versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.2 São Paulo 2017 Epub 27-Mar-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016080
A avaliação da velocidade de leitura é um procedimento muito frequente na prática clínica do fonoaudiólogo, pois contribui para verificar o desempenho das crianças em tal habilidade e monitorar programas educacionais e terapêuticos. Além disso, os estudos a respeito da aquisição e desenvolvimento típico das habilidades de decodificação promoveram avanços consistentes no conhecimento sobre o processamento da leitura(1-4).
Entender como a leitura proficiente se consolida e seus parâmetros de fluência vêm se tornando, no decorrer dos anos, um importante campo de investigação para pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Isso se deve à necessidade de melhor entender tais processos para que se possa intervir com mais eficácia nos diferentes transtornos de aprendizagem. E, além disso, o entendimento desse fenômeno é importante para o desenvolvimento de programas educacionais e políticas públicas que visem ao aperfeiçoamento dos métodos de alfabetização das crianças(5).
Nos estudos internacionais sobre leitura, é comum a descrição do uso de testes padronizados para avaliação. Estes testes são compostos por listas de palavras e textos que devem ser lidas pelas crianças num intervalo pré-determinado de tempo(6-10). Para o Português Brasileiro, ainda não há testes padronizados para tal avaliação e, desse modo, a velocidade de leitura vem sendo calculada de forma independente.
Para a análise da velocidade de leitura, a medida mais aplicada tanto em estudos nacionais como internacionais é a de palavras lidas por minuto (PLM)(2,3,7-9,11-14). Tal medida é de extrema importância, porém um aspecto a se destacar é que ela desconsidera o efeito de extensão e da estrutura silábica das palavras. Dessa maneira, ao se comparar o desempenho de crianças de diferentes faixas de escolaridade em textos adequados para o seu nível escolar, despreza-se o fato de que ocorre o aumento da complexidade dos textos escolares conforme o avanço das séries, podendo se chegar a resultados inconclusivos.
Aplicar uma medida que independa do tipo de texto e de sua complexidade pode facilitar a comparação da velocidade de leitura de crianças que estão em diferentes graus de escolaridade, pois, dessa maneira, pode-se neutralizar o efeito de número, extensão e estrutura silábica das palavras e, consequentemente, será alcançada maior precisão na comparação do desempenho de crianças de diferentes anos escolares(15).
Em estudos que avaliam a velocidade de fala(16-18), é comum o uso da medida de sílabas por minuto (SLM), pois esta neutraliza o efeito de extensão das palavras. Sendo assim, a utilização da medida de SLM na avaliação da velocidade de leitura pode proporcionar resultados mais fidedignos ao isolar fatores linguístico-textuais.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi verificar se há diferenças na avaliação da velocidade de leitura de crianças do 3º e 4º anos do ensino fundamental, utilizando-se as medidas de palavras lidas por minuto e sílabas lidas por minuto.
Estudo aprovado pelo Comitê de Ética da Instituição sob nº 149/11. Esta pesquisa contou com 29 crianças do terceiro ano (GP1) e 28 do quarto ano do ensino fundamental (GP2), totalizando 57 indivíduos. Os pais/responsáveis pelas crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido autorizando a participação de seus filhos no estudo.
Para participação nesta pesquisa, as crianças atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ausência de queixas relacionadas ou de indicadores de alterações da audição e/ou visão, ausência de indicadores de distúrbios neurológicos, comportamentais ou cognitivos, bem como de alterações de linguagem oral; ausência de dificuldades ou transtornos do aprendizado da leitura e ausência de retenção no histórico escolar; desempenho dentro do esperado para idade na prova de Fonologia do ABFW(19); desempenho classificado como médio ou superior para a escolaridade na pontuação total do Teste de Desempenho Escolar (TDE)(20).
Todos os pais/responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para autorização da participação de seus filhos no estudo. Além disso, responderam a um questionário referente ao desenvolvimento de linguagem oral e escrita de seus filhos(21). Os professores dos indivíduos deste estudo também preencheram um questionário relacionado ao desempenho acadêmico e características comportamentais dessas crianças(21). Apenas prosseguiram na pesquisa as crianças cujos pais e/ou professores não registraram nenhum tipo de queixa. Os demais casos, foram orientados e encaminhados para serviços de Fonoaudiologia mais próximo de suas residências.
