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A relevância do vocabulário receptivo na compreensão leitora

A relevância do vocabulário receptivo na compreensão leitora

Autores:

Ana Flávia de Oliveira Nalom,
Aparecido José Couto Soares,
Maria Silvia Cárnio

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.27 no.4 São Paulo jul./ago. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152015016

INTRODUÇÃO

A compreensão leitora (CL) diz respeito à capacidade de entender o conteúdo expresso no material lido e agregar informações advindas do conhecimento de mundo do leitor. Ela é considerada um processo multidimensional complexo que envolve a visão íntegra do material gráfico, interpretação estrutural do conteúdo, integração de tais informações na memória e inferência(1 , 2 ). Existe, dessa forma, a união de dois fatores para que a adequada compreensão do material lido ocorra: a existência de um bom vocabulário receptivo e a presença de habilidades de decodificação automatizadas(3).

O aprendizado da leitura é um processo iniciado pela decodificação, desenvolvimento da fluência, passando pela compreensão de palavras, orações e chegando ao nível de compreensão textual(4). A compreensão leitora de textos tem singular importância nos processos de aquisição, partilha e construção do conhecimento(5).

Ao se avaliar a decodificação e a compreensão de leitura deve-se considerar o grau de escolaridade e os fatores envolvidos nessas competências, tais como: reconhecer a palavra impressa e realizar a associação grafofonêmica; ativar estruturas representativas atribuindo significados ao que está escrito; e compreender a mensagem, reconhecendo as estruturas gramaticais, considerando a ordem das palavras e uso dos sinais de pontuação(1 , 2 , 6 ).

O vocabulário receptivo está relacionado à percepção e ao processamento da informação e corresponde às palavras cujos conceitos e significados foram desenvolvidos(2 , 7 , 8 ). Estudos(2 , 8 ) demonstram que o vocabulário pode ser uma variável relevante para a CL, uma vez que influencia os processos de decodificação, velocidade e acurácia de leitura.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são referências de qualidade elaboradas pelo Governo Federal para nortear as equipes escolares (Ensino Fundamental e Médio) na execução de seus trabalhos. Com base no que é apresentado pelos PCNs, é possível saber quais habilidades os escolares já devem possuir de acordo com o seu grau de escolaridade. No que se refere à compreensão leitora no 5º ano do Ensino Fundamental I (EF), é esperado que os alunos sejam capazes de ler com autonomia textos de diferentes gêneros e extensão, selecionando estratégias para compreender a mensagem explícita, bem como o conteúdo implícito ao texto(9).

No Brasil, são frequentes pesquisas que buscam compreender as possíveis relações entre a aprendizagem das habilidades de leitura e escrita e as capacidades metalinguísticas(10 , 11 ). No entanto, apenas habilidades metalinguísticas desenvolvidas e boa fluência de leitura não garantem o sucesso da compreensão do material lido. Demais habilidades de linguagem, como a eficiência de reconhecimento de palavras e o conhecimento vocabular, o conhecimento da estrutura gramatical e a inferência são capacidades relevantes, que se desenvolvem e alcançam diferentes níveis de competência com o avanço da idade, escolaridade, prática e estimulação da leitura. Sendo assim, devem ser investigadas no decorrer do processo de desenvolvimento da compreensão leitora(12).

Na revisão da literatura desta pesquisa não foi encontrado nenhum estudo brasileiro publicado que fizesse a análise e correlação entre o vocabulário receptivo e a compreensão de leitura de orações e textos(10). A investigação dessa possível relação em sujeitos com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita é relevante, uma vez que, com base nos resultados obtidos, um padrão de normalidade poderá ser definido, possibilitando uma articulação com a prática clínica e educacional.

Dessa forma, a presente pesquisa objetivou caracterizar o desempenho de escolares de 5º ano do EF, com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita, em vocabulário receptivo e compreensão de leitura de orações e textos; e investigar possíveis correlações entre ambas.

