse entre os cuidadores corrobora com os achados de Santos e Cardoso (2015) e de Souza et al. (2015), que encontraram predomínio da fase de resistência em 74,1% e em 44,4% de cuidadores, respectivamente.
A fase de resistência, se não for superada, pode levar o cuidador à fase de exaustão, na qual seus recursos não são suficientes para lidar com a fonte de estresse, as reservas adaptativas se esgotam devido a exposição repetida ou prolongada ao estressor e doenças graves podem se desenvolver (LIPP, 2000). Isso mostra a necessidade de intervenções para auxiliar o cuidador a lidar com as situações estressoras.
A única variável identificada como fator de proteção para alta EE no componente CC foi a baixa escolaridade dos cuidadores. É possível que cuidadores que possuem menor escolaridade exijam menos da pessoa com transtorno mental no sentido de conquista de independência e de autonomia, diminuindo, assim, seu criticismo. Não foram encontrados estudos com resultado semelhante na literatura nacional ou internacional, o que indica a necessidade de estudos adicionais. Contudo, em outro estudo brasileiro sobre EE, Martins, Lemos e Bebbington (1992) trazem a hipótese de que no Brasil, por ser um país em desenvolvimento, as expectativas sobre os indivíduos podem ser menores do que em países desenvolvidos, o que faz com que as dificuldades decorrentes dos transtornos mentais sejam melhor toleradas por parte da família.
A idade do cuidador, por sua vez, constituiu fator de risco para alta EE no componente CC. É possível que isso seja devido à sobrecarga que a oferta de cuidados acarreta. Silva e Fedosse (2018), em estudo realizado com 75 cuidadores de pessoas com deficiência intelectual, encontraram que 23% deles eram idosos. Essas autoras salientam o fato de que pessoas idosas exercerem a função de cuidadores é algo alarmante, pois essa é uma fase na qual deveriam estar recebendo cuidados, e não ofertando.
Os resultados mostraram ainda que cuidadores que vivenciaram estresse precoce tiveram mais chances de apresentar alta EE no componente SEE. Isso mostra que entre os cuidadores, vivenciar situações adversas, como negligência e/ou abandono durante a infância, período crucial de desenvolvimento físico, psicológico e emocional, torna-os exageradamente superprotetores e preocupados com a pessoa da qual cuidam, afetando negativamente o relacionamento entre ambos.
Pesquisas internacionais alertam que o estresse precoce, devido à sensibilização persistente dos circuitos do sistema nervoso central envolvidos na regulação da tensão e da emoção, aumenta a vulnerabilidade ao estresse no futuro e predispõe os sujeitos a desenvolverem doenças físicas e psiquiátricas (KRUGERS et al., 2017; CATALAN et al., 2017). Ao encontro disso, o estudo de Martins-Monteverde et al. (2019), realizado no interior do Estado de São Paulo – Brasil com pacientes com transtornos mentais acompanhados em um hospital-dia, encontrou associação significativa entre estresse precoce e o desencadeamento de psicopatologias no adulto.
Os resultados encontrados confirmam a importância da investigação do estresse precoce entre cuidadores informais em saúde mental. Cabe enfatizar que não foram encontrados na literatura científica nacional e internacional estudos que avaliassem o estresse precoce em cuidadores.
Neste estudo ficou evidente também que a coleta de dados referente ao estresse precoce constituiu um momento delicado, no qual os cuidadores muitas vezes se emocionaram devido à delicadeza das questões realizadas. É essencial que os pesquisadores investiguem este tema de maneira atenciosa a acolhedora, respeitando o sofrimento que pode ser desencadeado.
Os resultados aqui apresentados mostram que o fato de estar cuidando de um familiar em crise psiquiátrica desestabiliza o cotidiano desses cuidadores, uma vez que gera alto criticismo e alto superenvolvimento emocional na relação entre cuidador e pessoa cuidada.
Ferigato, Campos e Ballarin (2007) apontam que historicamente a crise em saúde mental foi caracterizada pela agudização da sintomatologia psiquiátrica, tais como delírios, alucinações visuais e auditivas, agressividade e agitação psicomotora, e compreendida como uma situação ruim que deve ser bloqueada e controlada com a maior rapidez possível. Essas autoras propõem que o conceito de crise seja ampliado, de modo a ser compreendido como algo inerente à vida e que pode ser explorado, assumido e acolhido como uma maneira a enriquecer novas formas de vida, principalmente devido ao fato de que, ainda que esteja em crise, o sujeito é capaz de manifestar afeto, criatividade, expressão e desejos.
Assim, conhecer como os cuidadores vivenciam o período de crise de seus familiares com transtornos mentais, podem auxiliar profissionais de saúde implicados na assistência à saúde mental a desenvolver intervenções mais eficazes junto à essa população, buscando principalmente instrumentalizar os cuidadores para lidar com esses períodos de crise, em alguns casos evitando a internação.