Depois disso, as crianças selecionadas passaram por avaliação fonoaudiológica quanto aos aspectos fonológicos da linguagem oral e avaliação da linguagem escrita. Para tanto, foi aplicada a prova de imitação da parte de fonologia do teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática do ABFW(19) para investigação quanto ao sistema fonológico dos indivíduos. Para a avaliação da linguagem escrita, foi utilizado o TDE(20), de acordo com as descrições do manual para sua aplicação e interpretação.
Para caracterizar a velocidade de leitura, foi selecionado um texto para o GP1 e outro para o GP2, conforme o ano escolar dos indivíduos, sendo que ambos os textos são pertencentes ao Teste de Avaliação da Compreensão Leitora de Textos Expositivos(22).
Salienta-se que diferentes autores já apontaram que os textos utilizados para a obtenção dos parâmetros de fluência de leitura devem estar de acordo com o grau de escolaridade do indivíduo, seu nível sociocultural e suas práticas de letramento(1,9,23). Em função de tais fatores, optou-se pela utilização de textos diferentes, respeitando-se os perfis leitores de estudantes de diferentes níveis de escolaridade.
As crianças foram solicitadas a ler o texto de acordo com as instruções dadas pelo avaliador, as quais permeavam os seguintes aspectos: manter o texto em cima da mesa durante toda a leitura; postura corporal adequada durante a avaliação; iniciar a leitura e ir até o final do texto evitando interrupções, pois caso contrário ela seria reiniciada. As leituras foram filmadas pelo avaliador e transcritas para análise mais acurada.
A velocidade de leitura foi verificada analisando-se a gravação do vídeo realizada durante a coleta de dados. Foi contabilizado exclusivamente o tempo de leitura em segundos, sendo desprezadas pausas decorrentes de tosse, bocejo ou algum outro evento, por meio do software Real Player® utilizando a opção “editar vídeo”. A velocidade de leitura foi calculada por meio de duas medidas: PLM e SLM, conforme descrito no Quadro 1.
Quadro 1 Medidas utilizadas para cálculo da velocidade de leitura
Medida | Cálculo |
---|---|
Palavras lidas por minuto (PLM) | Número de palavras do texto x 60/ tempo total de leitura em segundos |
Sílabas lidas por minuto (SLM) | Número de sílabas do texto x 60/ tempo total de leitura em segundos |
Nesta análise, foi computado o tempo total da leitura sendo desprezadas pausas decorrentes de tosses, pigarros, ou de congestão nasal ou resfriados. Dessa forma, foi contabilizado apenas o tempo total de leitura.
Para fundamentar a análise das duas medidas de velocidade de leitura, computou-se o número de monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos em cada um dos diferentes textos. Observou-se maior número de palavras de todas as extensões no texto utilizado para avaliação dos escolares do GP2 (Figura 1).
Além disso, verificou-se também maior quantidade de trissílabos e polissílabos no texto do GP2, bem como maior número de sílabas de todos os tipos, com maior diferença naquelas de maior complexidade (Figura 2).
Os dados foram submetidos à análise estatística. Para comparar as distribuições na velocidade de leitura em ambos os grupos, foi aplicado o teste de Mann-Whitney com nível de significância de 0,05. É importante ressaltar que foi utilizado um teste não paramétrico porque os gráficos de probabilidade normal das variáveis estudadas nos dois grupos apontaram desvios da distribuição normal.
Ademais, foi construída uma curva ROC para determinar um valor de corte de acertos para a medida de SLM, de acordo com os valores de sensibilidade e especificidade.
Os dados apontaram que não houve diferença significativa entre as distribuições das PLM nos dois grupos (p=0,930) (Tabela 1). Portanto, tal medida não discrimina as crianças destes dois grupos. Entretanto, foi observada diferença significativa em SLP (p=0,036), na qual as crianças do GP2 tendem a apresentar maiores valores (Figura 3).
Tabela 1 Estatísticas descritivas para a Velocidade de leitura em GP1 e GP2
Variável | Grupo | N | Média | Desvio padrão | Mínimo | Mediana | Máximo | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Palavras lidas por minuto | GP1 | 29 | 60,1 | 27,4 | 17,3 | 55,2 | 134 | |
GP2 | 28 | 60,2 | 24,4 | 20,1 | 60 | 108 | ||
Sílabas lidas por minuto |
GP1 | 29 | 115,2 | 51,0 | 48,8 | 100,2 | 272,3 | |
GP2 | 28 | 147,2 | 59,6 | 49,2 | 146,4 | 264 |
Na Figura 4, pode ser observado o comportamento conjunto em SLM e PLM nos dois grupos. Nota-se que, em ambos os grupos, o desempenho dos escolares está mais separado no eixo de SLM do que no de PLM.