MÉTODOS

Estudo iniciado após a aprovação do Comitê de Ética da Instituição, sob nº 098/13. Esta pesquisa foi realizada em duas escolas públicas de educação regular localizadas na zona oeste de São Paulo, com Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) semelhantes (4,4 e 4,7). Foram recrutadas crianças das duas escolas, tendo em vista que na primeira escola contatada não foi possível completar o corpus da pesquisa.

Inicialmente foram convocadas 84 crianças que frequentavam o 5º ano do EF da escola A (média de idade = 10 anos e 9 meses). Destes, 35 escolares tiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelos responsáveis e 32 preencheram os critérios de inclusão deste estudo.

Com o intuito de ampliar o corpus da pesquisa, contatou-se a escola B, na qual 38 crianças foram convidadas a participar da pesquisa. Dessas, 20 preencheram os critérios de inclusão e totalizaram os 52 sujeitos que fizeram parte do corpus da pesquisa.

Os critérios de inclusão deste estudo foram: anuência dos responsáveis por meio da assinatura do TCLE, assinatura do Termo de Assentimento, estar matriculado e frequentar o 5º ano do EF das escolas públicas pesquisadas, ausência de queixas ou indicadores de alterações de visão/audição, distúrbios neurológicos, comportamentais e/ou cognitivos (investigados por meio de questionários preenchidos por professores e responsáveis legais dos sujeitos).

Dentre os 52 sujeitos, 28 (13 do gênero feminino e 15 do masculino) constituíram o grupo sem indicativos de alterações de leitura e escrita (GSI) e 24 fizeram parte do grupo com indicativos de alterações de leitura e escrita (GCI) (9 do gênero masculino e 15 do feminino).

Todas as provas foram aplicadas individualmente, em dias diferentes. Embora fossem considerados os interesses educacionais curriculares dos alunos, os mesmos permaneciam em ambiente escolar somente um período e, quando convocados em contraturno, se ausentavam. Dessa forma, os estudantes eram retirados, um a um, da sala de aula, preferencialmente quando finalizavam as atividades propostas pelos professores. Não foram observados prejuízos quanto ao currículo escolar dos sujeitos, tendo em vista que os mesmos permaneciam com os pesquisadores por períodos de curta duração, podendo acompanhar as atividades em sala de aula.

O Teste de Desempenho Escolar (TDE) foi utilizado como instrumento de separação dos sujeitos em ambos os grupos, a partir da pontuação padronizada para a 4ª série/5º ano do EF. No GSI encontram-se as crianças cujo desempenho foi ≥112 pontos; no GCI, as que tiveram desempenho <112 pontos e com nível de escrita alfabético.

Provas experimentais

Os sujeitos foram avaliados, individualmente, quanto ao vocabulário receptivo, à compreensão de leitura de orações (CLO) e à compreensão de leitura de textos (CLT) seguindo as instruções de aplicação e pontuação descritas nos testes.

Para avaliação do vocabulário receptivo, foi utilizado o Teste de Vocabulário por Figuras USP (TVFUSP)(13), que consta de 139 itens, sendo que a criança deve ouvir uma palavra e selecionar a figura correspondente dentre 4 alternativas. A média estabelecida pelos autores para crianças do 5º ano do EFI (de nível socioeconômico baixo) foi de 120,73 pontos.

Em outro dia, os sujeitos realizaram a prova de CLO e CLT, números 9 e 10 do item IV do Teste PROLEC(1). O PROLEC Orações (PROLEC-O) é formado por 12 orações que expressam ordens simples a serem executadas. A média de pontuação estabelecida para a 4ª série (5ºano) do EF é ≥11,81 pontos. O PROLEC Textos (PROLEC-T) é formado por quatro pequenos textos (dois do tipo narrativo e dois expositivos) cujos significados devem ser extraídos para responder as quatro perguntas orais de cada texto. A média de pontuação estabelecida para o 5º ano do EF é ≥14,01 pontos.