Acerca da assistência focada nos cuidadores de pessoas com transtornos mentais, grupos de psicoeducação e de apoio parecem ser as intervenções eficazes. Estudos internacionais sobre a realização de grupos de psicoeducação com familiares cuidadores de pessoas diagnosticadas com primeiro episódio psicótico (ÖKSÜZ et al., 2017) e com familiares cuidadores de pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar (SAZVAR, 2017) mostraram que essa intervenção diminuiu os níveis de EE. Outro estudo, após implementar um programa de intervenção psicoeducativo com familiares cuidadores de pessoas com esquizofrenia, verificou a sua eficácia na redução tanto da sobrecarga quanto da emoção expressa no componente CC, além de aumento das atitudes positivas no grupo experimental, já no grupo controle não se observaram diferenças no pré e pós teste (PINHO; PEREIRA, 2015).
Além desses estudos, Yesufu-Udechuku et al. (2015), em revisão sistemática de 24 estudos e metanálise de 20 estudos realizados em países diversos, analisaram a eficácia de intervenções psicoeducativas e de apoio fornecidas a familiares cuidadores de pessoas com transtorno mental, mostrando que ambas as modalidades de intervenção diminuem o sofrimento psicológico dos cuidadores e melhoram a experiência do cuidar. A participação em um programa de educação e apoio, desenvolvido para ajudar os membros da família a melhorar as capacidades de enfrentamento, a compreender melhor as experiências dos parentes e as suas próprias reações e conflitos emocionais aumentou significativamente a avaliação positiva na experiência do cuidar desses familiares em comparação com o grupo controle (TOOHEY et al., 2016).
Squarisi, Ferreira e Martins-Monteverde (2018) ressaltam a necessidade de os profissionais desenvolverem estratégias de inserção da família no contexto da saúde mental, valorizando a participação da família e intervindo em suas necessidades por meio da oferta de espaços de escuta e de acolhimento. Martins e Guanaes-Lorenzi (2017), em pesquisa com 10 familiares cuidadores em um hospital-dia brasileiro, identificaram que a proximidade do serviço faz com que os familiares se sintam amparados e cuidados pelos profissionais e aprendam sobre o transtorno mental, tanto com os profissionais quanto com outras famílias. Outro estudo brasileiro desenvolvido com familiares de pessoas com esquizofrenia mostrou que os cuidadores valorizaram uma intervenção grupal como um espaço possível de entrar em contato com experiências de outras pessoas em situação similar, o que lhes possibilitou esclarecer dúvidas acerca da doença e dos cuidados oferecidos, e refletir sobre a importância de cuidarem de si mesmos (ARAUJO; KEBBE, 2014).
Assim, o planejamento de intervenções tanto psicoeducativas quanto de apoio direcionadas aos cuidadores e realizadas por equipe interdisciplinar, são fundamentais no contexto de mudança paradigmática da assistência a pessoas com transtornos mentais. No paradigma psicossocial, a interdisciplinaridade é um dos aspectos essenciais do trabalho em equipe, e segundo Cézar e Melo (2018) se constitui como um nível avançado de coordenação e cooperação em que todo conhecimento é valorizado, de modo que as relações profissionais se estabelecem de maneira horizontal e há troca recíproca entre diferentes disciplinas, aspectos que favorecem a criação de novos campos de saber essenciais no campo da saúde mental.
Já acerca de intervenções específicas da terapia ocupacional, Machado, Dahdah e Kebbe (2018) afirmam que as percepções do cuidador sobre seu papel junto à pessoa sob seus cuidados, podem interferir no desempenho de ocupações significativas e nos projetos de vida. Motizuki e Mariotti (2014), em estudo sobre o desempenho ocupacional em atividades cotidianas de pessoas com transtornos mentais, identificaram que o adoecimento diminui a realização de atividades cotidianas importantes e prazerosas, tais como atividades de trabalho, de estudo e de lazer. Essas autoras destacam as contribuições de terapeutas ocupacionais na assistência focada nessas questões, uma vez que esses profissionais realizam uma parceria com o sujeito e sua família com objetivo de auxiliar que eles se tornem agentes ativos ao lidarem com dificuldades cotidianas.
A emoção é um componente intrínseco à natureza humana que se expressa naturalmente. Contudo, a expressão de emoções pode impactar de maneira negativa nas relações interpessoais.
No contexto da saúde mental a qualidade dos relacionamentos interpessoais e o ambiente familiar tem extrema relevância. Ao investigar o perfil sociodemográfico, a emoção expressa, o estresse precoce e os sintomas de estresse, este estudo considerou importantes aspectos que podem influenciar o relacionamento interpessoal entre cuidador e pessoa com transtorno mental.
Os resultados denotam a necessidade de disponibilizar aos cuidadores orientações e intervenções que os auxiliem a lidar de modo menos prejudicial com os episódios de crise da pessoa com transtorno mental sob seus cuidados. Intervenções psicoeducativas e de apoio podem ser um importante instrumento nesse processo