Para determinar um valor de corte para SLM que separe as crianças dos dois grupos com maior sensibilidade e especificidade, foi construída uma curva ROC (Figura 5). As coordenadas da curva são encontradas na Tabela 2.
Tabela 2 Coordenadas da curva ROC
Sensibilidade | 1 - Especificidade | Sensibilidade | 1 - Especificidade |
---|---|---|---|
1,00 | 1,00 | 0,57 | 0,38 |
1,00 | 0,97 | 0,54 | 0,38 |
0,96 | 0,97 | 0,54 | 0,35 |
0,96 | 0,93 | 0,54 | 0,31 |
0,96 | 0,90 | 0,54 | 0,28 |
0,93 | 0,90 | 0,54 | 0,24 |
0,93 | 0,86 | 0,54 | 0,21 |
0,89 | 0,86 | 0,54 | 0,17 |
0,89 | 0,83 | 0,50 | 0,17 |
0,89 | 0,79 | 0,46 | 0,17 |
0,82 | 0,79 | 0,46 | 0,14 |
0,82 | 0,76 | 0,43 | 0,14 |
0,82 | 0,69 | 0,43 | 0,10 |
0,82 | 0,66 | 0,39 | 0,10 |
0,79 | 0,66 | 0,39 | 0,07 |
0,79 | 0,62 | 0,36 | 0,07 |
0,79 | 0,59 | 0,32 | 0,07 |
0,75 | 0,59 | 0,29 | 0,07 |
0,75 | 0,55 | 0,25 | 0,07 |
0,71 | 0,55 | 0,14 | 0,07 |
0,71 | 0,48 | 0,07 | 0,07 |
0,71 | 0,45 | 0,04 | 0,07 |
0,64 | 0,45 | 0,04 | 0,03 |
0,64 | 0,41 | 0,00 | 0,03 |
0,61 | 0,41 | 0,00 | 0,00 |
0,61 | 0,38 |
O valor da sensibilidade foi 0,54 e o da especificidade foi 0,83, sendo que, neste estudo, o termo sensibilidade significa a probabilidade de classificar corretamente uma criança do GP2, e a especificidade significa a probabilidade de classificar corretamente uma criança do GP1. Salienta-se que os valores de sensibilidade e especificidade sugerem que a medida SPM é mais específica do que sensível, ou seja, indica melhor quem não pertence ao GP2, neste caso, os verdadeiros negativos. Com o valor de corte de 136 SLM, foi observado que no GP1 apenas cinco crianças estiveram acima deste valor, ao passo que no GP2 16 crianças obtiveram valores iguais ou maiores que 136 SLM e 12 apresentaram SLM abaixo de 136. Sendo assim, o valor de corte separa melhor as crianças pertencentes a GP1.
O presente estudo mostra evidências de que a medida de SLM foi mais efetiva para aferir a diferença de velocidade de leitura em crianças de diferentes níveis de escolaridade. Além disso, tal medida mostrou um melhor delineamento da velocidade de leitura e pode ser usada para comparar a leitura de textos diferentes. Por outro lado, a medida de palavras por minuto (PPM) parece ser mais adequada apenas quando as crianças leem o mesmo texto, pois os diferentes grupos demonstraram desempenhos semelhantes quanto às médias, sugerindo que tal medida fornece poucas informações quando se comparam crianças de anos escolares diferentes, indicando que, ao ler textos adequados para sua idade e escolaridade, as crianças apresentam menos dificuldade para realizar a decodificação.
Tal resultado pode ter ocorrido em função de alguns fatores, como a extensão das palavras em cada texto, número de palavras e estrutura silábica das palavras. Com a evolução da escolaridade há, gradativamente, aumento do número, extensão e complexidade das palavras utilizadas nos textos escolares, conforme observado neste estudo. Esse fator tem importância determinante no cálculo de PLM, uma vez que se demora mais tempo para pronunciar uma palavra polissílaba do que uma monossílaba, o que pode levar a interpretações errôneas. Sendo assim, há evidências de que o uso da medida de PLM pode ser mais adequado quando se avalia a velocidade de leitura por meio de um único texto(15).