Análise estatística

As distribuições da pontuação no PROLEC-T nos grupos com e sem indicativos e nas duas escolas foram comparadas por meio do teste de Kruskal-Wallis. Para localizar as diferenças apontadas pelo teste de Kruskal-Wallis foi aplicado o procedimento proposto por Dunn(14), e os valores de p corrigidos pela desigualdade de Bonferroni(15). Os mesmos procedimentos foram adotados na análise do PROLEC-O.

Para medir a correlação entre o PROLEC-T e o PROLEC-O foi calculado o coeficiente de correlação de Spearman(15).

A técnica de análise de variância foi aplicada com o objetivo de comparar as médias do TVFUSP nos dois grupos e nas duas escolas. As suposições necessárias à aplicação da técnica foram verificadas por meio da análise dos resíduos(16).

O coeficiente de correlação de Spearman foi adotado como medida de correlação entre o PROLEC-O e o PROLEC-T e o TVFUSP. A associação entre as classificações dos dois testes foi verificada por meio do teste do χ2.

Considerando o PROLEC-T como padrão-ouro, foi construída uma curva ROC(17) para TVFUSP.

Nos testes de hipótese foi fixado nível de significância de 0,05.

Como a análise estatística não apontou diferenças significativas entre os desempenhos obtidos pelos sujeitos nas duas escolas, optou-se por juntar as amostras em dois únicos grupos (GSI e GCI), desconsiderando a escola de origem.

RESULTADOS

As medianas observadas no TVFUSP no GSI foram maiores do que no GCI (Tabela 1). Esses dados foram confirmados pela técnica de análise de variância, que apontou diferença significativa entre as médias da pontuação no TVFUSP nos dois grupos (p<0,001).

Tabela 1. Médias e medianas observadas nos grupos sem indicativos e com indicativos no teste de vocabulário receptivo por figuras USP e na prova de compreensão de leitura de orações e textos 

Grupo sem indicativos (n=28)
Média (DP) Mediana Mín-Máx Esperado (5º ano EF)
TVFUSP* 121,0 (21,6) 125 15–136 ≥120
PROLEC Orações** 11,6 (0,9) 12 8–12 ≥11
PROLEC Textos** 13,3 (2,1) 14 7–16 ≥14
Grupo com indicativos (n=24)
Média (DP) Mediana Mín-Máx Esperado (5º ano EF)
TVFUSP* 117,4 (5,8) 118,5 104–127 <120
PROLEC Orações** 10,1 (3,1) 11 0–14 <11
PROLEC Textos** 9,3 (3,7) 9,5 0–14 <14

*Análise de variância; **teste de Kruskal-Wallis Legenda: TVFUSP = teste de vocabulário receptivo por figuras USP; PROLEC = prova de compreensão de leitura de orações e textos; DP = desvio padrão; Mín = mínimo; Máx = máximo; EF = ensino fundamental

Na análise do PROLEC-O, foi observado que as médias e medianas do GSI são maiores do que as do GCI (Tabela 1), fato comprovado pelo teste de Kruskal-Wallis, o qual apontou diferença entre as pontuações dos dois grupos no PROLEC- O (p=0,003). Embora a maioria das crianças dos dois grupos esteja classificada como "na média" ou "acima da média", a porcentagem de crianças acima da média no GSI (78,6%) é maior do que no GCI (37,5%).

A exemplo do ocorrido com o PROLEC-O, resultados obtidos quanto ao PROLEC-T demonstram médias e medianas maiores no GSI (Tabela 1), com diferenças significativas entre as distribuições da pontuação do PROLEC-T nos dois grupos (p<0,001), confirmados pelo teste de Kruskal-Wallis. Notou-se que 91,7% das crianças do GCI estão classificadas em "abaixo da média", enquanto que no GSI a maioria está classificada como "na média" ou "acima da média".