Estudos para o Português Brasileiro(2,12,13) que verificaram parâmetros de fluência de leitura, medindo a velocidade por meio de PLM, utilizaram textos que variavam conforme a escolaridade, porém sem informações a respeito das características dos textos utilizados. Sendo assim, a ausência de informações linguístico-textuais, como o número e extensão de palavras e sua estrutura silábica, implica maior dificuldade para a utilização de tal medida como um balizador para avaliação e classificação da velocidade de leitura dos escolares brasileiros.
É interessante destacar que estudos da fluência em linguagem oral, empregam a medida de SLM há muitos anos. Um estudo(24) aplicou tal medida no Português Brasileiro com o intuito de verificar a fluência da fala e propôs uma padronização que passou a ser utilizada em diversos outros estudos(16,25-27). Posteriormente, tal medida também foi pesquisada para complementar o diagnóstico de crianças com transtorno fonológico(18) bem como para verificar padrões de velocidade de fala nas diferentes alterações fonoaudiológicas(17,26,27). Os resultados dos estudos citados demonstraram que a medida de SLM foi efetiva para identificar diferenças e características nas diferentes populações.
Considerando a efetividade de tal medida na linguagem oral, vislumbrou-se que para medir a fluência de leitura, o cálculo das SLM poderia também ser efetivo ao se utilizar diferentes textos na caraterização da leitura de crianças de diferentes graus de escolaridade. Nesse sentido, a presente pesquisa mostrou evidências de que a medida de SLM permitiu melhor diferenciação dos grupos e propiciou delineamento mais preciso do perfil leitor das crianças. Isso ficou evidente nos resultados estatísticos que indicaram diferenças mais robustas(15). É importante destacar que, para cada texto apresentado aos escolares, foi analisado o número de palavras e sílabas, bem como contabilizados os tipos de estruturas silábicas apontando as diferenças importantes, conforme descrito detalhadamente no método.
Cabe salientar que a leitura em voz alta pode ocorrer de duas maneiras: por meio de um processo visual direto (Rota Lexical) ou através de um processo envolvendo mediação fonológica (Rota Fonológica), caracterizando modelo de leitura de dupla rota amplamente difundido no Brasil e internacionalmente e que explica o processamento cognitivo da leitura(8,9,28-30). A leitura pela rota fonológica depende da utilização do conhecimento das regras de conversão entre grafema e fonema para que a construção da pronúncia da palavra possa ser efetuada. Por sua vez, a leitura pela rota lexical depende do reconhecimento de uma palavra previamente adquirida e memorizada no sistema de reconhecimento visual de palavras e na recuperação do significado e da pronúncia por meio de endereçamento direto ao léxico, sendo esta pronúncia obtida como um todo(8,9,28-30).
Dessa maneira, é possível afirmar que, independentemente da rota de leitura utilizada pelo leitor durante a avaliação da leitura oral, o material de análise da velocidade de leitura é a articulação das palavras em determinado período de tempo, ou seja, independentemente do tipo de rota que se utilize, o efeito de extensão da palavra poderá comprometer a análise da velocidade de leitura(8,9,28-30). Assim, este estudo aponta uma medida que neutraliza o efeito de extensão da palavra e complexidade da sílaba, o que permite a melhor caracterização da leitura de crianças de diferentes faixas de escolaridade, diferentes perfis leitores, independentemente do tipo de rota de leitura utilizada pela criança, além de ser possível o uso de tal medida como parâmetro de comparação de crianças em diferentes faixas da escolaridade.
Vários estudos internacionais apontaram evidências da importância de se verificar a fluência de leitura em textos que estejam de acordo com a escolaridade da criança(6-9,23). Esses autores também ressaltaram a necessidade de uma medida efetiva para a comparação do desempenho das crianças com diferente escolaridade.
Dessa forma, é possível observar que a presente pesquisa traz contribuições ao estudo da fluência de leitura, uma vez que indica uma medida mais criteriosa para a caracterização da velocidade de leitura. Além disso, evidenciou que a utilização de textos que estejam de acordo com o nível escolar das crianças aponta dados mais fidedignos do perfil leitor dos escolares.
A presente pesquisa mostrou evidências de que há diferenças entre escolares do 3º e 4º anos quando a medida em sílabas lidas por minuto foi aplicada fornecendo, portanto, uma caracterização mais precisa do desempenho das crianças.
Além disso, os dados também indicam que a medida de SLM pode ser utilizada para comparar a velocidade de leitura quando se usam diferentes textos, uma vez que considera os aspectos linguístico-textuais. Adicionalmente, pode também comparar o desempenho de escolares que frequentam diferentes anos escolares e auxiliar no delineamento do padrão de aquisição e desenvolvimento da leitura.