O valor do coeficiente de correlação de Spearman das pontuações no PROLEC-T e PROLEC-O no GCI foi de r=0,39 (p=0,052) e no GSI foi r=0,29 (p=0,139). Portanto, não houve correlação significativa entre as pontuações nos dois testes nos dois grupos, porém o valor de p obtido no GCI foi próximo ao valor de significância (0,05).

Nas Figuras 1 e 2 são apresentados diagramas de dispersão entre PROLEC-O e TVFUSP e entre PROLEC-T e o TVFUSP, respectivamente. Nesses gráficos pode ser visualizado o comportamento conjunto do PROLEC e do TVFUSP, para crianças com e sem indicativos de alterações. Abaixo de cada figura são apresentados os valores observados do coeficiente de correlação de Spearman entre PROLEC e TVFUSP.

Figura 1. Diagramas de dispersão do PROLEC orações e TVFUSP para crianças, com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita 

Figura 2. Diagramas de dispersão do PROLEC textos e TVFUSP para crianças com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita 

Pode ser observado na Figura 1 e pelo coeficiente de correlação de Spearman entre PROLEC-O e TVFUSP, que não houve correlação significativa nos dois grupos, porém o valor de p obtido no GCI (p=0,073) foi próximo a 0,05.

Por outro lado, observa-se na Figura 2, e pelo coeficiente de correlação de Spearman, que houve correlação positiva significativa entre PROLEC-T e TVFUSP apenas no GSI.

A fim de obter um valor de corte para o TVFUSP, tal que o resultado de uma criança pudesse apontar ou não a ocorrência de indicativos de alterações de leitura e escrita, foi construída uma curva ROC (Figura 3).

Figura 3. Curva ROC para o TVUSP considerando o PROLEC Textos como padrão-ouro 

O PROLEC-T foi considerado como padrão-ouro e os seus resultados foram classificados neste estudo em duas categorias: adequado ("na média" ou "acima da média") ou inadequado ("abaixo da média").

Foi observado que todas as crianças com PROLEC-T "adequado" foram classificadas na categoria "adequado" do TVFUSP; das crianças com PROLEC-T "inadequado", 60,6% foram também classificadas nessa categoria no TVFUSP.

O ponto mais próximo do canto superior esquerdo da curva ROC corresponde ao valor máximo de sensibilidade (91%) e especificidade (89%) alcançado pelo valor de corte do TVFUSP (125,15). Assim, crianças com 126 ou mais pontos no TVFUSP foram classificadas como tendo desempenho adequado em CLT e as crianças com 125 pontos ou menos, como tendo desempenho inadequado.

DISCUSSÃO

A compreensão de leitura é um processo muito complexo que envolve vários outros processos e habilidades correlatas, uma vez que não basta decodificar, mas é necessário atribuir um sentido ao material lido. Tal interpretação depende de inúmeras variáveis, tais como habilidades metalinguísticas, cognitivas, memória de curto prazo verbal e vocabulário. Entretanto, ainda não é muito claro o papel de cada um desses componentes no processo de compreensão de leitura. Portanto, com este estudo buscou-se compreender e caracterizar o desempenho de escolares de 5º ano do EF, com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita, em vocabulário receptivo e compreensão de leitura de orações e textos; e investigar possíveis correlações entre ambas.

Em relação ao vocabulário receptivo (TVFUSP), foram observadas maiores médias do GSI em relação ao GCI. Tais achados corroboram um estudo(18) no qual foi verificado que um bom desempenho em recepção e produção de linguagem oral é um indicador de inteligência e desenvolvimento de habilidades acadêmicas formais.

Um outro estudo(19) também encontrou resultados próximos, ao investigar a relação entre leitura, memória de trabalho, quociente de inteligência (QI) e vocabulário em crianças de 2ª a 5ª séries de escolas públicas, com uma amostra psicossocial desfavorecida. Os resultados demonstraram que existe uma relação estreita entre a memória de trabalho, o vocabulário e outros processos cognitivos no desempenho em leitura desses escolares. Além disso, quando foram excluídas da amostra as crianças com déficits intelectuais, o vocabulário e a memória de trabalho visuoespacial contribuíram muito para o desempenho em compreensão de leitura de textos (reconto e questões) dessas crianças.

Estimular o conhecimento de mundo das crianças para que compreendam uma informação com base no contexto em que esta é apresentada (inferência), por intermédio da linguagem oral ou escrita, é um dos principais meios de adquirir o vocabulário. Aprender uma nova palavra implica em conhecer sua forma, significado e uso(20). Dessa forma, os achados da atual pesquisa, além de corroborar esses estudos, chamam a atenção dos educadores para a necessidade de um trabalho de ampliação lexical, principalmente visando as crianças que apresentam desempenhos linguísticos mais prejudicados, uma vez que os escolares sem indicativos de alterações de leitura e escrita apresentaram desempenho superior aos com indicativos de alterações de leitura e escrita.

Em relação à compreensão leitora de orações (PROLEC-O), houve diferença significativa nas distribuições das pontuações entre os dois grupos, com resultados superiores para o GSI. Resultados semelhantes foram encontrados por pesquisadores(21 , 22 ) ao analisar o processo de leitura de escolares com transtornos de aprendizagem, comparados com crianças com desempenho escolar adequado. Nesses estudos, crianças com melhor desempenho obtiveram bons resultados em compreensão leitora. Assim, destaca-se a importância do desenvolvimento adequado dos aspectos que influenciam a compreensão leitora (conhecimento de mundo, vocabulário, processos inferenciais, integração sintática e semântica dentro das frases, reconhecimento visual das palavras, memória de curto prazo verbal, monitoramento e metacognição) para que as informações transmitidas façam sentido e o leitor seja capaz de reconhecer o papel de cada uma das palavras e o modo como são organizadas na oração(23 , 24 ).

Quanto aos resultados de compreensão leitora de textos (PROLEC-T), pode-se afirmar que essa prova foi um bom indicador dos escolares com e sem indicativos de alterações de leitura e escrita, confirmando a divisão dos sujeitos nos grupos GSI e GCI pelo TDE, pois a diferença entre os dois grupos foi maior do que no PROLEC-O. Portanto, esses resultados demonstram que a prova de compreensão de leitura de orações não foi um instrumento diferenciador de desempenho dos escolares de 5º ano, contrariando achados de um outro estudo(25), realizado com escolares em processo inicial de alfabetização.

Na compreensão de textos, além de reconhecer a palavra, extrair o seu significado e estabelecer o papel da mesma dentro da oração, o leitor deve ser capaz de integrar as informações de diversas orações na memória, agregar conhecimento de mundo e realizar inferências para se apropriar do conteúdo lido(1 , 4 ). Tendo em vista que os escolares com indicativos apresentam carência de representações ortográficas, utilizam mais a rota fonológica durante a leitura e levam maior tempo para que a decodificação do material lido aconteça, podem ser prejudicados quanto ao uso da memória e integração das informações, justificando a dificuldade em compreender textos(22 , 26 ).

Não houve correlação positiva entre o PROLEC-O e o PROLEC-T tanto no GCI (p=0,052) quanto no GSI (p=0,139), porém, as crianças do GCI tiveram uma pontuação pior nos dois testes. Isso sugere que as crianças com indicativos de alterações tendem a ter um desempenho abaixo da média na leitura de orações e, consequentemente, de textos. Esse fato já era esperado, principalmente na CLT, uma vez que esta demanda processos cognitivos e conhecimento de mundo mais complexos.

Na Figura 1, a ausência de correlação significativa entre o PROLEC-O e o TVFUSP, em ambos os grupos, sugere que o vocabulário parece não interferir de maneira significativa na compreensão leitora de orações, principalmente as de ordens simples, independente do grupo ao qual a criança pertença. Entretanto, as crianças do GCI apresentaram vocabulário e compreensão leitora de orações inferiores ao GSI.

Os dados da Figura 2 e do coeficiente de correlação de Spearman apontaram que houve correlação significativa entre o PROLEC-T e o TVFUSP apenas no GSI. Esses dados corroboram estudos recentes(2 , 27 ), os quais descreveram que o conhecimento do vocabulário é um dos melhores indicadores de domínio de leitura, pois se relaciona à capacidade de obter novos detalhes a partir da leitura de textos. Além disso, a quantidade de vocábulos familiares é um dos elementos mais significativos para discernir o grau de complexidade de um texto, uma vez que quanto mais vocábulos a criança conhece em um material gráfico, mais fácil será a interpretação da mensagem do mesmo.

Os achados da atual pesquisa trazem uma contribuição original ao demonstrar que, além das habilidades metalinguísticas e o domínio das regras de conversão grafema/fonema e ortográficas, o vocabulário também é uma variável determinante e preditora para o desenvolvimento e consolidação da compreensão leitora de textos em escolares de 5º ano do EF.

Um outro resultado inovador deste estudo foi a análise da curva ROC, que demonstrou alta sensibilidade e especificidade para o valor de corte, indicando que a partir de 125,15 pontos haverá maior probabilidade de uma criança ter seu desempenho considerado adequado no PROLEC-T, confirmando que o vocabulário receptivo é um preditor do desempenho das crianças do 5º ano do EF em compreensão de leitura de textos. Portanto, fica estabelecido um parâmetro de desempenho vocabular importante para os profissionais que atuam com crianças ao final do Ensino Fundamental.

Os dados obtidos por meio desta pesquisa foram entregues (em formato de relatórios individuais e coletivos) e discutidos com os professores e equipes gestoras das duas escolas nas quais a coleta de dados ocorreu. É relevante informar a enorme receptividade dos membros das duas equipes escolares, demonstrando o interesse das escolas pela pesquisa e por sugestões de aplicabilidade dos dados no contexto educacional. Mais uma vez, ficam evidenciados os benefícios de uma atuação conjunta entre fonoaudiólogos e professores. Além disso, todos os escolares com indicativos de alterações de leitura e escrita foram encaminhados para avaliação fonoaudiológica, com a finalidade de esclarecer a presença ou não de um transtorno de aprendizagem de leitura e escrita.

É importante ressaltar as implicações dos achados deste estudo, não só para a atuação clínica fonoaudiológica como para a atuação em âmbito educacional. Desse modo, ao utilizarem estratégias de ampliação lexical, os professores estarão propiciando aos escolares o aprimoramento da compreensão leitora, sem que esta seja colocada como meta principal das atividades pedagógicas. Por outro lado, realizar atividades de interpretação textual, com o intuito de ampliação lexical, pode aprimorar a linguagem oral e a compreensão leitora de textos desses escolares, tendo em vista que os escolares do GSI obtiveram melhores desempenhos em vocabulário e em compreensão de leitura textual.

Assim, o presente estudo contribui substancialmente para os estudiosos da área de leitura e escrita ao mostrar evidências da importância do vocabulário para a compreensão leitora de textos. Dessa forma, pode-se inferir que o vocabulário deve ser colocado em destaque tanto no planejamento escolar (com crianças típicas e com indicativos de alterações de leitura e escrita), quanto na clínica fonoaudiológica para crianças com transtornos de aprendizagem.

CONCLUSÃO

Os escolares do presente estudo sem indicativos de alterações de leitura e escrita apresentam melhor desempenho em vocabulário receptivo e em compreensão de leitura de orações e textos.

A correlação positiva entre vocabulário receptivo e compreensão de leitura de textos somente nos escolares sem indicativos de alterações de leitura e escrita indica a relevância do conhecimento das palavras e de seus significados para a consolidação de uma compreensão leitora de textos proficiente.

Os dados deste estudo permitem especular que, a partir do momento em que a criança é capaz de compreender a língua escrita, consolida-se uma relação de reciprocidade entre a leitura e o vocabulário.

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